Depilação é a burca brasileira

Era o ano de 2005, em algum dia entre Agosto e Setembro. Eu tinha quase dezenove anos. Quase. Saía do país pela primeira vez, para participar de um fórum mundial de jovens. Superexperiência. O local? Tunísia, no norte da África, país muçulmano considerado um dos mais ocidentalizados entre os países árabes. Muitas histórias, muita coisa nova, muito aprendizado cultural — e era só a segunda metade do meu primeiro ano do bacharelado em Ciências Sociais. Imagino se eu voltasse lá hoje, como tudo seria diferente…

Fato é que eu estava no país fazia alguns dias já, quando conheci a primeira mulher tunisiana da minha idade. Na delegação tunisiana do evento só tinha representantes homens. Assim como nas outras delegações. Três anos depois em outra edição do mesmo evento, conversando com a única mulher árabe que representava seu país enquanto delegada, Fatma, egípcia, me explicaria que a dificuldade vai além das barreiras de gênero culturais, mas inclui também a legislação que não permite que mulheres viajem sem seus maridos ou familiares homens a não ser que tenham autorização expressa documentada. Em 2005, na Tunísia eu não sabia disso.

Em 2005, na Tunísia, eu não sabia de muitas coisas. Reproduzia, como vocês entenderão nesta breve anedota, um discurso segundo o qual as mulheres árabes muçulmanas são infelizes oprimidas e deveriam era fazer logo uma revolução, não usar véu e sair de fio dental por aí. Fio-dental sim é que era liberdade. Depois dessa viagem pensei, repensei, encontrei Marjane Satrapi na minha vida e tantas outras amigas árabes muçulmanas que me ajudaram a enxergar o quão complexas são as questões de dominação. Em qualquer lugar.

Então, ok. Cento e sei lá quantos jovens de dezenas de países diferentes, todos juntos. Fiz grandes amigos do Japão, da Irlanda, do México, da Argentina, do Canadá e por aí vai. Não à toa que minha página do Facebook tem centenas de amigos com nomes às vezes impronunciáveis em português. Culpa desses eventos deliciosos. O nome da primeira tunisiana que conheci não me lembro. Ela mudou minha vida e nem mesmo trocamos contato. Acho que na época nem eu nem ela sabíamos disso.

Eu dançava dança do ventre e numa oportunidade lá dei uma palhinha que chocou geral: brasileira, cara e nome de européia e chacoalhando na dança do ventre? É. Era eu mesma. Depois deste dia, ganhei a simpatia de todas as delegações árabes (e alguns pedidos absurdos — e sérios! — de casamento). Numa das saídas culturais para conhecer sítios históricos, arqueológicos e sabe-se-lá mais o que (faz tempo…) ela sentou ao meu lado no ônibus. Era verão. Fazia 40ºC na sombra. Os ônibus não tinham um ar condicionado potente e, mesmo se tivessem, duvido que refrescaria muito. O clima é muito quente e muito seco.

Começamos a conversar, ela supersimpática, uma fofa, fofa, fofa. Aí reparei que enquanto eu estava de saia (uns dois dedos acima do joelho pra não chocar geral entre outras consequências perigosas), blusinha de manguinhas e cabelo preso, ela estava de saia até o tornonzelo, meias, tênis fechado, blusa de manga comprida. Ela não usava véu. Não são muitas jovens que usam véu na Tunísia. Algumas senhoras apenas, pelo que vi durante a viagem de quase um mês ou pouco mais que isso, já não me lembro.

Imaginei que ela estivesse morrendo de calor e perguntei. Ela disse que não, que já estava acostumada e as roupas ainda a protegiam do sol. Em minha ignorância antropológica pensei “coitada, tão dominada…” e continuei cutucando o assunto pra ver se dava caldo. Quem sabe ela não começava uma revolta ali mesmo? Quem sabe eu, que era ocidental, educada na liberdade, não abria seus olhos?

Ela me disse, então, algo muito, mas muito, muito, muito sábio. Gostaria de ter registrado as palavras exatas, mas não lembro. Tentarei reproduzir.

– As roupas compridas aqui são a depilação de vocês.

– Hein? (claro, não entendi nada na época)

– Nós podemos, aqui na Tunísia, usar roupas curtas como as que você está usando.

– Então como não usam, com um calor desses?

– Bom, aí é que está a questão. Poder, você pode. Mas se você usar, não consegue namorado, aí não consegue casar, aí é uma tristeza pra você e pra sua família…

– Mas e a depilação?

– Bom, imagino que dói fazer depilação, certo?

– Sim.

– Então por que vocês se depilam sempre? Teoricamente você pode parar certo?

– É, mas aí…

Creio, leitoras (e eventuais leitores), que não preciso continuar a conversa. Confio no nível de inteligência de vocês. O que tememos que aconteça se não nos depilarmos? Por que nos sentimos “sujas” ou “feias” se não estamos depiladas?

Depois desta lição de vida (e outras mais) na Tunísia, meu ponto de vista e minhas perspectivas e opiniões sobre depilação, véu, burca, dominação de gênero, estética e por aí vai, mudaram para sempre. A complexidade das relações que estabelecem um fenômeno social (como este sentimento de imprescindibilidade da depilação na sociedade brasileira) vai muito além de relações imediatistas de causa e consequência como somos levados a acreditar pelos meios de comunicação de massa. Prometo falar disto melhor um outro dia. Lembrem de me cobrar se estiverem interessadas/os.

Em suma: o buraco é muito mais embaixo.

[Ps.: prova disso é que eu queria colocar uma figurinha aqui que representasse dor de depilação; na internet inteira, via Google Images, só encontrei fotos de mulheres FELIZES, SORRINDO durante a depilação. Alguém aí sorri no meio da depilação? As únicas que apareciam de gente sentindo dor eram de… homens. Então tá, sociedade, falou, só homens sentem dor ao arrancarem pelos com cera quente.]

texto originalmente publicado no extinto Mulher Alternativa, em 05/04/2010

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Marília Moschkovich
Feminismo e Gênero: modos de usar

socióloga-antropóloga, escritora-poeta, feminista-comunista, antirracista, não-mono/relações livres