Vozes do Case — Exclusivo: Vigilância contra a violência

Farol Reportagem
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11 min readNov 29, 2017

MPSC e Justiça afastam agentes socioeducativos acusados de agressões e tortura no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) da Grande Florianópolis. Os casos revelam as violações aos Direitos Humanos dos adolescentes e, segundo o promotor de Justiça da Vara da Infância e Juventude, fazem o Estado retomar o tratamento degradante e desumano aos quais foram submetidos os internos do Centro Educacional São Lucas, interditado judicialmente em 2010 e classificado na época pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como “masmorra”.

Lúcio Lambranho, Gabriela Rovai/Coruja Filmes e Eduardo Cavalcanti/Retrato

Construído em 2014, às margens da BR-101, em São José, na Grande Florianópolis, o Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) tem uma estrutura com nove alojamentos, quadra de esportes, ginásio coberto, espaço para oficinas, anfiteatro, centro de saúde, salas de aula e informática e horta. São 8,4 mil m², cercados por muros de cinco metros de altura, e com capacidade para receber até 90 jovens — 70 com apreensão já decidida pela Justiça, e 20 provisórios, que pode ficar internados por até 45 dias. Com o novo prédio, o Case parecia adequado ao desafio de reeducar jovens condenados ou a espera de julgamento por alguma infração, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A estrutura é impressionante, principalmente se for comparada com o antigo Centro Educacional São Lucas, que ocupou o mesmo terreno de 1972 a 2010 e chegou a ser apelidado de “masmorra” por um grupo de juízes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em visita ao local. Também conhecido como “cadeião dos menores”, o espaço foi fechado pela Vara da Infância e Juventude de São José após uma série de denúncias de condições insalubres do prédio, recorrentes registros de torturas e violências praticadas contra os adolescentes por monitores, mortes e o não cumprimento das determinações judiciais que tentavam melhorar as condições da unidade.

A impunidade nos casos de atos ilegais e violações dos Direitos Humanos praticados pela omissão do Estado e de servidores é uma das marcas deixadas pelo São Lucas. A reportagem identificou uma única denúncia apresentada, ainda em julho de 2009, pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) contra três servidores da antiga instituição pelo crime de tortura. Os agentes foram absolvidos em julho de 2016 por falta de provas e por que as vítimas e testemunhas voltaram atrás nos seus depoimentos na fase judicial do processo.

O site encontrou ainda uma decisão do Estado de Santa Catarina de demitir um dos monitores envolvidos em atos violentos após processo administrativo disciplinar. O servidor foi acusado de ameaçar os internos com uma arma de fogo. Ele recorreu da decisão e teve a demissão confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STF) em abril de 2017. Pouco antes de ser fechado, em dezembro de 2010, a imprensa foi até o local e conheceu o porão onde os internos, segundo o MPSC, foram torturados com choques elétricos.

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Quatro anos depois do fechamento do São Lucas, no dia 2 de junho de 2014, o governador do Estado, Raimundo Colombo (PSD), inaugurou a nova unidade. Até o final de 2016, 32 internos já tinham fugido da unidade e, atualmente, a capacidade do Case está limitada, segundo o MPSC, a apenas dez vagas. O local nunca funcionou com a capacidade total apesar da nova estrutura que custou mais de R$ 12 milhões e foi construída por meio de um convênio com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Motivos não faltaram para Justiça delimitar o funcionamento do novo centro tão pouco tempo depois de sua inauguração: danos causados à estrutura física durante fugas, rebeliões, falta de funcionários e ausência de câmeras de monitoramento — danificadas e retiradas do local assim que foram registradas as primeiras denúncias de torturas e agressões contra os internos.

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Denúncia da promotoria detalha a "tortura do vazado"

Denúncia da Promotoria detalha a “tortura do vazado”[/caption]

As imagens poderiam confirmar os relatos das vítimas, os depoimentos dos colegas internos que presenciaram os atos violentes e ratificar os exames de corpo de delito que comprovaram as lesões nos jovens. No entanto, parte delas sumiu dos arquivos aos quais os acusados das agressões tiveram livre acesso. As que restaram são provas apresentadas pelo MPSC desde 2015 à Justiça.

Processos da Corregedoria da Secretaria de Justiça e Cidadania (SJC), pasta que comanda o sistema socioeducativo e penitenciário em Santa Catarina, ouviram depoimentos de colegas dos agentes envolvidos nas denúncias que abonaram as condutas dos investigados ou confirmaram as versões dos acusados pelo Ministério Público. As investigações da secretaria inocentaram todos os três agentes efetivos e outros cinco contratados como temporários não estão mais a serviço do Estado de Santa Catarina.

