Inovação e Redações: uma equação de difícil solução

Pedro Sigaud Sellos
Farol Jornalismo
Published in
8 min readOct 21, 2015

Todos os que de certa forma estamos envolvidos na indústria da mídia –jornalistas ou não– presenciamos nos últimos anos um cenário desanimador do ponto de vista dos produtores de conteúdo. A forte crise no setor se agrava a cada ano por um conjunto de fatores:

1.Queda na circulação dos jornais e do número de assinantes, por conta do surgimento de novos canais e de uma nova cultura digital (notícias na internet, redes sociais, YouTube, NetFlix, Google, Spotify, BuzzFeed) que consomem o tempo antes dedicado em sua maior parte à leitura do impresso;

2.Diminuição de receita vinda dos anunciantes e extinção das páginas de classificados: o crescimento da cultura digital levou grande parte dos anunciantes a preferirem os sites às mídias impressas. Os preços expressivamente mais baratos para anunciar na web, aliada à promessa de maior visibilidade por parte dos consumidores, ganham no momento de se escolher entre anunciar em espaços impressos ou digitais. Os anúncios classificados –antes uma parte fundamental do tripé que sustentava o modelo de negócio dos jornais– deixam de ter sentido ao surgirem serviços digitais como Craigslist , Monster, Zap Imóveis e WebMotors são alguns exemplos de serviços que oferecem melhores resultados que o antigo modelo de classificados dos jornais. Grátis.

3.Criação de um círculo vicioso devido à combinação dos itens 1 e 2, em que a queda no número de leitores leva a um término do monopólio das audiências de massa, o que por sua vez reduz drasticamente o valor do espaço publicitário. Esse declive financeiro explica a necessidade das empresas de reduzir as equipes de jornalismo. Esse fenômeno de demissões crescentes nos jornais afeta diretamente o ‘core business’ das empresas, impedindo-as de produzirem conteúdos na mesma quantidade e qualidade de antes. O professor da Harvard Business School, Ranjay Gulati, chefe do departamento de comportamento organizacional, utiliza uma expressão forte, mas ilustrativa para esse tipo de situação: “é a estratégia do vaso sanitário, em que tudo vai por água abaixo.”

Ocorre que, diante deste cenário, contemplamos muitas vezes com perplexidade os fatores externos, sem olhar para os elementos internos das organizações que podem estar contribuindo para o agravo da crise. Há algo que poderia ser feito pelas empresas para reverter esse cenário? A resposta não é fácil. Sem dúvida, parece que algumas das funções essenciais do jornalismo como a de coletar informações, comprovar os fatos, ordená-los e divulgá-los com autoridade e de forma objetiva, acrescentando ainda análise aprofundada de especialistas sobre os principais acontecimentos do mundo, ainda possui alta demanda por parte da sociedade, fazendo da atividade jornalística algo extremamente necessário para a saúde democrática de um país. Como então promover mudanças internas, reposicionando as empresas de mídia como alternativas atraentes para as audiências de hoje?

Podemos extrair alguns elementos fundamentais que os principais autores sobre Inovação nas organizações (Schumpeter, Drucker, 1985; Michalko, 2006; Kelley, 2001) veem como necessários para a existência de um ambiente favorável à mudança. São eles:

  1. Não ter medo ao erro;
  2. Visão positiva do mundo;
  3. Diversidade;
  4. Tempo para executar testes (sem compromisso com o acerto ou resultados mensuráveis);
  5. Mentalidade de prova;
  6. Abertura para o diferente e inesperado.

Os pontos que acabamos de expor explicam-se por si mesmos. De fato, não há novidade. Todos sabemos por intuição ou experiência própria que para mudar positivamente em nossos ambientes de trabalho são necessárias pelo menos algumas das situações acima citadas . Não é à toa que Steve Jobs, Bill Gates, Mark Zuckerberg, Larry Page e Sergey Brin, entre outros, deram início aos seus grandes projetos vitais na mais tenra juventude. Além de terem então bastante tempo livre (jovens universitários com poucos compromissos familiares, pessoais e, mais importante, quase nenhum compromisso profissional) não possuíam uma visão viciada do mundo, provavelmente por ainda não terem vivenciado frustrações em âmbitos da vida humana como trabalho, família e relações de amizade. Mais clara ainda é a postura de abertura para o diferente e inesperado que costuma possuir um jovem. Mais que uma questão de idade, trata-se de um problema relacionado às circunstâncias. Ambientes que respondem positivamente aos pontos levantados acima tendem a inovar mais que aqueles que não oferecem estas condições. É curioso ver que algumas grandes corporações -apesar de possuírem mais recursos e, portanto, mais condições para investir em novos produtos e serviços- correm o risco de não oferecer as condições ideais que permitem a inovação no ambiente interno de trabalho e consequentemente uma mudança significativa de cultura. Vejamos por exemplo alguns dos elementos presentes no ambiente de trabalho das redações, aproveitando os pontos elencados anteriormente:

