Princesa Nerd

Você tem muita coragem de vir aqui depois do que fez

Reck
Ficção, Contos, etc
11 min readNov 2, 2016

--

20:24 de uma sexta-feira. Eu não esperava nada dessa noite mas isso também não significa que ela não poderia piorar. Meu companheiro de apartamento que nunca dá as caras aqui nas noites de sexta resolveu aparecer hoje.

— E aí? Vai passar a noite de Sexta grudado nesse video game? — Ele pergunta voltando da cozinha enquanto come goiabada.
— Exatamente.
— Larga isso. Tenho um rolê hoje do outro lado da cidade. Celsinho “peruca de Zacarias” furou e agora tem uma vaga sobrando no batmóvel da carona. Tem interesse?
— Olha para mim e vê se eu tenho cara de quem se mete em rolê teu, Matias.
— “Matias” não, cara, me chama de “Matt”. Já te disse isso mil vezes. A sonoridade fica até melhor, saca só: “MAAAAAAAAATT”. Não, pera… Na verdade, não tem sentido abreviar o nome e esticar a pronúncia…
— Não tenho confiança nem para afirmar que você é meu amigo, não vou te chamar por apelido sem ter intimidade.

Não tenho paciência para descrever o Matias para vocês mas tenham noção que optei por não colocar todas as falas dele nesse texto em CAPSLOCK e com ponto de exclamação no final para não deixar o texto espalhafatoso demais, mesmo sendo essa a forma mais sincera de transcrever o jeito que ele se comunica. Matias ficou uns minutos tentando me convencer a ir com ele para a festa sem muito sucesso e acabou desistindo. Enquanto ele falava sobre Masterchef e eu fingia escutar, acabou caindo a ficha. Essa festa, por mais escrota que seja, seria provavelmente a última oportunidade nesse ano de botar em prática meu maior plano: encontrar a minha princesa nerd.

— Tá legal. Eu topo.
— Topa o que?
— A festa lá. Eu topo ir com você.
— My nigga!
— Nunca mais diga isso.

O plano de encontrar minha princesa nerd é antigo — antes era apenas um desejo — mas foi só esse ano que eu consegui elaborar um critério perfeito. E o critério é bem simples: ser fã da série nerd do momento Stranger Things.

Não existe outra definição para Stranger Things senão “a série que me salvou”. Desgastado com os filmes da Marvel, desacreditado com os filmes da DC e sem perspectiva de encontrar uma série nerd boa, Stranger Things surge timidamente na minha vida, mas logo me acerta em cheio com o carisma dos personagens, o festival de referências nerds e a influência clara de grandes nomes como Stephen King e Steven Spielberg que, apesar de eu não nunca ter acompanhado quase nada da obra desses dois, influenciaram pessoas que influenciaram pessoas que eu gosto bastante no cinema e TV. A mulher que for fã dessa série será a minha princesa nerd.

Dentro do carro em direção à festa, 7 pessoas horrivelmente compactadas, uma delas estando no porta-malas. Não conversei com ninguém a viagem toda. Muitos acham o silêncio entre pessoas algo desconfortante, eu acho que isso é melhor do que trocar papo vazio ou falar bobagem.

Chegando na festa, percebo onde me meti. Festa de universitário, calourada ou qualquer coisa do tipo num espaço aberto liberado pela faculdade, música ruim, vários e vários doppelgangers do Matias e uma ou outra garota que desperte interesse. Matias encontra mais amigos e todos sentam num canto para conversar. Eu me manifesto.

— Só para saber, qual será o assunto dessa roda de socialização a partir de agora?—Pergunto à todos.
— Sei lá… a gente tava conversando sobre cerveja artesanal antes de vocês chegarem.
— Excelente. Volto daqui a 23 minutos quando o assunto rotacionar.

Não tenho tempo a perder com esse pessoal, tenho que caçar a minha princesa nerd nessa festa. Já deve ter ficado claro até esse ponto que não sou nada prático com comunicação verbal simples e relações sociais num geral, mas hoje, — e apenas hoje — tomarei a iniciativa de entrosar com estranhos.

