Reck
Ficção, Contos, etc
8 min readApr 2, 2016

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Antes de partir para o seu destino, o helicóptero da Força-Tarefa Mundial teria que passar por um parque eólico ainda em construção para pegar mais um passageiro. O local estava deserto hoje, facilitando a visualização do último viajante que estava esperando num campo aberto. Era Atlas. Ele usava calça jeans, botas velhas e uma camiseta cafona com a frase “O Melhor Pai do Mundo”. Estava fazendo sinal de carona para o helicóptero.

— Bom dia, Sr. Atlas. Meu nome é Pablo. Fui enviado pela Força-Tarefa Mundial — disse assim que saiu do helicóptero.
— Bom dia, Pablo. Me chama só de Atlas, OK?
— Me permite fazer uma pergunta?
— Claro.
— Por que solicitou nossa carona para irmos até a sua casa? Você pode voar 10 vezes mais rápido que esse helicóptero.
— Gosto de viajar acompanhado.

Pablo foi enviado pela Força-Tarefa Mundial — Organização que reúne heróis do mundo todo — para observar Atlas em seu ambiente de lazer e verificar se algo lhe faltava para que a organização pudesse providenciar. Atlas sabia muito bem que a real função do visitante era avaliá-lo emocionalmente e verificar se havia alguma alteração de comportamento. Afinal, um homem como Atlas fora de seu juízo significa uma ameaça global.

Após duas horas, o helicóptero chega ao seu verdadeiro destino. Apenas Pablo e Atlas descem do transporte, que segue viagem sem eles. Nosso herói mora num casarão antigo distante de tudo e cercado por um jardim imenso. O barulho do helicóptero logo atraiu os moradores da casa. Crianças. Eram 30, 40, talvez 60 pelas contas de Pablo. Atlas tinha o hábito de adotar órfãos do mundo inteiro. Sempre que ocorria uma tragédia natural ou conflito armado e ele ia até onde a população precisava de ajuda, voltava com uma criança desafortunada. Todas elas, eufóricas, pularam em cima do herói até ele desaparecer completamente.

— São 74 crianças atualmente. — disse Atlas após ser atingido pela tsunami de crianças — Tecnicamente, sou pai delas. A ideia, na verdade, é que aqui seja só um repouso temporário para que elas sejam adotadas por outras famílias posteriormente, mas nem todas querem ir embora daqui.
— É compreensível.
— Deixa eu apresentar elas. Esses são Ramiro, Hu, Melissa, Isaac, Kaseeb, Javier, Aisha, Pedro, Cassandra, Nikhil, John, Pequeno John…
— Você não precisa dizer o nome de todos eles, né? — disse Aline ao se aproximar do herói e do visitante.

Aline fazia parte do serviço de inteligência da Força-Tarefa Mundial quando, há dois anos atrás, foi escalada para observar e cuidar de Atlas dentro de casa. Na época, considerou sua missão como um declínio da carreira. Jovem e já com boa reputação pelo seu trabalho, estava sendo selecionada para se tornar “babá de herói”, como ela mesma dizia ao reclamar com seus superiores. Após 6 meses morando com ele, tempo estipulado para que outra pessoa a substituísse na função, Aline negou voltar para o QG da FTM e avisou que ficaria cuidando do herói em sua casa por tempo indeterminado. Algumas crianças da casa a chamam de mãe.

Antes de seguir com a visita, Pablo foi convidado por Aline para participar do almoço em família. Uma mesa retangular gigante no jardim, preenchida totalmente por um banquete, estava pronta esperando pelos moradores, empregados da casa e o convidado. As crianças, em fila, preenchiam os lugares ao lado em silêncio. Atlas ficava numa ponta da mesa, com Aline sentada à sua direita e Pablo à sua esquerda, seguido de 7 empregados que trabalham na casa. Todos abaixaram a cabeça e Atlas disse:

“Pai, abençoai os alimentos que vamos tomar;
que eles renovem as nossas forças
para melhor Vos servir e amar”

Após o “amém”, o caos tomou conta da mesa. Crianças comendo sem talheres enquanto outras pareciam até animais selvagens. Os mais velhos impediam que os mais encapetados fizessem guerra de comida. Todos à mesa comiam, menos Atlas que apenas observava as crianças almoçando com um leve sorriso bobo de quem assiste um filme do Miyazaki.

Thomas Fletcher é o rosto do talk show mais popular do país. Os dirigentes da FTM acharam que seria bom para a imagem da organização mostrar para a população que o seu maior herói é confiável. Thomas é excelente em conduzir entrevistas mas não deixa de ter seu lado jornalista canalha. Já eram garantidas perguntas sobre eleições, conflitos por terra, aborto, pena de morte e racismo, tentando mostrar um lado mais repulsivo do entrevistado ou só para deixá-lo desconfortável. Por mais que o mundo quisesse saber o que um androide acha sobre nossos conflitos cotidianos, Atlas não tinha opinião formada para mais da metade desses assuntos. O programa foi exibido ao vivo há uma semana atrás.

A desconfiança com o temperamento de Atlas surgiu 4 anos atrás após a tragédia da Usina Iris III. Uma equipe de cientistas, acompanhada do nosso herói, visitava a usina que, operando próximo dos 100%, produziria energia renovável distribuída em grande escala, energia essa semelhante à que existe dentro do androide Atlas. No meio da visita, o reator ficou instável, entrando num nível de colapso que ameaçava as três cidades mais próximas daquele local. Doutora Mônica, criadora de Atlas e especialista nesse tipo de energia, morreu amenizando a instabilidade do reator sozinha no centro de comando, bloqueando as entradas do edifício e deixando todos que estavam na usina protegidos do lado de fora, inclusive Atlas. Tanto o herói quanto Mônica sabiam que o androide poderia parar o processo de modo manual mas certamente não resistiria à exposição de energia.

