Carta às feministas cisgênero brancas, como eu

Neste Dia da Visibilidade Trans* de 2018, reavivo alguns bons textos que encontrei em meus blogs desativados de épocas outras — sobretudo aqueles de quando estávamos apenas começando a debater esse tema pela internet. Este é um deles, publicado originalmente no Mulher Alternativa em 2013.

Marília Moschkovich
Feminismo e Gênero: modos de usar
4 min readJan 29, 2018

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Painel no centro de SP, inaugurado no fim de 2017. Autoria de Patrick Rigon e Renan Santos.

Caras companheiras de luta, brancas e cisgênero: há muito temos lutado juntas por um mundo com menos injustiças, com menos opressão. Nossa luta é histórica e tem se construído historicamente.

Isso quer dizer que somos herdeiras do que o feminismo já foi e determinamos hoje a herança das feministas que virão. Heranças são sempre cargas, às vezes um tanto pesadas, mas nos fazem quem somos.

Em nossa herança, temos décadas e mais décadas de guerreiras incansáveis, que reivindicavam direitos para mulheres. Durante boa parte destas décadas, afirmar as mulheres como uma categoria quase una (“a mulher”, “violência contra a mulher”, “direito da mulher”, e por aí vamos), foi uma estratégia importante. Desnaturalizar essa categoria como algo biológico (viva Simone!) também. Estes períodos foram fundamentais para que chegássemos ao que conquistamos hoje: direito ao voto, à educação, entre tantas outras coisas que podemos e não podíamos fazer, por fazermos parte desta categoria, “mulher”.

Recentemente (segunda metade do século 20, caso não tenham notado, é bem recente para a velocidade das transformações no campo simbólico e na cultura), várias mulheres que integram essa categoria conosco começaram a questionar sua representatividade. Numa sociedade racista, ser mulher negra não é o mesmo de ser mulher branca. Ao tratarmos todas como “mulher”, ou ainda, “a mulher”, não estaríamos negando o viés racial? Não estaríamos apagando especificidades que potencializam as violências sofridas, e os limites impostos? Ao fazermos tudo isso, não estaríamos também reproduzindo violências?

Sim. Estávamos. Estamos. Na distribuição de poder na sociedade, nós estamos por cima, sendo brancas (ou vistas como brancas, ou consideradas brancas). Mesmo que não queiramos, isso nos dá uma inserção e um respaldo por parte de muita gente. Se nós, que somos brancas, nos consideramos “universais” e pensamos que nossos problemas não tem nada a ver com raça (como se raça e gênero não se articulassem, como se existissem em esferas separadas da vida social), estamos reproduzindo esta violência.

Além das feministas negras, outras mulheres feministas passaram a apontar onde nossas generalização e nossa tendência a sermos um tanto autocentradas (porque, afinal de contas, a sociedade é nós-centrada) lhes faziam violência. As feministas lésbicas mostraram, por exemplo, que essa reivindicação de “direito a um pai” para crianças, ou a uma figura masculina, também era uma violência. Só que as feministas trans* e queer ousaram questionar uma categoria sobre a qual nossa história estava apoiada: a própria ideia de “mulher”.

Até o início dos anos 1980, não existia quase sequer o rascunho do que chamamos hoje teoria queer. “Gênero” era uma palavra entendida, em geral, como tudo que é construído socialmente a partir do sexo biológico (isso é, quando se falava em gênero — conceito que acabava de começar a ser elaborado e ainda estava se popularizando no meio acadêmico, que dirá no meio político). Nosso feminismo estava, até então, fortemente ligado a esse entendimento. Questionava-se as obrigações sociais das mulheres e certas exigências de comportamento, mas não se questionava o que era uma mulher. Mulher era, dado o entendimento até então, quem nascia com cromossomos XX, vagina, seios, etc. Para nossas ancestrais-feministas, isso não era uma questão a ser disputada. O que estava em jogo era o significado social imposto a este tipo de corpo.

Parece uma contradição, não parece? Quer dizer, lá no início do século 20, brigamos loucamente para que o “ser mulher” fosse compreendido como um produto social, algo construído socialmente. Ao final do mesmo século, quando aparece uma teoria que trata o “ser mulher” como algo construído exclusivamente no campo simbólico/social, sem relação alguma com o corpo biológico, centenas de grupos feministas se recusam a aceitá-la. A força do sistema de gênero no pensamento e na visão de mundo das pessoas (sistema esse que reforça a ideia da existência de um sexo biológico, o que a teoria feminista põe em xeque), inclusive das feministas, vem à tona. Uma série de nós, feministas que estamos nessa disputa do lado internamente dominante (sendo cis), nos recusamos a aceitar que uma mulher possa ter pênis, e que seja tão mulher quanto uma mulher que tenha vagina. Como se “ser mulher” fosse alguma coisa biológica — algo que nós lutamos historicamente para questionar. É ou não é um contrassenso?

Toda vez que associamos a condição de sermos mulheres a um tipo específico de corpo, estamos reforçando e reproduzindo uma violência de gênero. Estamos sendo cissexistas. Estamos apagando e não reconhecendo a existência de milhares (ou milhões, eu chutaria) de mulheres que simplesmente não têm este tipo de corpo. E não são “menos” mulheres. Dizer que alguém com certo aparelho reprodutor é “mais” mulher é tão violento e inverídico quanto dizer que quem tem filhos é “mais” mulher, percebem?

Minhas colegas de luta que, como eu, são brancas e cisgênero: nós não precisamos ter medo. Reconhecer que mulheres trans* são tão mulheres quanto nós, e reconhecer a desigualdade racial, não significa que nós sejamos “menos” mulheres, nem que a categoria “mulher” ou “mulheres” vá deixar de existir. Também não significa que também não sofremos, nós, opressão e discriminações e violências múltiplas por sermos mulheres. Infelizmente, nossa sociedade tem espaço para que todas nós nos sintamos oprimidas e estejamos em condição de desigualdade em algum momento por sermos mulheres. Não precisamos nos encarregar de sustentar essa violência umas para com as outras.

No dia de hoje, celebramos a existência que deveríamos celebrar todos os dias: as mulheres trans*, nossas fortíssimas aliadas numa luta contra as opressões de gênero, porque, se não por diversos outros motivos, sua reivindicação política materializa o que nós viemos sistematicamente lutando pra dizer:

ninguém nasce mulher, torna-se.

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Marília Moschkovich
Feminismo e Gênero: modos de usar

socióloga-antropóloga, escritora-poeta, feminista-comunista, antirracista, não-mono/relações livres