O jornalismo precisa de mais fracassos

Marcelo Fontoura
Farol Jornalismo
Published in
6 min readJan 15, 2016
Flickr, yeowatzup. CC BY 2.0.

Em um recente evento sobre jornalismo digital, o jornalista Alexandre de Santi comentava sobre a necessidade de reinvenção do jornalismo. A abordagem dele me chamou a atenção, e encontra eco em alguns pensamentos sobre o estado atual da profissão. Numa frase: o jornalismo precisa de mais fracassos.

Mas o que isto significa? O meio das startups, de um modo em geral, já incorporou o espírito da importância da falha, do fail. Vide a proporção que eventos como o Failcon tomaram — uma conferência onde empreendedores e profissionais se juntam para contar história de naufrágios de negócios. Eles compreenderam — ou pelo menos demonstram — que o sucesso não está divorciado do fracasso, na outra ponta do espectro, mas sim intimamente relacionado.

Na verdade, este raciocínio não tem nenhuma novidade para quem está familiarizado com a mentalidade lean, trazida à tona por Eric Ries. Em resumo: nosso público é regido por lógicas que não conhecemos. Em vez de sucesso puro e simples, um empreendedor deve focar em aprendizado, construindo as menores estruturas possíveis para aprovar hipóteses úteis a um negócio — ou outro tipo de empreitada. A partir do aprendizado , evolui-se em ciclos. A literatura sobre o paradigma ágil é vasta.

A época atual de mudança nas placas tectônicas do jornalismo tem um problema. Não houve um momento único de ruptura, em que as soluções até então eficazes se tornaram inócuas, mas sim um período de décadas de convivência com a mídia digital, em que os paradigmas foram lentamente se desconstruindo. Períodos de transição alongados são comuns em processos históricos. Se considerarmos a escala geral do jornalismo como campo, todo o processo foi muito breve, mas seres humanos normalmente possuem dificuldade em enxergar padrões um pouco mais alongados cronologicamente. Como diz o provérbio do sapo fervendo, temos dificuldades de notar mutações que ocorrem gradualmente. Pior: as soluções não perderam totalmente o sentido, especialmente quando falamos de um contexto como o brasileiro, que normalmente acompanha as tendências do mercado desenvolvido, com alguns anos de atraso. Jornais impressos ainda sustentam muita gente, e volta e meia têm um aumento ocasional de circulação (embora no link estejam somadas circulação impressa e digital). Veja você, 50% dos leitores de jornal ainda leem apenas em papel. O que não os protege das crises subjacentes no campo jornalístico, é claro.

A partir da convivência de diferentes realidades de mídia, perceber a direção que a indústria está tomando pode ser mais difícil. Quando finalmente nos damos conta que certas respostas para questões antigas — financiamento, distribuição, relação com o público, concorrência etc. — não servem mais, geralmente é tarde.

Era isto que o De Santi defendia, citando este texto do Clay Shirky de 2009.

Round and round this goes, with the people committed to saving newspapers demanding to know “If the old model is broken, what will work in its place?” To which the answer is: Nothing. Nothing will work. There is no general model for newspapers to replace the one the internet just broke.

Frente a isto, volto ao início: apenas a experimentação e a exploração destas novas realidades nos trarão novos modelos e perspectivas. Esta ideia não é nova, e o próprio Alexandre de Santi destacou a importância de termos evolução baseada em sucessivas tentativas concomitantes. Friso: apenas através da formulação de novas hipóteses e do aprendizado através delas é que vamos construir um futuro para o jornalismo. Mesmo que não cheguemos a vê-lo — o que também é fundamental.

Em seu livro mais recente, Jeff Jarvis bate na mesma tecla com maestria:

If I had a plan, I’d be eliminating possibilities. I’d be predicting the future and prescribing it. But I’m not trying to do that. If we define the future today, we’ll do so in the terms of our past. Horseless carriages. We still have more imagining to do. (…). If we don’t imagine many futures, we can’t build any.

Já citei o Circa em textos anteriores. Não quero dar a impressão de me prender aos mesmos exemplos, mas considero um caso importante de observar. Mesmo tendo morrido (apesar de que deve retornar) sem gerar receita, ele trouxe perspectivas importantíssimas sobre formatação de informação mobile. Seu DNA vive hoje em outras iniciativas, como o app do BuzzFeed News, o NYTNow e outras experiências do New York Times. A questão é: ele falhou como empresa, mas explorou algumas hipóteses e ajudou a colocar um tijolo no prédio do jornalismo que estamos coletivamente tentando reconstruir neste início de século.

