E quando o ‘mal do século’ chega no esporte?

Como atletas lidam com transtornos mentais

Gabriel Paes
Fervedouro
6 min readJun 3, 2020

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Por Alice Simi, Gabriel Paes, Henrique Schirru e Maria Clara Vieira

O Brasil possui números preocupantes de pessoas com depressão e transtorno de ansiedade: informações da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que 5,8% dos brasileiros (cerca de 12 milhões de pessoas) têm depressão. Esta é a maior taxa da América Latina e a segunda maior das Américas, atrás apenas dos Estados Unidos. Já a ansiedade afeta 9,3% dos brasileiros (cerca de 19,4 milhões), taxa que coloca o país em primeiro lugar na lista dos mais ansiosos do mundo.

Caracterizada por uma tristeza muito profunda, crônica, potencializada e duradoura, a depressão pode atingir qualquer pessoa, não existindo um grupo pré-determinado. No entanto, o “mal do século”, como são conhecidas estas doenças, tem atingido cada vez mais jovens e adolescentes e isso é um grande perigo para suas vidas. A OMS aponta que o suicídio é a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 24 anos.

A psicóloga clínica Gabriella Machado, formada pela UNIP e especialista em Reabilitação Neuropsicológica pela FMUSP, aponta que a depressão é uma doença com diagnóstico e, por isso, é considerada uma patologia:

“A depressão afeta a forma como o indivíduo pensa sobre si mesmo, a sua energia, suas emoções como um todo, a esperança quanto ao futuro, pois há uma grande falta de perspectiva em indivíduos depressivos”, afirma Gabriella.

Gráfico mostra a porcentagem de pessoas que sofrem de transtornos mentais no mundo e no Brasil. (Imagem: RS Design)

A OMS estima que, em todo o mundo, mais de 300 milhões de pessoas, de todas as idades, sofram com algum desses transtornos. E cerca de 800.000 tiram suas vidas ano após ano. A depressão pode ser um fator incapacitante, podendo afetar diretamente no trabalho, escola, relacionamentos e diversos outros âmbitos da vida daquele que sofre deste transtorno.

Apesar disso, muitas pessoas com depressão aparentam estar felizes. Isso faz com que as pessoas ao seu redor não percebam o momento difícil que aquele familiar ou amigo pode estar enfrentando. “Demonstrar é diferente de sentir. Ao mesmo tempo em que o sujeito vivencia situações positivas, ele retorna ao humor deprimido com a mesma potência, experimentando todos os sintomas depressivos de uma maneira muito individual, sem expressá-los”, completa Gabriella.

Depressão no esporte individual

Para amenizar os efeitos da pressão ou ainda evitar este mal, psicólogos e psiquiatras indicam a prática regular de atividade física associada a outros hábitos saudáveis, como boa alimentação, meditação e boas noites de sono. Isso se deve a uma liberação das famosas endorfinas no corpo, adotando um estilo de vida que te faça esquecer um pouco as obrigações diárias, como o trabalho. Mas o que acontece quando a principal ocupação do indivíduo é a prática esportiva? Como conciliar a atividade física do ofício com a do lazer?

Gustavo Schirru é formado pela USP e treina atletas de alto rendimento, tendo experiência com atletas que foram aos Jogos Olímpicos e torneios internacionais. Para ele, uma grande performance requer uma equipe cheia de cuidados por trás:

“Não só os treinadores precisam fazer uma preparação à beira da piscina com foco e motivação, mas questões mais profundas exigem um acompanhamento psicológico, que acho importante não só no alto rendimento, mas principalmente nas categorias de base. É essencial a presença desse profissional durante a formação do atleta, pois dessa forma você o ensina a se preparar para enfrentar grandes desafios, desde entrevistas nas competições até uma final olímpica. No Brasil, ainda falta essa cultura do acompanhamento desde cedo”, explica o treinador.

Diversos fatores como peso, alimentação, rotina, descanso, treinamento e cuidados médicos são fundamentais para obter uma alta performance, sendo que para tal é preciso atingir o maior desempenho possível em todas as áreas que estão sendo analisadas pela equipe. Em termos gerais, corpo e mente são diretamente conectados e se engana quem pensa que somente o esforço na academia vai trazer um bom resultado.

