Angolano

Você chorou mais quando morreu o Mufasa ou o velho de Big Fish?

Reck
Ficção, Contos, etc

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O mercado municipal que fica aqui no meu bairro é o tema principal do meu TCC. Fui aconselhado a conversar com um vendedor antigo e popular entre os outros feirantes que trabalha nesse mercado faz uns 50 anos. Ele me ajudaria nos relatos de como era o mercado antigamente e, se eu conseguisse levar um bom papo com ele, me apresentaria aos demais vendedores para que me ajudassem na coleta de informação. Por sorte, descubro que um amigo meu, o P.J., é amigo desse senhor. Peço então para o P.J. me apresentar formalmente para esse senhor, para eu explicar o que pretendo e, assim, conquistar a confiança dele e dos demais feirantes e não ser só o cara estranho que roda a feira perguntando coisas.

Já elaborei diversos meios de explicar o que diabos é o P.J. para quem não o conhece e o que estou usando atualmente é o seguinte: sabe quando você adquire um jogo novo e fica testando a primeira fase? Você bate em todo o cenário pra ver o que quebra, tenta conversar com qualquer NPC, se joga na água pra saber se dá pra nadar ou morrer? Então, o P.J. é mais ou menos isso. Ele está constantemente testando tudo ao seu redor por razões de “sim”. Na verdade, ele é guiado pelo sagrado mandamento do “por que não?”. A primeira fase do meu TCC dependia desse cara.

Chego no restaurante que a gente marcou de se encontrar, que fica a uma quadra do mercado municipal. Quando eu o avisto, ele está numa mesa conversando com um cara que não conheço mas que já estava de saída.

— Quem era? — eu pergunto ao me aproximar.

— Conheci ele agora. Ele me vendeu uma coisa.

— E aí… vamo ver aquele esquema?

— Deixa só eu acabar esse café. Senta aí.

O P.J. viaja longe na conversa. Às vezes é legal, mas você precisa tomar cuidado ou ele acaba te convencendo a fazer uma rinha de galo no quintal da sua casa.

— Cara… quanto de investimento deve ser necessário pra assaltar um banco no interior do estado?

— Ow, P.J., que que o cara te vendeu? — perguntei tentando mudar de assunto.

— Ele me vendeu uma história.

— Tipo um livro?

— Não. Ele me contou uma história.

— Como é que é?

— Haha… Vou tentar explicar. Pessoas introvertidas tendem a se isolar no seu próprio mundo, certo? Muitas dessas constroem em suas cabeças histórias de verdade por conta disso, seja pra passar o tempo ou para não se sentirem tão sós. Algumas levam a sério e esquematizam, elaboram uma narrativa e transformam isso num roteiro de filme, num livro, numa série, jogo ou qualquer coisa do tipo. Porém, é óbvio que a grande maioria das pessoas não tem meios para transformar suas histórias em algo concreto ou simplesmente não se sentem motivadas. Essas histórias ficam abandonadas na mente delas. O ponto em questão é: para que que eu vou querer saber de um cinema repleto de remakes e continuações de franquias ou um netflix da vida se eu posso ter acesso à várias histórias originais de simples pessoas sonhadoras? Histórias diferentes, desprendidas de tendências artísticas ou necessidades do mercado. Algumas podem ter furos ou desenvolvimento fraco, eu sei. Mas tenho certeza que, dentro da mente de qualquer pessoa que eu cruzar na rua, existe uma história que vale a pena ser ouvida. Talvez uma história maior do que qualquer Senhor dos Anéis ou mais épica que uma Odisseia.

— Tá me dizendo que você paga para que estranhos lhe contem histórias?

— Bem… sim.

— E quanto cê paga?

— Geralmente R$ 5,00. Mas o carinha que tava aqui antes só contou por R$ 10,00. Vi nos olhos dele que valia os 10 paus.

— Hahaha! Sério? Porra, então conta aí essa história de R$ 10,00. Aliás, perai… Você não vai me cobrar 10 pila pra eu poder ouvir, né?

— Não, cara. Relaxa. Escuta aí que a história é boa. É assim

Na África selvagem, um único leão reina todas as feras. Esse leão tem um filho que irá lhe suceder no futuro. Porém, o irmão desse rei almeja o seu reino…

— Espera, espera…um rei… leão? — eu perguntei.

— Sim.

— Por acaso o irmão do rei o mata?

— Sim!

— E não tem um suricate e um javali chamados Timão e Pumba?

