“Por que a puta é explorada e a trabalhadora de uma fábrica não?”

Marília Moschkovich
Feminismo e Gênero: modos de usar
8 min readFeb 20, 2019
Georgina Orellano, secretária geral da AMMAR (Associação das Muheres Meretrizes da Argentina). Foto: Virginia Robles.

Puta, feminista e peronista. Foi candidata parlamentar e hoje dirige o sindicato AMMAR, que congrega mais de 6500 trabalhadoras sexuais ao redor do país [Argentina]. Entrevista com uma das vozes emergentes e mais potentes da nova onda feminista.

[Texto publicado originalmente em El Grito del Sur, 17/02/2019. Tradução de Marília Moschkovich para o português brasileiro. Grifos da tradutora]

Santino, 12 anos, dorme em seu quarto. Passou a noite jogando Fortnite enquanto aproveitava o último dia de férias antes de começar o sétimo ano. Desde os seis anos Santino sabe que sua mãe é a secretária geral de uma associação, mas não de uma qualquer: Georgina Orellano é a dirigente máxima da AMMAR (Associação de Mulheres Meretrizes da Argentina), a representação institucional das trabalhadoras sexuai argentinas, um sindicato com mais de 6500 filiadas em todo o país entre mulheres, trans, homens e pessoas de gênero não-binário. Como há mais de dez anos, Georgina segue trabalhando na rua, no bairro portenho Villa del Parque. Desta vez nos recebe na outra ponta da cidade, em seu apartamento em San Telmo, coberto de pôsteres, desenhos e adesivos feministas, de Eva [Perón] e Cristina [Kirchner].

Recentemente você disse que com a crise há cada vez mais mulheres procurando o trabalho sexual.

Nos últimos anos houve um aumento de companheiras que eram trabalhadoras sexuais, haviam deixado de exercer esse trabalho e encontrado outras formas de participação popular na economia: vender roupa, ter uma barraca em alguma feira aberta. Agora que começou a ficar mais difícil de fechar as contas no fim do mês, voltam a considerar o trabalho sexual como forma de sobreviver à crise econômica. Cada vez mais mulheres se aproximam da AMMAR e nos perguntam como podem começar no trabalho sexual.

E como a AMMAR encaminha uma jovem que se aproxima pela primeira vez com esse tipo de questão ou pedido?

Primeiro dizemos para considerarem que este é um trabalho clandestino, que carrega muito estigma. Que uma coisa é o que vivemos nos espaços feministas, onde nós putafeministas temos marcado presença e ganhado algum apoio, mas que nos demais setores sociais o mesmo não acontece. Quando saímos para trabalhar, na esquina, sempre temos problemas com vizinhos, polícia, etc. tudo respaldado pelo estigma e pela exclusão. Trazemos elas para a realidade: de que é um trabalho com poucas vantagens, que pode ser dinheiro rápido ou em que se pode estabelecer o próprio preço, mas também há uma série de componentes negativos. Na rua não se pode parar qualquer um, pois há determinados códigos; deve-se respeitar preços estabelecidos por zonas, que se definem anualmente com as companheiras. Tentamos explicar as desvantagens e dizer que não é um trabalho empoderador, porque nenhum trabalho te empodera. O que empodera é a organização sindical, que nos permite ser visíveis. Tratamos de diminuir um pouco as expectativas delas. Ser puta na era Macri não é ser revolucionária, é ser uma trabalhadora precarizada da economia popular. E temos que defender nosso lugar porque há uma política de expulsão [das putas] do espaço público.

Foto: Virginia Robles

Como a sociedade machista e patriarcal constrói suas narrativas sobre as putas?

Há dois tipos de construção. Por um lado, a vitimização, que procura nos silenciar e nos colocar em um lugar em que somos vítimas: não podemos escolher, não temos poder de decisão, o Estado precisa nos ajudar. Uma questão de compaixão. Por outro lado, há um olhar mórbido: estamos nisso porque queremos, gostamos de dinheiro fácil. Não há uma mediação entre esses olhares socialmente localizados. A mediação, justamente, é a voz que nós propomos: somos trabalhadoras, provavelmente não escolhemos com o que trabalhamos, mas pensamos que isso acontece com muitos trabalhadores. Mas por que então dizemos que apenas a puta não escolhe, quando todos os trabalhadores são explorados? Sempre nos pensam como vítimas e não como trabalhadoras.

Por quê?

Isso tem a ver com o olhar de sacralidade com que a sexualidade da mulher é pensada num sistema machista e patriarcal. Nos fizeram crer que na sexualidade precisávamos obedecer ou padecer: obedecemos ao patriarcado ou padecemos do olhar de um sistema que diz que não temos saída então o patriarcado tem que nos salvar. Quando discutimos a questão do trabalho sexual, a sexualidade aparece como um eixo central. Há muito desconhecimento: por um lado, muita romantização e, por outro, uma vitimização brutal que nos entende como incapazes de decidir.

Certamente temos críticas em relação ao trabalho sexual, porque as condições em que o exercemos são indignas. Não queremos nem proibi-lo, nem aboli-lo, mas transformá-lo, porque o trabalho sexual vai continuar existindo. Mas são mudanças de paradigma que precisaremos operar quando arrancarmos tudo que a Igreja Católica colocou em nossas cabeças. Para além de dizer que o patriarcado vai cair, é preciso tirar de si o patriarcado que levamos dentro de nós. Por que pensamos que a sexualidade é sagrada? Por que queremos salvar a trabalhadora sexual e não a companheira catadora de recicláveis? Ou por que a puta é explorada e a trabalhadora de uma fábrica não? Isso é falta de consciência de classe somada à consciência de gênero.