“Quando você é treinador, não pode se preocupar só com o estado físico do atleta, principalmente no nível do alto rendimento. Para um atleta que disputa uma Olimpíada, por exemplo, o que menos importa é o físico. Ele vai chegar lá, olhar para o lado e ver que está entre os melhores do mundo, cada um no auge da carreira. O que vai diferenciá-lo é estar mais preparado psicologicamente para aquele momento, para chegar e desempenhar a melhor performance”, afirma Gustavo.

O treinador de nadadores conta que, em muitos casos, é difícil identificar por qual transtorno mental o atleta passa. E naturalmente existem dias melhores e piores na vida de um nadador, assim como todo mundo. A questão, impossível de ser resolvida sozinho, é distinguir essas mudanças de humor de um transtorno mental e saber precisamente qual é a necessidade daquele indivíduo.

“Você precisa de uma equipe multidisciplinar que te dê suporte para isso, para você enxergar qual é cada caso e saber lidar com o atleta da melhor maneira possível”, conta Gustavo, que já trabalhou em equipes com mais de seis profissionais atendendo às necessidades de um atleta. “Muitas vezes, uma pessoa que está extremamente ansiosa, ao ouvir o que uma pessoa depressiva precisa ouvir, vai ficar mais ansiosa ainda e vice-versa. É preciso entender a dificuldade de cada um e lidar com isso no coletivo.”

Como já dito, transtornos mentais não escolhem pessoas específicas: todos nós podemos apresentar sintomas e desenvolver um quadro depressivo a qualquer momento, mesmo durante a vivência de um sonho.

Depressão no esporte coletivo

Flaysmar tem 26 anos e atua há nove como goleiro de futebol profissional. Logo que começou a carreira, era titular em um clube da série B do Rio e viu seu sonho decolar após conquistar o título do estadual: as boas atuações lhe renderam uma oportunidade num clube da série A, por empréstimo. No entanto, uma lesão na mão lhe tirou de uma competição e o afastou cada vez mais da titularidade, o que o fez retornar ao ex-clube sem sucesso.

Por não atuar com regularidade, também não conseguiu uma oportunidade na equipe que o lançou para o esporte e acabou entrando no alcoolismo. Se afastou dos amigos, dos companheiros de time e o distanciamento só piorou a sua relação com a comissão técnica e com os dirigentes do clube, fato que o jogou em uma depressão que era tratada com um abuso maior do álcool.

Para sair desse quadro, Flaysmar relatou que o primeiro passo foi reconhecer e aceitar a situação que se encontrava. Somente assim poderia dar um passo adiante e o fez, com a ajuda dos pais que, mesmo em cidades diferentes, auxiliaram o filho e se mostraram próximos da forma que podiam. Com sua base familiar restaurada, ele foi atrás de auxílio psicológico e diz que com muita força de vontade abandonou o álcool. O jogador ainda ressalta que se apegar a religião e desenvolver sua fé em Deus, muito por incentivo dos pais, o removeu de pensamentos suicidas.

Diferentemente de Flaysmar, que teve uma lesão que o impedia de treinar e participar de um esporte coletivo, onde é preciso um rendimento alto nos treinamentos constantemente para brigar por uma vaga no time, Gustavo, o treinador, conta que teve uma experiência com um atleta depressivo na natação:

“Eu trabalhei com um atleta que teve depressão e fazia acompanhamento psicológico há um tempo. Ele é muito ativo, gosta de treinar, mas como na época voltava aos treinos de uma cirurgia no ombro, precisamos segurá-lo para conter o desgaste. Esse fato desencadeou pensamentos na cabeça dele do tipo ‘Vai começar tudo de novo, não vou conseguir’. Com base na conversa, muita calma e mostrando a evolução dele, o quanto ele já tinha melhorado, conseguimos tratar o ombro dele sem que ele entrasse em um quadro depressivo novamente.”

Ninguém sabe ao certo quando começam a surgir os sintomas de um transtorno mental, tampouco como tratá-los em casa. Mas é preciso refletir sobre si mesmo, aceitar que aquela vida não é a que você sempre quis e buscar um tratamento psicológico para enfrentar a situação. Ninguém está sozinho, mas precisamos estar sempre abertos a receber a ajuda de que precisamos.

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Gabriel Paes
Fervedouro

Cultivo especial aversão ao homem-de-bem, à família tradicional e ao Brasil que deu certo.