O que tinha que acontecer naquele dia era uma questão de lógica. Não se tratava apenas de pesar a vida de um humano e a existência de uma máquina. Mônica poderia fazer outro Atlas, poderia fazer vários Atlas e poderia até fazer algo melhor que Atlas. Ela dar a vida para proteger sua criação não fazia sentido nem mesmo para a postura ética que ela tinha na comunidade científica.

Após o acidente, Atlas entrou em depressão. Se isolou e ignorou qualquer tentativa de ajuda. Por mais que as pessoas precisassem dele, e ele sabia disso, não aparecia mais em público. Meses depois, quando uma fera do mar gigante invadiu uma grande cidade e ninguém podia pará-la, Atlas surgiu e salvou à todos. Agiu como se nada tivesse acontecido nos últimos meses mas estava nitidamente mais fechado.

De volta ao casarão, após ver todo o local e conversar por horas com o anfitrião, Pablo terminou a visita oficial satisfeito e se despediu da enorme família. O Helicóptero recebe o único passageiro que voltaria e desaparece em direção ao horizonte. Já estava anoitecendo e as crianças precisavam jantar.

Eram 2:15 da madrugada no casarão antigo quando Atlas bateu a porta do quarto de Aline.

— Te acordei? — pergunta Atlas.
— Não. Eu estava treinando parkour nos móveis do quarto.
— Perdão. Boa noite.
— Espera, idiota! — disse Aline segurando o braço dele — Vai… Fala.
— Preciso de um favor seu.
— Pode pedir.
— Preciso que você venha até o meu quarto.

A moça e o herói seguiram pelos corredores até chegarem à entrada do quarto de Atlas. Uma das poucas regras dessa casa é que absolutamente ninguém tem permissão para entrar no quarto de Atlas. Era exatamente o que Aline pensou quando estava colocando o primeiro pé lá dentro.

O quarto era repleto de pilhas de livros e revistas por todos os lados mas não parecia que o dono do quarto lia com tanta frequência pois tudo estava coberto de poeira. Apesar dele não precisar dormir, havia uma cama em seu quarto. Aline senta na cama enquanto Atlas procura algo na prateleira. Luzes ondulantes cobriam o edredom. Aline olha para cima e vê que tem um aquário no teto. Agora a cama fazia um pouco mais de sentido para ela. O herói acha o que procurava: um CD-ROM. Ele coloca a mídia no computador e liga o monitor na parede. A pasta dentro do CD-ROM contém dezenas de arquivos de vídeo. Sem explicar nada para Aline, Atlas seleciona o último arquivo para rodar, senta na cama ao seu lado e segura a sua mão.

O vídeo começa com uma tela de informações técnicas. Era um diário de projeto. Uma mulher na casa dos 30 anos fumando calmamente um cigarro aparece calada ao lado de um corpo nu sem braços e pernas, com o rosto sem a pele, expondo o seu interior mecânico. Esses eram a Doutora Mônica e Atlas. Após um longo trago, a mulher começa a falar:

Atlas nasceu da minha vontade de fazer um “homem perfeito”, sabe? Digo, a minha ideia de homem perfeito. É por isso que ele é bonitão assim. Alto, grande de corpo mas não com músculos bem definidos, barbudo e um bumbum que implora para ser apertado. São meus fetiches. Acredite ou não, só no meio do projeto que me dei conta que eu, como criadora, estaria mais para mãe do que para amante dele. Bem incestuoso, não?

Gosto de pensar nele como “o homem perfeito” porque a maioria de nós, cientistas e artistas, tem medo de usar essa palavra. Pensam em algo inalcançável ou irreal. Se sentem insignificantes ao descobrirem que não são Deus nem mesmo dentro de suas próprias cabeças. Isso é bobagem, é claro. Posso comer o arroz da minha tia Ivete e falar que ele está perfeito sem peso nenhum na consciência. Qualquer outro arroz em qualquer outra parte do mundo pode ser melhor mas, naquele momento, aquilo para mim é tudo.

Bem, o segredo de tudo está no modo como eu escolhi que a I.A. do Atlas operasse. Essa é a porra mais poderosa do mundo. Você pode fazer qualquer coisa com ela. Antigamente, quando a humanidade ainda estava desenvolvendo isso, as pessoas achavam que uma I.A. poderosa significava resolver problemas sozinha, aprender em uma velocidade x, etc. Colocavam enxadristas para duelar com máquinas… essa baboseira toda. O cérebro de Atlas pode ter a capacidade de fazer isso tudo e qualquer outra coisa mas ele não existe para ser melhor do que nós. Não criei ele para ser uma máquina que imita só os melhores traços de um homem para, assim, superá-lo. Criei ele para ser um homem. E, como homem, ele sente medo, tem dúvidas e pode errar em tarefas óbvias. Não que eu tenha programado defeitos nele. O Atlas é assim pois isso é o natural. Isso é que eu quis dizer com fazer um “homem perfeito”, entende?

Olha, eu sei que sou respeitada por tudo que fiz até aqui para a ciência. Sei do quanto as pessoas me admiram e até me veneram. Mas a verdade é que eu me acho um lixo. Eu me odeio e não tem um só mês em que eu não tenha pensado em suicídio nos últimos 5 anos. Só que (risos), quando você produz algo com paixão, e isso vai desde um androide até uma caixinha de madeira, você está colocando o melhor de você em algo externo. Quando eu olho para o Atlas, é exatamente isso o que eu vejo. O melhor que existe em mim.

E a gravação acaba. Atlas se levanta, olha nos olhos cheios de lágrimas de Aline e diz “obrigado por chorar por mim” e sai do quarto.

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