  1. Medo ao erro. Ao contrário de casos famosos como o da Toyota, que realizou um massivo recall sem graves consequências para a marca, o erro em uma empresa de conteúdos informativos pode danificar o valor da marca de maneira irreversível. O leitor não tolera o erro de informação, e à menor percepção de que isso tenha ocorrido perde a confiança com o jornal, com poucas possibilidades de reversão.
  2. Visão crítica do mundo. Por conta da própria essência da profissão, somos educados a ‘desconfiar’ constantemente. Esse aguçado espírito crítico –fundamental para expor comportamentos ou discursos falsos– pode muitas vezes levar a uma postura de crescente ceticismo com relação a tudo e a todos. As iniciativas positivas por parte de qualquer cidadão, empresa ou figura política deixam de impressionar aquele que não deveria ter perdido nunca a capacidade de se surpreender pelas realidades da vida e do ser humano. Mais uma vez nos ensina Steve Jobs: “Continuem com fome. Continuem bobos.”
  3. Uniformidade. O ofício jornalístico possui uma forma de trabalhar própria, com ciclos e rotinas de produção próprios, o que muitas vezes leva a categoria a se isolar da ‘sociedade média’ (se é que isso existe ou possa ser definido). Enfim, os jornalistas entenderão: frequentamos os mesmos locais de lazer, temos amigos em comum, vamos aos mesmos bares e restaurantes. Mais do que uma questão de afinidades pessoais, o risco está em que esse comportamento leva a uma formatação da visão. Quantas vezes a imprensa se equivocou em seu posicionamento a respeito de algum assunto?
  4. Escassez de tempo para realizar novas tarefas. “É impressionante como a quantidade de notícias que acontecem no mundo todos os dias encaixa sempre exatamente na folha do jornal.” A conhecida frase de Jerry Seinfeld nos mostra o pouco que nós leitores sabemos sobre os desafios diários dos profissionais das redações. O trabalho de apuração, produção, edição e hierarquização das notícias, coordenados milimetricamente para que os jornais cheguem diariamente às primeiras horas do dia nas bancas e casas dos assinantes, é algo digno de um prêmio. A evidente pressão por terminar o produto no tempo previsto, com a obrigação de ser atraente para o leitor e ao mesmo tempo preciso, simplesmente não abre espaço para que os jornalistas possam se dedicar a atividades paralelas internas de imersão.
  5. Mentalidade de ‘o que está feito está acabado’. Por conta da própria rotina de trabalho e ciclos limitados de produção de conteúdos que vimos acima, o profissional das redações não concebe a ideia de um produto em ‘versão beta’. Para ele, o que não está pronto e terminado ainda está por acabar e portanto não deve ser levado a público. Esta lógica é perfeita e correta do ponto de vista do produto jornal. No entanto, são justamente os projetos que estão livres das amarras do acerto que costumam voar mais alto. Por dizer algumas descobertas úteis surgidas por engano, temos a Vaselina (1870), o forno de microondas, a penicilina (1928) e o Post it (1968).
  6. Aversão ao diferente e inesperado. Esse último tópico infelizmente não se aplica apenas à categoria dos jornalistas, mas aos seres humanos na grande maioria dos casos. Queremos sempre que o entorno mude, seja esse entorno o mundo, a sociedade ou o outro. Mas dificilmente tomamos a iniciativa de mudar radicalmente algo em nós mesmos.O jornalista, embora dedicado constantemente a encontrar e divulgar aqueles elementos que fogem à normalidade, ou seja, tudo aquilo que consiste uma novidade por si só, facilmente encontra uma barreira nele próprio para mudar seus hábitos de trabalho. Uma mudança de cultura carrega em si uma mudança de hábitos. Aqueles que se recusam -às vezes com certa teimosia- a aceitar os novos hábitos provenientes do surgimento de uma nova cultura, costumam ficar para trás.

Fazendo um breve exercício de contrastar os seis elementos necessários para fomentar a inovação com as seis características mais típicas das redações tradicionais, vemos com muita clareza que eles se encontram em extremos opostos. Fica patente, assim, a remota possibilidade de que as redações sejam o caldo de cultivo de grandes transformações, sejam elas editoriais, tecnológicas ou culturais. Aos que digam que as empresas jornalísticas ‘sempre foram assim’, sugiro que assistam ao documentário Linotype.