O Brio seria um exemplo equivalente aqui do Brasil, embora não esteja morto. Eles tinham um modelo claro em mente. Tentaram executá-lo, não conseguiram, mas são uma parte importante do quebra-cabeças, mesmo que atualmente estejam um pouco à deriva.

A indústria vai, assim, coletivamente, através de diversos empreendimentos, construindo alternativas. Isto só vai funcionar se admitirmos que chegamos a um beco sem saída, e que os jornalistas, de forma integrada com uma série de outros profissionais, precisam começar a explorar tudo e aprender para evoluir.

Steven Johnson, em um de seus primeiros best-sellers, Emergência, trata da ideia de complexidade, característica de sistemas em que peças individuais trabalham juntas construindo algo maior. A questão é que, individualmente, elas não têm consciência do que criam em conjunto. Exemplos deste tipo de organização são formigueiros, o cérebro humano, e as próprias cidades, onde alguns padrões levam centenas de anos para se formar — não foram especificamente planejados por nenhum indivíduo. Alguns agentes criam, com suas pequenas contribuições, estruturas que eles mesmos não veem prontas — formigas morrem em dias, mas formigueiros duram décadas, neurônios vão se substituindo e pessoas vivem uma fração do tempo de uma cidade. Dizer que o jornalismo é um sistema complexo provavelmente é um exagero, mas esta percepção nos é útil. Talvez a resolução deste cenário esteja em outra escala, acima de nós, atores individuais. Talvez ela esteja ainda muitos anos à frente, e nós a construímos sem consciência do todo, explorando o furacão de dentro, cegos de toda a sua dimensão. Todavia, isto não torna menos necessária a movimentação dos elementos no sistema, tateando para explorar o desconhecido, pelo contrário. A alternativa não é a não-existência completa do jornalismo, mas um marasmo na oferta disponível e uma diminuição em fôlego e extensão das notícias. Significa uma derrota para o interesse público, significa perder oportunidades que podem nunca mais se apresentar.

Aos Fatos, Nexo, Volt, Brio, Think Olga, todos são elementos se movimentando no sistema, mesmo que ainda não tenhamos respostas.

É o que Santi defendia, voltando onde comecei. Não temos nenhuma resposta certa, pois o que tínhamos como certeiro escapou por entre os dedos sem percebemos a extensão das coisas. Apenas novas tentativas vão encontrar algum substituto.

O que torna mais difícil esta caminhada é a ausência de um cenário brasileiro voltado à inovação. Nos Estados Unidos, por exemplo, em 2014 mídia foi, até setembro, pelo menos, a segunda indústria mais beneficiada por dinheiro de investimento de risco. É o que permite pagar as contas enquanto se experimenta — não existem milagres. As empresas aqui instaladas são tradicionalmente voltadas ao serviço habitual, ou no máximo à inovação básica — pense num jornal lançando apps de iPad. A inovação de ponta, o terceiro estágio, precisa de um ecossistema atrativo para manter as ideias circulando.

Isto torna o desafio do nosso lado mais trabalhoso.

De cabeça, conseguimos reunir algumas fronteiras que ainda precisamos explorar, como indústria e comunidade. Aspectos profundos que apresentam grandes oportunidades, mas podem ser também esfinges, a nos devorar caso não obtenhamos respostas.

  • Novas forma de estruturar conteúdo, além de artigos;
  • Um relacionamento mais profundo e integrado com o público, que não deve ser consultado só na hora de comentar uma pauta — uma realidade muito mais complexa do que imaginávamos na época em que mídia participativa se tornou 'moda';
  • Nossa missão mais básica: informar? Explicar? Organizar informação? Tudo junto?

O caminho à frente só será pavimentado com muitos fracassos e a consciência de uma construção coletiva: não apenas tentativas erradas, mas iniciativas que demonstrem aprendizado. Precisamos falhar mais.

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Marcelo Fontoura
Farol Jornalismo

Digital Journalism Professor at PUCRS. Addicted to bits. I also play guitar. https://www.marcelofontoura.com/