Foto: Virginia Robles

Qual a diferença entre uma trabalhadora sexual pobre e uma de classe média?

Essas são discussões internas que temos com frequência. Com companheiras que trabalham nas ruas e com aquelas que trabalham em redes sociais, o que não é a mesma coisa. Mas entendemos que o mundo do trabalho também começou a mudar e procuramos trabalhar as semelhanças que temos. Por isso chegamos a uma conclusão de que o mesmo estigma nos atravessa todas: por mais que você tenha um apartamento ou more em Puerto Madero, o estigma de puta vai te perseguir por todos os lados e esse estigma não faz diferença de classe. Te atravessa como ‘puta de merda’ ou como ‘puta que quer pertencer a uma classe que não é a sua’.

O que acontece com as trabalhadoras sexuais quando envelhecem? Você fala de capital erótico, que no capitalismo patriarcal diminui com a idade…

O sistema capitalista quer os corpos femininos sempre jovens e belos, porque podemos produzir mais. O que acontece com as trabalhadoras sexuais acontece com várias outras trabalhadoras. A recepcionista que chega aos 45 sabe que tem que aguentar os maus tratos porque, se quiser impor condições, será demitida e terá dificuldade de conseguir outro emprego.

O que acontece com muitas companheiras é que não podem de maneira nenhuma se aposentar. Em Villa del Parque há uma praça histórica em que seguem trabalhando as companheiras de 60 ou 70 anos de idade. Vemos com preocupação que não possam desfrutar de uma aposentadoria. Pensamos alternativas porque sabemos que o debate do trabalho sexual vai levar tempo, e não temos mais sequer um Ministério do Trabalho. Não podemos apresentar um projeto de lei para que se reconheça o trabalho sexual num momento em que a política do governo neoliberal é de retirada de direitos. A tarefa do movimento de trabalhadoras sexuais neste ano de eleições é gerar consciência nas companheiras na hora de votar, para que o façam com responsabilidade.

Como você vê o ressurgimento do feminismo ‘radical’ ou transfóbico?

Penso que se explica pelo avanço da direita em toda a região, e pelo retrocesso que vivemos como pátria grande: Bolsonaro, Macri, Trump. Acreditávamos que tínhamos dado um salto qualitativo e fechado esse debate, mas não foi bem assim. Em um momento chegamos à frente, mas isso não quer dizer que essa gente evaporou. Estão aí, são parte da Igreja Católica, da evangélica. Historicamente todos os setores que buscaram inclusão precisaram também buscar inclusão no movimento feminista. As companheiras lésbicas tiveram que viver um longo processo porque havia feministas que não as queriam no movimento, por pensarem que as pessoas ficariam com a imagem de que todas as feministas seriam lésbicas. O mesmo com as companheiras travestis e trans: começaram seu próprio espaço e, quando apareceram pelas primeiras vezes, as rechaçaram dizendo que eram homens vestidos de mulher. Me traz preocupação que esse seja um discurso assumido por mulheres mais jovens. Por que pensam isso, com essa idade?

Foto: Virginia Robles

Como você responde quanto te acusam de cafetina?

Não acreditamos que esses problemas se resolvam mediante um fiscal ou um juiz. São questões que se resolvem no debate político. A verdade é que eu não ligo. Há companheiras que insistem para que eu responda. No entanto, ou respondemos todas as provocações ou nos dedicamos a construir uma organização sindical. Então priorizo resolver problemas de violência de gênero, perseguição policial, companheiras que não consegue chegar ao fim do mês com dinheiro ou que precisam de ajuda porque os filhos entraram no crack.

Que relação existe entre o tráfico de pessoas e o trabalho sexual?

Há uma relação entre o tráfico de pessoas e outros trabalhos. O que colocamos e discussão é que as políticas estatais iniciadas para supostamente combater o tráfico tenham se focado apenas no trabalho sexual. Se da mesma maneira como proibiram os locais de trabalho de nossas companheiras, tivessem proibido confecções de roupas, o campo, marcas de roupa, teria sido um avanço sobre o sistema capitalista. Aqui o que se combateu de fato foram as putas. Colocaram tudo no mesmo saco e as políticas proibicionistas geraram muito mais clandestinidade e se mostraram equivocadas porque elaboradas sem levar em conta as opiniões das trabalhadoras sexuais.

Você foi candidata a parlamentar em 2015. Você continua apostando na política institucional? Se imagina como uma presenta puta?

Imagino Cristina [Kirchner] estando junto com as putas. Nossa luta não é sectária: quer dizer, quando tivermos acesso a benefícios sociais e aposentadoria não vamos fechar o sindicato. Compreendemos que nenhuma luta se ganha de um lugar individualista, sem que nos vejamos como parte da classe trabalhadora. Certamente nossa prioridade é que o trabalho sexual seja despenalizado. Mas também queremos mudar a posição do Estado, nossa disputa é para que haja funcionárias no Estado que tenham uma posição pró-trabalho sexual. Então, quando forem legislar, poderão nos convocar e consultar. Queremos que as advogadas, fiscais e legisladoras tenham um olhar de gênero e pró-trabalho sexual.

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Marília Moschkovich
Feminismo e Gênero: modos de usar

socióloga-antropóloga, escritora-poeta, feminista-comunista, antirracista, não-mono/relações livres