Marcela Donini
Farol Jornalismo
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5 min readSep 4, 2015

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Meia Hora, meio debate

Quando vi o trailer do documentário Meia Hora e as manchetes que viram manchete fiquei curiosíssima para saber como aqueles jornalistas defenderiam o jornal. O fenômeno carioca rompeu as barreiras do Rio pelas capas que viralizam de tempos em tempos nas redes sociais, como a já clássica “Luana não tem mais Dado em casa”, de 2008, e a mais recente “Não vai ter capa”, no dia da ressaca do 7X1.

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O humor aparentemente inofensivo para quem consome o tabloide em pílulas do Facebook sobre celebridades e futebol se transforma em algo mais perverso nas manchetes policiais que já aparecem no trailer e que tratam bandido como “vagabundo”, “monstro”, “desalmado”.

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Visto o filme, minha conclusão é que, pela primeira vez, aqueles jornalistas pararam para pensar sobre o seu trabalho. “O povo gosta disso”. A frase da ex-proprietária do jornal, Gigi de Carvalho, resume a defesa simplista do jornal apresentada no documentário de Angelo Defanti. Mas, a meu ver, o longa, ao contrário do que disse André Barcinski na Folha de S. Paulo, não é chapa branca; ao contrário, expõe a dificuldade de reflexão e incapacidade de autocrítica dos entrevistados e provoca discussões valiosas para o jornalismo.

É fato que os responsáveis pelas capas e pelo projeto do jornal passam os 78 minutos do longa se gabando do sucesso das capas do Meia Hora — fenômeno que vem amargando um declínio em sua circulação nos últimos anos (de 157 mil em 2010 para 114 mil em 2014). Mas eles falam tanto — e aqui tenho que concordar com Barcinski sobre a verborragia — que se boicotam. Por exemplo quando Humberto Tziolas sequer respira antes de responder com um enfático “com certeza” quando perguntado sobre se há tratamento diferente entre uma morte e outra. Ou o comentário do outro editor, Henrique Freitas, sobre uma capa que pedia desculpas porque não haveria piada naquele dia devido à chacina ocorrida no dia anterior. Quer dizer que as outras mortes que foram motivo de piada mereciam ser zoadas?

Segundo Freitas, “as pessoas não entenderam”, eles simplesmente queriam explicar para o seu leitor acostumado com piada diariamente que, naquele dia, eles estavam tão abalados na redação que não haveria piada. Ok, colega, isso eu entendi, o que eu não entendo — e repudio — são todas as outras piadas relacionadas a notícias policiais — quanto a futebol, eu acho até bom que se faça piada, afinal, o esporte não poderia ser tão levado a sério mesmo.

Eis que depois de tanto ego inflado sobre o fenômeno do jornal entram os professores de jornalismo Sylvia Moretzsohn e Muniz Sodré, que criticam a forma como o jornal banaliza a violência e a morte e como lida com seu público.

“Esse popular se define por uma redução, faz um meio jornal. Eu posso falar dessa forma pro povo.” (Muniz Sodré)

E é por isso que não vejo o documentário como chapa branca. Talvez o diretor tenha errado a mão no processo de transformar em longa o que seria um curta sobre as capas polêmicas do Meia Hora. Esticou demais algumas cenas, como a da campanha que lançou o jornal. De todo modo, acho que o publicitário entrevistado neste trecho toca num ponto interessante que não é aprofundado no filme mas é, para mim, o cerne dessa discussão: “Devo entregar pro cara o que ele quer ou o que ele precisa para ser um cidadão melhor?”

O equilíbrio entre as duas coisas é a resposta mais sensata, mas como encontrá-lo? De que adianta um jornal que ninguém lê? A gente sabe mesmo o que o público quer? Será que é só futebol, celebridade e sexo? No quadrilátero que sustenta o Meia Hora, segundo seus editores, ainda temos o serviço, mas, pelas capas, ele some em meio a tanto sensacionalismo.

Talvez o que o público queira é se enxergar, um mérito inegável dos jornais populares. Mas há muitas maneiras de se enxergar em um jornal. Uma delas é em manchetes que “falam como o povo fala” mesmo que isso signifique chamar bandido de monstro; outra é ver suas fotos no jornal, mesmo que isso reforce o estereótipo de mulher como objeto; outra ainda — mais nobre — é questionar a postura violenta da polícia dentro dessas comunidades, que vivem cotidianamente esse conflito, o que algumas capas do Meia Hora já conseguiram fazer.

A sessão em que assisti ao filme, em Porto Alegre, era comentada, com a presença de Defanti, Luis Fernando Verissimo e Jorge Furtado. Fui assistir porque, primeiro, não se desperdiça a chance de ouvir LFV, segundo, porque tinha a expectativa de sair de lá com algumas respostas sobre como lidar com um público como o do Meia Hora e qual o papel de um diário como este e seu impacto na comunidade à qual é destinado. Saí antes do debate terminar, desapontada.

Em uma sessão repleta de jornalistas, estudantes de jornalismo e profissionais do cinema, comentários como “eu vou ao Rio e não tenho coragem de comprar um Meia Hora” ou “tem texto ou só foto?”, “sério que se leva meia hora para ler esse jornal?” demonstram um desconhecimento e um preconceito em relação a quem compra o Meia Hora. Ninguém ali era o público do jornal e boa parte não parecia interessado em saber mais sobre esses leitores.

Não sou especialista no tema; tive uma breve experiência trabalhando com o público de escolas públicas em um caderno jovem encartado no popular Diário Gaúcho. Mas basta acompanhar um pouco o assunto ‒ e dados sobre perfis e hábitos de consumo de informação e escolaridade no país ‒ para concluir que faltou olhar para leitores, um pecado do filme. Na sessão, Defanti justificou-se dizendo que “um público tão disforme não caberia com duas ou três entrevistas no seu documentário”. Foi uma escolha do diretor, ok, mas para os jornalistas e estudantes interessados no tema é fundamental ouvir esse público e parar de olhar para esses diários com os mesmos critérios aplicados a jornalões voltados à elite e à classe média ‒ o que não significa abandonar princípios éticos.

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Marcela Donini
Farol Jornalismo

Jornalista freelancer radicada em Porto Alegre, professora de jornalismo e fundadora do Farol Jornalismo.