No entanto, os casos investigados pelo Ministério Público ainda estão sob julgamento em quatro processos judiciais aos quais o Farol Reportagem teve acesso com exclusividade. Dos oito agentes socioeducativos foram afastados pela Justiça, apenas um dos servidores responde a um inquérito policial, por crime de maus tratos, segundo levantamento feito na Justiça Estadual. O relato de tortura sequer foi mencionado no inquérito e um promotor de Justiça pediu que o agressor pagasse dois salários mínimos para a mãe da vítima.

Desde que o gerenciamento do sistema socioeducativo e prisional saíram da competência da Secretaria de Segurança Pública (SSP) com a criação da Secretaria de Justiça e Cidadania (SJC) em abril de 2011 pelo governo estadual, a pasta tem sido comandada politicamente pelo PMDB e sob a responsabilidade da deputada eleita em 2014, Ada de Luca. Secretária nos dois governos de Raimundo Colombo (PSD), figura política influente no partido inclusive nos dois governos anteriores do PMDB de Luiz Henrique da Silveira.

Na última sexta-feira (24), Ada de Luca e sua campanha eleitoral se tornaram alvo da Operação República Velha, ação da Polícia Federal (PF) determinada pelo Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina (TRE-SC). A PF investiga caixa dois, corrupção eleitoral e associação criminosa na campanha de Ada, no sul do Estado, reduto político da secretária da SJC. “Hoje aqui de forma emblemática se dá um passo importante na reconstrução de um novo prédio, mas com um novo conceito”, prometeu o governador no dia da demolição do São Lucas em junho de 2011.

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Promessa Política - Secretária Ada de Luca em entrevista no dia da demolição do São Lucas

Mudança ficou só na promessa política — Secretária Ada de Luca em entrevista no dia da demolição do São Lucas.[/caption]

“Vamos escrever uma história nova no Estado de Santa Catarina. Não só na questão do jovem, adolescente, menor, mas de todo um processo no sistema prisional”, arrematou a secretária Ada de Luca na mesma cerimônia em que máquinas derrubaram a estrutura insalubre do São Lucas.

Desde então, os dois sistemas, o socioeducativo e o prisional, ao contrário do que prometeram os dois políticos são palco para registros de casos de violações dos Direitos Humanos e de proteção aos acusados de tortura e maus tratos contra jovens e presos adultos.

Foi o que revelou o especial Crimes no Cárcere e outras reportagens publicadas por este site. No levantamento publicado no jornal Notícias do Dia, mostramos como parte do sistema que legitimou casos graves foi a lei complementar 605/2013, aprovada pela Alesc (Assembleia Legislativa de Santa Catarina). O artigo 29 da norma abriu brecha para que os acusados e até mesmo condenados pelos crimes já denunciados à Justiça não respondessem aos processos internos e administrativos na Corregedoria da SJC até o julgamento pela última instância do Judiciário.

Ao contrário: seis réus nos processos de tortura foram promovidos, inclusive a diretores de unidades. Ao todo doze agentes prisionais que ocuparam cargos de direção nas unidades respondem a processos judiciais pelos crimes de tortura, assédio sexual e improbidade administrativa. Em agosto de 2016, o site mostrou que o ex-diretor de presídio catarinense espancava presos com porretes onde se lia o nome de analgésicos.

Quando o Case foi recriado com o novo espaço em 2014, o MPSC denunciou a omissão da SJC pela falta de funcionários para trabalharem no local. Na ausência de um concurso público, o governo criou cargos terceirizados, os chamados ACTs (Admitidos em Caráter Temporário). Em setembro deste ano, o espaço foi interditado justamente por falta de funcionários.

Cinco dos oito agentes afastados pela Justiça por agressões aos adolescentes eram ACTs e não passaram pelo treinamento de “quase 400 horas” como destacou a secretária Ada de Luca na cerimônia de formatura dos novos 237 agentes de segurança socioeducativos no último dia 20 deste mês. “Se na época a Secretaria tivesse seguido nossa sugestão, em fazer o concurso público em 2014, a situação seria bem diferente”, afirmou o promotor Gilberto Polli, autor de ação que afastou os agentes e contra a criação dos cargos temporários em entrevista ao jornal Notícias do Dia.

“A despeito da iminência da entrega da obra física, nada havia feito o Estado de Santa Catarina para a criação do corpo técnico efetivo e responsável pelo sistema pedagógico propriamente dito, optando o demandado por realizar processo simplificado de seleção, às pressas e ao arrepio da lei, para contratação de servidores temporários”, reforça o promotor em outra ação ainda de 2015.

Neste processo, o promotor questiona a quantidade de comida servida aos internos e a ausência de atendimento de saúde na unidade, além da falta de atividades profissionalizantes. São estas falhas que também contribuíram para que a Justiça mantivesse a capacidade reduzida do Case desde sua inauguração.