Já havia conseguido conversar com cinco garotas e nenhuma delas apresentou resultado satisfatório. Não sabiam do que se tratava Stranger Things ou viram um ou outro episódio e desencanaram. Na 6ª garota que abordei na festa, uma mocinha que, para economizar na descrição, diria que é uma Maria Casadevall nota 7, eu já estava sem paciência para formalidades em trocar papo inútil e parti direto ao assunto.

—Mas o que eu quero dizer é que não se deve considerar a arte como uma mera ferramenta humana, a arte é…
— Olha, acho melhor a gente apressar as coisas aqui. Poderia responder uma simples pergunta? — Eu disse interrompendo a baboseira que ela estava prestes a desenvolver.
— Err… Claro.
— Já viu a série nerd do momento Stranger Things?
— Stranger Things? Já ouvi falar mas não conheço, não.
— Nossa conversa acaba aqui.

Ao me distanciar da moça inútil com quem perdi o meu tempo, encontro uma garota bebendo sozinha que me desperta atenção. Cabelo curto, mechas de cabelo pintadas de verde, um pouco acima do peso para quem é meio fresco com isso, shortinho e uma camiseta “fora haoles” da famosa loja de gente meio alt “sounds”. Essa moça deve estar por dentro do que rola de bom na net. Ela com certeza conhece Stranger Things. Sem querer perder mais tempo, me aproximei dela e fui direto ao ponto.

— Boa noite. Você curte a série nerd do momento Stranger Things?
— Stranger Things? Cê tá zoando com a minha cara? Puta série fraca do caralho. 8 episódios vomitando clichês mal trabalhados para deixar normie empolgado com referenciazinha. E como é que relacionam essa porra ao terror? Não tem suspense nenhum, nada te instiga, não tem mistério. Se eu quero ver algo de qualidade, vejo Twin Peaks pela 8ª vez ou vejo Fargo que é a única coisa boa que apareceu na TV nos últimos anos. E, porra, “série nerd do momento”, meu amigo? Vai se foder! Essa porra já deu faz uns meses, não? Série nerd do momento agora é Westworld, Black Mirror… Peraí, cê tem cara de quem gosta de Tarantino também, né? Aliás, não fala nada. Não quero saber desse teu gosto lixo.

A vontade que eu tinha era de explodir a cabeça dessa idiota com poderes psíquicos semelhantes ao da personagem Eleven, mas não tenho tais poderes e é por isso que Stranger Things é uma série tão fabulosa. A série lhe proporciona aquilo que você mais queria que fosse real em determinados momentos de sua vida. Talvez seja por isso que eu secretamente gosto de comédia romântica também.

Já bastante descrente com o meu plano para essa noite, sento no canto mais escuro da festa e observo a movimentação. Ouço um barulho esquisito vindo do arbusto atrás de mim e me viro para checar. Dentro dele, uma garota sai rastejando e se senta ao meu lado. O cabelo desgrenhado cobria boa parte do rosto, estava descalça, usando um vestido preto com um amuleto estranho pendurado no pescoço e eram poucos os dedos da mão que estavam sem anéis. Não sei se vocês sabem, mas eu sempre tive uma queda por góticas… ou seja lá o que ela era. Resolvo interagir.

— Quem é você? — Eu pergunto.
Eu sou a filha da floresta que voltou para vingar Gaia. Sou Bastet, Cailleach, Perséfone e Lilith. Eu sou o medo de envelhecer e o vazio existencial. Eu sou a pecadora e o próprio pecado. Eu sou o avatar da luxúria, que lhe envolverá no mais intenso prazer carnal que você jamais imaginaria ter e, logo após, comerá a sua cabeça tal como uma fêmea de louva-a-deus. Eu sou a vida e eu serei a sua morte.
— Deveras interessante. Curte a série nerd do momento Stranger Things?
Stranger o que?
— Tchau.

