O negócio da influência

luís felipe d.s
Farol Jornalismo
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5 min readJul 29, 2015
Foto: Financial Times/Flickr — https://www.flickr.com/photos/financialtimes/8473460114/

A venda do ‘Financial Times’ mostra que nem tudo é atenção no mercado de notícias

O Financial Times tem 12 milhões de usuários únicos por mês. O Washington Post tem 52 milhões.

O Financial Times tem circulação diária de 214 mil exemplares — número que chega a 737 mil somando os assinantes digitais. O Washington Post tinha uma circulação diária de 474 mil exemplares e 838 mil no domingo em 2013, quando foi vendido.

O Financial Times foi vendido por US$ 1,3 bilhão para o grupo Nikkei em 2015. O Washington Post foi vendido por US$ 250 milhões para Jeff Bezos, da Amazon, em 2013- um valor cinco vezes menor.

Os números acima mostram que o mercado de notícias vende barato a audiência e vende bem caro a influência.

O investimento em qualidade

A comparação óbvia entre as duas vendas leva analistas de jornalismo pelo mundo a mostrar que o Financial Times, ao contrário do Washington Post, seguiu investindo em qualidade de conteúdo para o nicho específico onde atua.

Steve LeVine, na Quartz, mostra que o Washington Post fechou escritórios internacionais enquanto o Financial Times expandia sua reportagem para Rússia, Oriente Médio e China, sem falar nas demissões de jornalistas.

Essa explicação, porém, releva algumas coisas, entre elas os parâmetros de qualidade. Se considerarmos os principais prêmios de jornalismo em língua inglesa como parâmetro, o Pulitzer (no qual se enquadra o Washington Post, americano) e o British Press Awards (no qual se enquadra o Financial Times), o Financial Times ganhou 32 BPAs desde o ano 2000, contra 29 Pulitzer do Washington Post. Desconsiderando gargantas profundas e homens do presidente, que remetem aos anos 70, neste parâmetro a qualidade pelo menos se equivale.

Os outros negócios

A explicação começa a fazer sentido quando analisamos os outros negócios do grupo Pearson. A presença no mercado do Financial Times não se resume ao jornalismo; é uma carteira ampla de negócios para investidores no mercado.

Além de um site em chinês, o Financial Times ainda possui análises financeiras, um sistema de treinamento para investidores em Nova York, uma rede de publicações para executivos visando coaching, cinco publicações específicas para profissionais do mercado financeiro, duas publicações sobre fundos de pensão ingleses e alemães e um laboratório de desenvolvimento de software. Quando Bezos comprou o Washington Post, levou consigo seis jornais, um clube de vinhos, duas publicações de culinária, uma publicação de moda, três publicações voltadas para o mercado imobiliário e 10 guias voltados para militares.

O impacto das publicações do Washington Post acontece sobre a sociedade civil e militar norte-americana, com impacto nas sociedades internacionais relativo ao peso e à relevância do conteúdo. O impacto das publicações do Financial Times acontece sobre a sociedade civil em pequena escala e sobre o mercado financeiro em larga escala. É essa a diferença de 1,1 bilhão de dólares.

O Financial Times vendeu, junto com o seu jornalismo, uma rede colossal de networking e conteúdo produzido por executivos com impacto direto nas bolsas de valores do mundo inteiro. O Washington Post vendeu uma base de assinantes, rotativas, escritórios e publicações que dependem da qualidade dos jornalistas. O Financial Times vende um produto escasso: dados que produzem dinheiro. O Washington Post vende uma commodity: conteúdo.

Isso também pode explicar por que o grupo foi comprado por japoneses.

A liberdade de imprensa sobre o mercado financeiro

Dois tweets de uma repórter japonesa do New York Times deixam o tema mais intrigante.

O leste asiático tem os mercados financeiros mais emergentes do mundo (o volume de negócios da Bolsa de Xangai diz muito sobre isso) e o impacto de notícias negativas sobre esses mercados pode ser avassalador. Não é necessário ser um grande especialista para perceber que a Nikkei não é muito afeita a espalhar notícias catastróficas.

Diante do escândalo do Estádio Olímpico de Tóquio e do colapso das candidaturas das Olimpíadas de Inverno de 2022, uma reportagem especial mostra as maravilhas da cidade candidata do Casaquistão, citando de passagem os problemas com as exigências do COI.

Diante da questão global do câmbio apreciado e da desvalorização das moedas locais, uma brilhante peça de propaganda das empresas japonesas que expandem seus negócios e tornam seus produtos mais competitivos com o iene baixo.

Isso sem falar no atraente mercado de luxo da capital nipônica, na glória do expansionismo chinês que coloca a Rússia de joelhos, nas excelentes perspectivas do possível acordo comercial do Pacífico com os EUA, na expansão dos cartões de crédito em Myanmar e até nas oportunidades de negócios trazidas pela queda na popularidade do premiê Shinzo Abe (é isso mesmo). A empresa que comprou o Financial Times tem um sólido trabalho como relações públicas do mercado financeiro do leste asiático.

Segundo a Agence France-Presse, o ministro japonês da revitalização econômica Akira Amari afirmou que a compra do Financial Times pela Nikkei permitirá “que as informações sobre a economia japonesa sejam expressas de forma mais exata para a comunidade internacional”. Se o governo japonês considera a Nikkei um padrão de exatidão, temos com clareza o objetivo do negócio: evitar que notícias negativas travem a expansão da economia local.

Qual jornalismo econômico é confiável?

Diante da crise da mídia provocada pelo aumento do peso do vetor audiência, a quantidade colossal de dinheiro investida no Financial Times coloca em xeque a ideia de que o negócio das notícias é o negócio da atenção. A notícia nunca deixou de ser um produto relevante para quem faz política pública ou econômica.

O negócio, inclusive, pode suscitar dúvidas sobre determinados discursos hegemônicos que existem no jornalismo de economia. Até que ponto o peso de uma análise de mercado no agendamento corresponde a critérios de objetividade? Até que ponto o impacto dessas análises no mercado financeiro não corresponde a interesses políticos e econômicos de acionistas e donos de empresas de notícias? Até que ponto podemos considerar que temos uma pluralidade de opiniões e de perspectivas sobre fatos nessas editorias?

Enquanto boa parte dos veículos de mídia se vira para conquistar a atenção em meio a universos barulhentos, padrões de discurso sobre determinados nichos estão valendo fortunas. A Nikkei não comprou apenas um veículo: comprou um padrão de discurso, um negócio expandido e uma referência de credibilidade. Não será surpreendente se descobrirmos, dentro de algumas décadas, que essa compra foi para objetivos muito diferentes do jornalismo.

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luís felipe d.s
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