UMA TRAGÉDIA-SÍMBOLO DO RETROCESSO CULTURAL NO BRASIL

Fernanda Cui
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5 min readOct 28, 2018

O incêndio de grandes proporções que tomou conta do Museu Nacional no domingo (2/9) deixou um prejuízo incalculável para nossa história. Fundado em 1818 pelo D. João VI, o prédio foi residência da família real brasileira e tinha um acervo com mais de 20 milhões de peças, sendo considerado a instituição histórica mais antiga do país. O fogo que queimou um dos maiores e mais importantes acervos nacionais é a prova do descaso recorrente do poder público em relação aos bens culturais e é também a representação simbólica do retrocesso histórico pelo qual o Brasil tem passado. Juscelino Kubitschek foi o último presidente a visitar o museu, sendo isso mais uma prova do desinteresse por parte das instituições federais.

Logo na entrada do museu o visitante que ali passasse se depararia com a seguinte placa: “Todos que por aqui passem, protejam esta laje, pois ela guarda um documento que revela a cultura de uma geração e um marco na história de um povo que soube construir seu próprio futuro.”, que hoje soa mais como um pedido de socorro. Ali se abrigava o quinto maior acervo do mundo e os exemplares mais emblemáticos da história antropológica, como o fóssil de mais de 11 mil anos de Luzia, a mulher mais antiga das Américas e o esqueleto de Angaturama Limai, o maior dinossauro carnívoro brasileiro.

Ainda em maio deste ano, a Folha de S. Paulo revelou o descaso do poder público em relação ao museu. Com salas fechadas devido às más condição, o museu tentava arrecadar, através de financiamento coletivo na internet, verba para a reabertura de uma das salas que foram atacadas por cupins. Muitas paredes estavam descascadas, os fios elétricos estavam expostos e a má conservação era generalizada. O prédio, que segundo o Corpo de Bombeiros não tinha alvará, sofria as consequências da falta de cuidados que persiste há anos. Até abril de 2018, o orçamento enviado a instituição foi de apenas R$ 54 mil, enquanto em 2013 foi de R$531 mil. Os problemas estruturais e a falta de investimentos explicam a queda do público desde 2013. Em 2016 recebeu menos de 118 mil visitantes — naquele mesmo ano, a UFRJ decidiu fechar temporariamente o museu por conta da falta de dinheiro para pagar os terceirizados.

Nesse ano a direção do museu tinha assinado, em celebração ao bicentenário, um contrato de R$ 21,7 milhões com BNDES para financiamento do processo de restauração através de recursos da Lei Rouanet. Os recursos serviriam à restauração do prédio histórica e faziam parte da terceira fase do Plano de Investimento para a revitalização do Museu Nacional. O valor teria as seguintes finalidades: a recuperação física do prédio histórico, a recuperação de acervos, a recuperação de espaços expositivos — estimulando maior atração de público e promoção de políticas nacionais vinculadas ao acervo -, a revitalização do entorno do museu e o fortalecimento da instituição gestora. Em nota, o BNDES lamentou a tragédia e ainda afirmou estar à disposição do Museu Nacional e da Universidade do Rio de Janeiro para redirecionar os recursos já aprovados aos esforços para reconstrução do prédio e, no que for possível, na restauração do acervo.

Em entrevista à Agemt, o diretor administrativo do Museu Nacional, Wagner Martins, contou que o processo de resgate será lento pela sensibilidade dos objetos. Segundo ele, uma Comissão está a caminho do Museu para discutir os processos de reforma e restauração. “Será necessário um trabalho sensível de arqueologia, que demanda técnica, método e tempo. Não podemos simplesmente sair escavando tudo, não sabemos ainda o que foi perdido, as peças se encontram debaixo de escombros.”

O Museu Nacional é o retrato da falta de investimentos em acervos históricos pelo país. São 200 anos de história que se foram em algumas horas pela falta de investimentos na área de cultura. Durante pronunciamento, o presidente Michel Temer afirmou que aquele fora um trágico ocorrido para a museologia do país. Já o Ministério da Educação lamentou o ocorrido e afirmou não medir esforços para auxiliar a Universidade Federal do Rio de Janeiro na recuperação do patrimônio histórico.

O Governo Federal concedeu R$10 milhões para usos emergenciais no museu. Segundo Wagner Martins, ainda não existem previsões para outros investimentos, apenas esse emergencial que servirá para cercamento, escoramento e reformas necessárias a curto prazo para manter o museu em pé. Alguns países também se comoveram com a situação. A Alemanha prometeu doar um milhão de euros para ajudar na reforma. Argentina, Portugal e França também ofereceram ajuda.

DESCASO COM OUTROS PATRIMÔNIOS HISTÓRICOS

O fogo que começou a queimar por volta das 19h30 do dia 2 de outubro, não é o primeiro e nem será o último. Nos últimos cinco anos, no mínimo três centros culturais pegaram fogo. Em 2013, um incêndio atingiu o Auditório Simon Bolivar, no Memorial da América Latina. Em 2014, o fogo acabou com quase todo o acervo do Liceu de Artes e Ofícios, na Luz. Em 2015, o Museu da Língua Portuguesa também foi destruído. Todos na cidade de São Paulo. Hoje, o Masp funciona sem alvará do Corpo de Bombeiros.

Diversos acervos valiosos que incluem obras de arte e documentos raros do Período Colonial encontram-se em risco devido a problemas estruturais, como goteiras e infiltrações, além da ausência de sistemas de prevenção contra incêndios. Documentos de 400 anos estão à mercê de intempéries, calor, pragas e umidade excessiva. Na Bahia, o Solar Boa Vista, casarão de mais de 300 anos, foi destruído por um incêndio. Em Pernambuco, museus em Recife e Olinda enfrentam diversos problemas. O Mamam -Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães — passou por sua última requalificação elétrica em 2009 e enfrenta problemas de infiltração.

A grande maioria das obras públicas são feitas pensando no resultado imediato e muitas apresentam problemas técnicos nos primeiros cinco anos, como conta o estudante de arquitetura da Escola da Cidade, Guilherme Trevizani. Para ele, pouco tem sido feito para preservação dos prédios históricos do país. “Muitas vezes os problemas se dão por descaso e descontrole do Estado em administrar esses espaços, mas outras também por parte dos proprietários particulares que não estão dispostos a restaurá-los. Um exemplo disto foi a demolição com bomba caseira da mansão da família Martinelli na Avenida Paulista, que tramitava nos órgãos públicos para tornar-se o Museu do Operário e que hoje dá espaço para mais um empreendimento comercial”.

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