Não há mais esperança. Foi um erro eu ter vindo aqui. Por que eu acreditei que isso daria certo? Quem eu estou enganando? Esse não é o meu lugar. Nada ao meu redor me faz eu me sentir familiarizado. Só me resta esperar dar a hora de voltar para casa.

Espera aí… quem é a garota que está olhando tão fixamente para mim? Magra, cabelos longos e negros, blusa manga longa coberta por um vestidinho marrom florido, sapatênis branco, brincos de argola e uma bolsa estranha que eu dou meu Wii U se não foi ela mesma quem fez. Não existe um só item no corpo dessa garota que esteja minimamente em harmonia com qualquer outro. Eu e ela andamos um em direção ao outro sem percebermos, como se estivéssemos agindo por instinto. Ficamos frente a frente, olho no olho, parados no meio da agitação da festa. Tentava, mas as palavras não saiam da minha boca. Minha mente não conseguia produzir nenhuma tentativa aceitável de puxar assunto, então falei a única coisa que eu acreditava ser realmente necessária naquele momento:

Stranger…
Things.

É ELA! EU ENCONTREI A MINHA PRINCESA NERD!

Ela fecha os olhos e aproxima os lábios. É um beijo? Mas já?! Eu não estava preparado! Faz muito tempo desde a última vez… Como se beija mesmo? Y, Y, L, A, X, Y, X, Y, X-NÃO, SUA ANTA! ISSO É O BRUTALITTY DO SMOKE HUMANO!

Quando seus lábios estavam prestes a tocar os meus, algo estranho tira a atenção de todos na festa. Vi uma luz forte vindo do leste mas estava cedo demais para ser o Sol. Não era nenhum refletor também, era uma luz natural vindo de um ser humano. Gritos femininos histéricos eram escutados ao longe e se tornavam cada vez mais próximos. Um ser luminoso se aproxima e confirma as minhas suspeitas. Era ele. O próprio. Aquele que transita entre dois mundos. Um híbrido, tal como Inuyasha, meio nerd, meio galã. O extraordinário… Cauã Reymond.

Isso mesmo. Cauã Reymond nerd. Vai dizer que não sabia que ele era nerd? O Brasil inteiro ficou chocado com a revelação dada ao maior portal nerd da América Latina, o site Omelete.

A multidão inteira na festa imediatamente abre espaço para Cauã passar como se o Mar Vermelho estivesse sendo partido ao meio por Moisés. Com passos leves, como se ele flutuasse ao invés de caminhar, ele vem até mim e a garota e, com uma voz forte e confortante, diz “alguém aí falou… Stranger Things?”.

DESGRAÇADO! ELE QUER ROUBAR A MINHA PRINCESA NERD!

Cauã e a garota trocam olhares e ela, pobre coitada, tem suas defesas naturais completamente fulminadas pela beleza da impecável estrutura óssea do rosto de Cauã Reymond e fica praticamente em estado catatônico. A minha existência já tinha sido completamente apagada da mente dela. Eu não podia deixar aquilo continuar mas, para meu desespero, meu corpo também foi paralisado pela incrível beleza de Cauã. Tinha que fazer algo antes que ele usasse a sua arma mais letal: o sorriso.

Espera um pouco… seus lábios estão se mexendo. Ele vai usar o sorriso! É tarde demais! Uma luz mais intensa que a anterior sai da boca levemente aberta de Cauã. Quando meus olhos finalmente se acostumam com a luz, me deparo com a expressão facial mais emblemática da história da humanidade desde a Monalisa.

É isso… Eu perdi a garota. Não existe volta após um sorriso de Cauã Reymond.