“Cultura do medo”

Nomeado informalmente como chefe da segurança do Case pela administração estadual, Eduardo Rocha Peres é acusado de praticar tortura contra um interno e agressões físicas contra outros quatro jovens. Segundo o Ministério Público, ele algemou um adolescente na janela do seu quarto e o deixou imobilizado por 12 horas na mesma posição.

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Segundo a Promotoria da Infância e Juventude de São José, o servidor público já tinha sido afastado a pedido da juíza da Vara da Infância e Adolescência de Florianópolis quando trabalhava no Plantão de Atendimento Inicial (PAI), na capital. O PAI é o lugar para onde são levados os adolescentes apreendidos até que seja determinada sua internação definitiva ou outro tipo de medida pela Justiça. Peres também trabalhou no São Lucas entre 2007 e 2011. Segundo o Portal da Transparência, Eduardo Rocha Peres está trabalhando atualmente ou tem sua lotação formal, apesar da denúncia e de seu afastamento determinado pela Justiça, novamente no PAI de Florianópolis. (leia mais sobre este caso).

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Relato de interno sobre o tratamento recebido no Case

Relato de interno sobre o tratamento recebido no Case[/caption]

Gilberto Polli, o promotor de Justiça que fez os pedidos de afastamento dos oito agentes, narra os antecedentes do antigo reformatório e a tentativa de se retornar à mesma política de tratamento desumano do velho São Lucas no Case:

“Existem ainda agentes socioeducativos que, na clandestinidade, desejam impor a cultura do medo que imperou durante anos nas ‘masmorras’ daquela entidade de internação. Suas mentalidades estão forjadas para punir os adolescentes internos e não para educá-los. Em razão dessas intenções espúrias, cabe ao poder público coibir qualquer forma de prática que remeta ao ocorrido no passado e viole os direitos dos internos”, explica o promotor.

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Polli não aceita as alegações de que os agentes precisam usar a força diante de ameaças e outras provocações dos internos. “A agressão física de um agente a um dos internos, ainda que este o tenha provocado com ofensas ou ameaçado de maneira oral, extrapola o razoável e se torna inadmissível sua presença nesse meio, sob pena de contribuir para estimular mais reações dessa natureza”, afirma.

A juíza da Vara da Infância e Adolescência de São José, Ana Cristina Borba Alves, que concedeu todos os afastamentos dos agentes e assinou a interdição do São Lucas em 2010, também alerta para o retrocesso que as novas torturas e agressões podem provocar no sistema socioeducativo de Santa Catarina.

“Esta magistrada já teve a oportunidade de consignar, em outra ocasião, a preocupação com o tratamento desumano e degradante de que foram vítimas os adolescentes internos do CER — São Lucas, entidade interditada judicialmente em 2010. É lamentável a repetição de tal comportamento, logo após a inauguração da nova estrutura do Case da Grande Florianópolis”, diz a juíza em todas as sentenças em que determinou o afastamento dos agentes socioeducativos.

Desde a última sexta-feira (24), o Farol tenta contato com a Secretaria de Justiça e Cidadania (SJC), mas até o fechamento desta edição não recebeu retorno sobre as perguntas enviadas por e-mail.

Entre as famílias dos jovens, medo de retaliações e novas agressões, dor e indignação

Tortura, asfixia, espancamento, humilhação. A violência que deu origem aos oito processos, praticada por agentes socioeducativos no interior do Case da Grande Florianópolis, de acordo com o Ministério Público, ocorreu no período entre 2014 e 2016.

São 12 adolescentes vítimas de violência por parte dos oito agentes socioeducativos afastados. A reportagem conseguiu identificar sete desses jovens. Dos sete, três foram procurados pelo site que elegeu como os casos mais graves.

Dos três casos escolhidos, dois jovens estavam presos e um foi detido pouco tempo depois do contato com a família. Os três são maiores de idade. Nenhum quis dar entrevista sobre a violência que sofreram no Case.

A primeira vítima que a reportagem procurou, o contato foi feito com a advogada. Ela tentou algumas vezes, mas não conseguiu “acesso com o cliente nesse ponto”. De acordo com a advogada, seu cliente não foi “muito aberto” em comentar publicamente sobre o que ocorreu no Case.

No segundo caso, a reportagem conversou uma hora e meia com a mãe do adolescente. Indignada com as agressões sofridas pelo filho, a mãe aceitou gravar entrevista, mas depois recuou, a pedido do filho (vítima) e da mãe (avó da vítima).

No terceiro caso, a reportagem falou com a mãe da vítima. Ela disse que achava importante tornar público a sua experiência durante o período de internação do filho e a violência sofrida por ele e pediu dois dias para pensar se aceitava ou não dar entrevista. A resposta foi negativa. A mãe disse que sofreu muito e não queria mais relembrar essa dor.

A reportagem continua à disposição das vítimas e de suas famílias, caso decidam dar entrevista.

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