Esta percepção do posicionamento das empresas de mídia tradicionais diante dos novos desafios e sua escassa capacidade de resposta pode desanimar a muitos, sobretudo aos profissionais de comunicação. No entanto, minha intenção nesse singelo artigo é propor três caminhos, simples e concretos, que possam oferecer uma rota de escape a esse círculo vicioso do ‘vaso sanitário’ e, consequentemente, uma mudança mais profunda de hábitos e rotinas nas redações:

  1. Envolver-se em estudos e outras experiências imersivas. Não há nada que proporcione as melhores condições para a criação de um ambiente onde estão presentes os seis pontos positivos antes comentados que o tempo dedicado ao estudo e à reflexão. Como diz o Prof. Carlos Alberto Di Franco em um de seus artigos, “Se você for a um médico e ele disser que não estuda há 25 anos, você se assusta. Mas há jornalistas que não estudam nada há 25 anos.” Outros tipos de experiências imersivas, que permitam ao profissional vislumbrar novos horizontes, podem ter efeitos positivamente transformadores: um período conhecendo o Vale do Silício, por exemplo; visitas técnicas a novos projetos digitais ou mesmo a empresas tradicionais que possam oferecer experiências de êxito; contato com laboratórios de inovação inseridos em grandes centros acadêmicos como MIT, Stanford, Columbia.
  2. Criação de ‘Labs’ inseridos nas redações como um potencial núcleo de inovação. Vale a pena consultar o artigo do Prof. Ramón Salaverría sobre o assunto, em que apresenta o fenômeno em expansão do surgimento de laboratórios de inovação nas principais empresas jornalísticas do mundo. A ideia fundamental por trás da criação de tais espaços é a de poder estabelecer o ambiente propício para o surgimento de soluções inovadoras dentro de um contexto completamente adverso. Obviamente, a criação de tal tipo de espaço de trabalho não depende de um indivíduo apenas, sendo uma iniciativa de um coletivo. No entanto, mantenho esta ideia como um possível caminho com a esperança de despertar o interesse em mais de um profissional das empresas de informação.
  3. Foco nas audiências. É comum ver, ao longo da história, grandes talentos que competiam entre si — Tolstoi, em seus inícios, queria muito impressionar a Turguêniev. Os artistas renascentistas eram entre si rivais por excelência (p. ex. Michelangelo e Rafael) – no entanto, o talento do jornalista deve estar direcionado aos leitores e à sociedade, não aos seus pares. O foco nas audiências é, mais que nunca, crucial para o sucesso do modelo de negócio. Já não vivemos uma era da escassez de informação. O grande recurso escasso do século XXI é a nossa atenção (já nos dizia o prêmio Nobel Herbert Simon na década de 70). Ganhará a batalha pelas audiências o veículo não apenas com o melhor conteúdo (notícias, análises, opinião) mas aquele que melhor conseguir entender nosso Zeitgeist. Isso inclui, além de conteúdos originais e de alta qualidade, compreender o funcionamento das redes (tanto em termos sociológicos como tecnológicos), os comportamentos de consumo e aspirações dos públicos mais jovens.

Por fim, não perder a esperança. Apesar das inúmeras dificuldades e da drástica mudança de cultura que vivenciamos hoje em dia, vemos que os jornais tradicionais ainda possuem recursos para realizar transformações internas. Em termos editoriais, essas empresas ainda lideram em qualidade de notícias e em protagonismo de agenda pública (os debates vistos nas redes sociais têm em sua maioria origens em matérias publicadas por grandes veículos).

Trata-se sem dúvida de uma equação complexa. Temos muito a aprender tanto da ciência como da arte –ambas especialmente afeitas a problemas– ao observar como lidam com desafios. Einstein dizia que não era por ser inteligente que conseguia resolver problemas difíceis, mas simplesmente por permanecer mais tempo debruçado sobre eles. Duke Ellington via os problemas como oportunidades para fazer o melhor de si. São essas as posturas que nos ajudarão a inovar no jornalismo.

Pedro Sigaud-Sellos, Ph.D.

Diretor executivo do depto. de comunicação do IICS;

Coordenador do Master em Jornalismo.

(artigo originalmente publicado no blog da Di Franco: Consultoria Estratégica de Mídia)

--

--

Pedro Sigaud Sellos
Farol Jornalismo

Associate Dean@MBRSCAUD & Professor @AUDubai; #Media #Leadership #DigitalStrategies #News #Entertainment. Currently living in Dubai.