Meu corpo finalmente sai da paralisação causada pelo sex appeal emanado por Cauã. Tomado pela fúria ao perder a mulher que procurei a minha vida inteira, puxo ela dos braços de Cauã e digo “Não! Ela é minha garota!”. No exato instante que terminei de proferir tais palavras, escuto um “UEEEEEEEPA”. Um sujeito pula por cima de nós três, dá cinco piruetas no ar e pousa semi-ajoelhado com um dos punhos no chão na clássica pose de entrada do herói. Eu sabia exatamente quem ele era. O nome dele? Bem, digamos que ele seja um ex-ator da globo que já tretou feio com um ex-VJ da Mtv. Ele se aproxima de mim e diz o seguinte:

Como assim “SUA garota”? Ela não pertence a ninguém, bro. Nenhuma mulher pertence a nenhum homem. Aliás, nenhum homem pertence a outro homem ou mulher. Nenhum animal também. Somos todos livres e, acima de tudo, somos todos UM SÓ, sem espectros sociais ou qualquer superficialidade para nos dividir, seja por cor, gênero ou faixa de horário da novela. Ao dizer “minha garota”, você está cometendo machismo com você mesmo, cara! Deixe a menina em paz e reflita sobre suas ações. Paz e é nóis.

Logo em seguida, com lágrimas nos olhos, Matias dá uma série de 8 palmas aumentando gradativamente a velocidade na expectativa de puxar uma salva de palmas, falhando miseravelmente ao ficar no vácuo, apesar da salva de palmas ocorrer segundos depois quando outra pessoa puxou ela. O feministo, cujo nome não pronunciarei, foi carregado pela multidão da festa emocionada por suas palavras e levado para a piscina do pavilhão de Educação Física onde todos mergulharam e começaram ali um ritual festivo onde as pessoas não tem nenhuma distinção entre si. Cauã e a menina já tinham saído antes do feministo acabar de falar sem eu nem perceber.

Saindo da festa, tive que voltar para casa de ônibus pois Matias tinha ficado com a gótica que conversei anteriormente e, com isso, ela acabou ganhando minha vaga na carona. Andando pelas ruas vazias e escuras tal como o meu coração durante todo o ensino médio, encontro uma pessoa sentada no banco do ponto de ônibus. Era Tiago Leifert. Estava tão cabisbaixo e pensativo quanto eu.

— Dia difícil também, Tiago? — Eu disse logo após sentar ao seu lado no banco.
— Demais. Comandei o primeiro programa nerd da Globo mas não consigo agradar nem os hardcore gamers, que preferem Xbox Mil Grau, nem os gamers for fun, que preferem Game Grumps. Se não bastasse isso, ainda tenho que substituir Pedro Bial, o maior apresentador de reality show que já existiu nesse planeta, no comando do BBB. É muita pressão e, mesmo colocando a minha alma no meu trabalho, não sei se consigo continuar. Eu tenho medo. Medo de falhar. Medo de decepcionar aqueles que depositaram sua confiança em mim. Medo de não conseguir dar alegria ao meu povo…
— Medo? Cara, você é muito corajoso. Você assumiu o risco e meteu na grade da Globo um programa nerd! Você é pioneiro nisso. Você é tipo, sei lá, o Rick Moranis do Projac. E o BBB? Velho, quem diabos teria coragem de bater no peito e falar “deixa que eu substituo o Bial”? Ninguém! Mas você foi lá e aceitou. Puta que pariu, tem que ter muito culhão pra aceitar essa missão. Tiago, se tem uma coisa que eu aprendi hoje é que a gente não tem que ter medo. A gente tem que sair da nossa zona de conforto e arriscar. Se não deu certo, paciência. Às vezes, quebrar a barreira do primeiro passo é a vitória que nós buscamos e não sabemos. É o medo de começar que nos faz ficar estagnados, nos afasta de efetivamente fazer parte desse mundo e nos mergulha numa profunda depressão. Hoje, eu e você tomamos atitude e, mesmo não alcançando nossos objetivos, fizemos o que era certo ao não virar as costas para esse mundo que teima em nos desafiar. Somos vencedores.
— Você tem razão! Obrigado, amigo. Tenho que ser mais corajoso.
— Exato. Não baixe a cabeça, Tiago. Seja tão ousado na TV até chegar o ponto em que os seus superiores dirão “você tem muita coragem de vir aqui depois do que fez”.
— Hehehehe. Star Wars, né? Foi o que Lando disse para Han Solo. Peguei a referência.
— Não. É Regular Show. Isso foi uma referência a uma referência nerd.

--

--