— Na verdade, se chamam Fred e Walter. Mas como é que você sabe do suricate e do javali?

— Porra, a história que o cara te contou é uma cópia de Rei Leão. Que, por sua vez, é uma cópia de Kimba e Shakespeare.

— Tem certeza disso?

— Porra, como assim cê nunca viu o Rei Leão, cara?

— Aaaaah mas que FILHO DA PUTA!

— Ele te passou a perna bonito.

— Ah, velho, não vou deixar isso barato. Acho que sei onde ele trabalha. Vou pegar meu dinheiro de volta.

P.J. sai do restaurante e eu vou atrás dele tentando fazer ele esquecer isso.

Chegamos ao fim de uma viela próximo ao mercado municipal onde o P.J. disse ter visto o mentiroso uma vez. Tento convence-lo uma última vez para deixar isso pra lá mas ele não me escuta.

Da porta de onde ele disse que ter visto o cara da história entrar uma vez, sai um sujeito que estava jogando o lixo pra fora. Cara no limite entre gordo e forte, alto, moreno, meio careca, com uma beiça que dava facilmente pra esconder um pendrive. P.J. então o aborda.

— Fala, Sambarilove. Tô procurando um cara que eu acho que trabalha aí.

— Quem é?

— Cara magro, negro e mentiroso. Não sei o nome.

— Talvez seja o Bastião… ou o Mateus… Bem, de qualquer forma, o patrão não deixa que os empregados conversem em hora de serviço. Procura ele quando fecharmos.

— Esse cara tá me devendo uma grana. Ou uma história.

— Por que?

— Eu comprei uma história original dele, mas ele me vendeu o Rei leão

— Rei Leão? Que merda é essa? Desculpa, cara, mas acho melhor você vazar daqui.

Vendo que a abordagem do P.J. não tava dando certo, resolvo cair na viagem dele e proponho algo que certamente seria aceitável para os dois:

— Ok, vamo tentar resolver isso de uma vez. O meu amigo aqui comprou uma história de um empregado desse lugar. Pagou R$ 10,00 por uma história, mas ele foi enganado e agora ele quer o dinheiro de volta… OU uma outra história. Então vamos fazer seguinte: você conta uma história. Qualquer história e eu e meu amigo aqui ficamos satisfeitos. Que tal?

— Eu conto uma história e vocês vão embora?

— Isso mesmo, certo? — olho para o P.J. esperando uma aprovação e ele apenas acena a cabeça meio conformado.

— Bem…ok. Lá vai

Era uma vez um humano chamado Finn e um cão chamado Jake. Eles moravam numa…

— Espera, espera. Tem que ser uma história original. Tem que ser algo que você mesmo criou — disse P.J. interrompendo o cara.

— Porra… original? Eu não sou bom nisso — disse o cara coçando o queixo.

Fomos interrompidos então pelo barulho do portão se abrindo. Era o patrão do cara. Provavelmente, patrão do nosso mentiroso também.

O senhor em questão devia ter uns 50 anos. Dava pra ver por trás dos óculos do Reginaldo Rossi que era oriental. Usava suspensório e uma camiseta branca sem mangas que deixava exposta uma tatuagem no braço esquerdo tão feia e mal feita que sabe deus o que caralhos era aquilo. Tinha mó cara daqueles mal encarado mas que facilmente deixa escapar um sorrisinho de deboche.

Na verdade, eu já vi esse sujeito antes. Ele é dono de uma pastelaria na rua próxima onde estávamos. Certamente estamos nos fundos dessa mesma pastelaria. Talvez isso tudo fosse mais fácil se tivéssemos ido pela frente.

— O que esses dois querem aqui? — perguntou o patrão ao se aproximar.

— Esses dois estão afirmando que um dos empregados daqui está devendo 10 contos pra eles. Mas eles também aceitam uma história contada como forma de pagamento

— Meu pai amado! Isso é sério? Uma simples história pra pagar uma dívida de R$ 10,00? — ele disse dando o já esperado sorrisinho de deboche.

— Isso mesmo.

— Mas que puta negócio, hein? Se é só isso, eu mesmo conto a história. Prestem atenção, garotos

Numa terra sombria, repleta de dor e sangue, os mercenários Guts e Griffith do bando do falcão…

— Espera, patrão. Tem que ser uma história criada pelo senhor. Não pode ser uma história já contada — disse o funcionário dele.

