Estamos preparados para mais uma epidemia?

Gabriel Paes
Fervedouro
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4 min readNov 14, 2018

Sexta-feira, 20 de Outubro de 2017. Os pré-candidatos à presidência já começavam a se movimentar pelas redes sociais, principal canal de informações do brasileiro nos últimos anos. O horário de verão tinha acabado de começar e as pessoas já ficavam na rua até mais tarde, com cada vez menos peças de roupa por conta das altas temperaturas. Parecia tudo normal, até a morte de um macaco no Horto Florestal, Zona Norte de São Paulo.

O diagnóstico do animal revelou que a causa da morte se deve ao vírus da Febre Amarela, que não registrava casos em perímetros urbanos desde 1942. O mosquito maemagogus é o vetor do vírus, enquanto o macaco serve apenas como hospedeiro - ele não transmite a doença à população humana, que pode ser afetada apenas pelo mosquito Aedes aegypti, o mesmo da Dengue.

A população rapidamente se movimentou e criou diversos tipos de alerta nas redes sociais, principalmente no Facebook, onde textos em forma de postagens conseguem um alcance grande e permitem interações. Dicas sobre como se prevenir e o que fazer em caso de suspeita de contágio foram espalhadas. Mas será que essas informações têm algum respaldo?

Depois do incidente, o Horto foi interditado, bem como o Parque da Cantareira, que representa o perímetro maior no entorno do local, com mata fechada e preservada. Uma bateria de vacinações nas regiões próximas foi organizada pelo governo estadual em parceria com o federal, mas o surto tomou proporções bem além do esperado e foi o maior em quase 40 anos, chegando aos números finais de 777 casos e 261 mortes em 7 meses.

O principal entrave para o controle eficaz da doença é a forma como o vírus é transmitido, que pode ser via macaco ou pessoa infectada, a partir da picada do mosquito em dois hospedeiros diferentes. Mesmo não podendo ser transmitida de uma pessoa para outra - ou de um macaco para um indivíduo - a população dessas regiões passou a caçar macacos, sem nem saber estavam infectados, para matá-los e evitar que o surto virasse epidemia.

Comentários em um post do Facebook que noticiava a morte de um macaco

A ideia de justiça com as próprias mãos ganhou força nas redes sociais, diante da ineficiência do poder público para conter o aumento dos casos, mas não surgiu ali.

O movimento começou antes em outros estados, como o Rio de Janeiro, em áreas rurais e de mata que sofrem com a falta de informação. Só em janeiro de 2017, mais de 130 macacos assassinados foram enviados a um laboratório carioca especializado nesse tipo de análise. Na matéria divulgada no Jornal Nacional, eles contam que de cada 10 animais mortos recebidos, 7 foram alvo de pedradas, pauladas, envenenamento e queimaduras. Isso se deve ao mito de que a doença pode ser contraída pela mordida do macaco ou até mesmo pelo ar.

O fato é que os macacos são fundamentais para o controle do surto: eles facilitam a identificação da origem da contaminação e servem como parâmetro para o aumento da epidemia. Wagner Meira Jr., fundador do Observatório da Dengue da UFMG, conta como o uso de dados contribuiu para o mapeamento dos casos de Dengue em Minas Gerais:

“Nós percebemos uma alta correlação entre a incidência da doença e mensagens postadas nas redes sociais, onde pessoas relataram experiência com a dengue. Ou seja, toda vez que os relatos de dengue cresciam, o número de casos da doença também crescia. Nós temos então uma estimativa para cada município, de qual pode estar sendo a intensidade do surto da doença no momento da coleta dos dados.”, afirma o professor e coordenador do Observatório.

O órgão atua em cidades com mais de 100.000 habitantes, onde o cruzamento de informações é mais efetivo, chegando ao índice de 85% de acerto nos pontos de surto. Dessa forma, a lacuna gerada entre a coleta dos dados feita pelo governo estadual e a entrega desses dados para análise e prevenção, de aproximadamente 3 meses, é preenchida com o mapeamento em tempo real feito pelo Observatório. Mas como conter um povo que busca justiça com as próprias mãos diante da ineficácia do poder público e não dispõe de uma ferramenta como os mineiros?

O trabalho deve ser de conscientização e tem pouco efeito a curto prazo, assim como a vacinação, que é indicada fora dos períodos de surto visando a criação de anticorpos a partir do vírus inserido no organismo humano. Desde que as redes sociais evoluíram do tradicional Facebook para os aplicativos de mensagem, como WhatsApp e Telegram, a quantidade de notícias falsas disparou, bem como a propagação desse conteúdo de forma indevida.

Correntes circularam por mensagens de Whatsapp com informações falsas sobre a Febre Amarela

A World Animal Protection, fundação de alcance mundial que trabalha em defesa de espécies ameaçadas desde os anos 50, tentou alertar a população, sem sucesso. O alcance de um dos principais órgãos de proteção animal é quase nulo e as explanações a respeito do surto, por meio do site oficial da entidade, não foram capazes de penetrar a barreira dos telefones móveis.

Centenas de pessoas morreram, milhares foram infectadas e os macacos também sofreram com a desinformação do público, o que levanta o questionamento: qual seria o quadro numa próxima epidemia como a H1N1? Não temos como saber ainda. Aficionados dirão que o fim da humanidade caminha para os mesmos desfechos de filmes de apocalipse, mas a era da desinformação em massa assusta muito mais.

As iniciativas existem, como mostra na prática o Observatório da Dengue, projeto universitário que impulsionou o controle da doença entre milhões de pessoas. Avisos também não faltam, como colocam as organizações nacionais e estrangeiras. O papo é chato, mas nunca se mostrou tão necessário.

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Gabriel Paes
Fervedouro

Cultivo especial aversão ao homem-de-bem, à família tradicional e ao Brasil que deu certo.