— Invetar uma história agora? Ah, cês vão me desculpar mas eu não tenho tempo pra perder com isso. Podem ir rodando.

— Então paga os R$ 10,00. —exigiu o P.J.

— Pagar? Quem vai me forçar a pagar 10 pila? Você? — o velho disse apontando o dedo na fuça dele.

— Velho, afasta esse dedo imundo de mim se não quiser levar um Castelo Rá-Tim-Bum

— Pera… o que você disse?

— Afasta esse dedo imundo se não quiser levar um Castelo Rá-Tim-Bum

— Hahahahaha! Castelo o que, amigo? — ele disse o encarado face a face.

P.J. então calmamente levanta os dois braços os expondo como se tivesse prestes a fazer uma mágica e diz

Castelo…

— ele rapidamente agarra um dos braços do senhor

TIM —levanta esse braço e abaixa a cabeça dele com a outra mão

BUM — eu só ouço um estalo e vejo o braço do velho tão flexível quanto um nunchaku.

O velho cai no chão aos berros. No mesmo instante, o empregado que estava com a gente pula na direção do P.J. e ambos caem numa barraca cheia de batata.

Vejo dois caras correndo de dentro do estabelecimento de onde o velho e o empregado vieram. Fecho o portão rapidamente e pressiono para que eles não abram. Eram os filhos do coroa.

P.J. e o empregado se levantam e começam a trocar soco. O empregado é bem maior de corpo, mas o P.J. parece se garantir.

Os dois filhos do coroa fazem bastante força para abrir o portão mas eu uso um poste como apoio pra forçar e não deixo eles abrirem. Um deles tem uma faca e fica metendo ela numa brecha do portão tentando me furar. O coroa ainda tá no chão gritando de dor.

Um dos filhos diz “dá a volta pela frente e pega eles que eu fico aqui”. O que foi era o da faca. Escuto mais dois empregados chegando pra ajudar a empurrar o portão. O cara brigando engata um mata-leão no P.J. e eu só consigo pensar “agora já era”, só que o P.J. consegue girar e derrubar ele no chão mesmo agarrado. Quando os dois caem, alguém aponta um revolver em direção aos dois e grita “parado todo mundo aí!”. Era um policial acompanhado de mais dois saindo do carro logo atrás. Não sei se isso era bom ou ruim.

Na delegacia, fiz questão de contar a história toda da forma mais superficial possível para que não parecesse que um cara teve o braço quebrado porque alguém “spoilou” Rei Leão pro meu amigo. Não funcionou pois o P.J. fazia questão de colocar a dívida de 10 reais por uma história como o topo de todo o problema.

A delegada, que incrivelmente também nunca viu o Rei Leão, nos chamou para conversar. Na sala dela, ela contou para nós a seguinte historinha: os policiais que nos prenderam estavam rondando a área do mercado municipal buscando informações sobre um ponto de venda de drogas que possivelmente se situava por lá. Quando eles viram a nossa confusão, suspeitaram que a razão era por drogas e, após deter quem estava envolvido na confusão, entraram nos fundos do estabelecimento do coroa oriental para dar uma checada. Os policiais não acharam droga alguma, mas esbarraram em algo grave demais para fingirem que não viram. Dentro do estabelecimento haviam 4 pessoas, uma delas sendo uma criança de 12 anos, fazendo pastéis numa sala que estava trancada por fora. Eles alegavam que trabalhavam em troca de teto e comida, o que já era bastante para qualificar como trabalho escravo. Alguns deles apresentavam marcas de maus tratos no corpo. A partir daí isso já era trabalho da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego e da Vigilância Sanitária que certamente vai confirmar depois de um exame que a carne dentro do pastel não vem de gado. O nosso mentiroso, um angolano, era um dos que trabalhavam por teto e comida lá. Era comportado o bastante para sair e voltar sem dar bandeira, até que ele esbarrou no P.J.

A delegado liberou a gente logo em seguida.

— Bem… até que a gente não se encrencou tanto assim — eu disse com certo alívio ao sair da delegacia.

— Foda-se. O angolano me tapeou e eu ainda não tenho uma história — ele disse inconformado.

— Puta merda… Depois de tudo você ainda quer uma história? Eu posso te contar uma história.

— Você cria histórias? Hahaha conta outra.

— Claro, pô. Eu também sonho acordado às vezes e fico criando histórias.

— Ok. Conte a sua história.

— Bem, no fundo do mar havia um peixe-palhaço chamado Nemo (…)

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