TAPIOCA

Reck
Ficção, Contos, etc
7 min readFeb 17, 2015

--

Tira essa bermuda que eu quero você sério

Ela disse que “conheceu outra pessoa”. Se eles já se beijaram, transaram ou o cara em questão ainda não sabe disso, não me importa. Ela não gosta mais de mim e, devido ao que a gente já estava passando antes disso, não me sinto estimulado para tentar salvar o que a gente tinha junto.

Tô no ônibus agora às nove e meia da manhã indo pra casa dela, mas é só para pegar as minhas coisas. Talvez nada de tanto valor que me faça voltar até lá, tirando a Tapioca.

Tapioca é o nome da minha gata de estimação. É uma vira-lata branca, cinza e dourada. Dizem que só as fêmeas tem três cores, né? Sei lá, eu só vi gato de três cores fêmea até hoje. Enfim, eu tinha deixado a Tapioca morar com ela uns meses atrás.

A questão é que, quando eu dei a Tapioca para a Alana cuidar, eu fiz isso porque queria que ela se sentisse parte da minha vida. Parece bobo, eu sei, mas eu amo demais aquela gata e eu só poderia confiar ela a alguém que eu também amo. Mas a gente não tá mais junto, então nem tem sentido ela ficar com a gata.

No caminho, fiz mentalmente a lista de coisas que eu tinha que buscar lá:

  • Chuteira
  • Carregador de pilhas
  • Fones de ouvido
  • Camisa velha do Plucky Duck
  • HD externo (tinha comprado só pra deixar na casa dela)
  • Mochila
  • A Tapioca

Quando a gente se falou pelo telefone combinando quando eu passaria na casa dela para eu pegar as minhas coisas, ela disse que o avô estaria em casa para me receber, já que ela estaria trabalhando no horário. O tom forçadamente sem jeito ao dizer isso deixava claro que não era para eu sugerir fazer isso num horário em que ela estivesse em casa para nos vermos.

Lembro que a Alana comentou desse avô comigo algumas vezes. Ela me contou da vez que o velho brigou com um tio dela porque o cara deu um skate pro filho. Teve outra vez que ele brigou com um vizinho que fazia “gato” na rede elétrica alegando que o cara estava “indiretamente roubando da minha energia”. O irmão dela me contou que, quando ele era criança, o avô forçou ele a parar de usar boné ou ele nunca mais entraria na casa do velho. Figurinha bastante peculiar.

Chegando na casa dos pais dela, eu aperto a campainha. Um tempo depois, escuto uma voz

— Quem é? — falou alguém num tom grosso atrás da porta.

— Sou amigo da Alana. Ela disse que eu passaria aqui.

— Você é do DCE?

— Que?

— DCE… Centro acadêmico… oficina de arte… essas coisas de quem protesta pelado e fuma maconha. Você tem cara desse tipo de gente — disse provavelmente me olhando pelo olho mágico da porta.

— Não. Eu não sou do DCE

— Prove.

— Como eu vou provar isso?

— Você desenharia um pinto numa foto do Che Guevara?

— Por que eu faria isso?

— DESENHARIA OU NÃO? — ele grita

— SIM!

— DUVIDO!

— ME DÁ A FOTO QUE EU DESENHO!

— QUEM VOCÊ ACHA QUE EU SOU PRA TER UMA FOTO DO CHE GUEVARA?!

— Meu senhor, vai me deixar entrar ou não?

Depois de uns segundos, ele destranca e abre a porta.

O senhor em questão era um velho enxuto, até. Parecia bem “fortinho” e totalmente disposto fisicamente pra idade que devia ter. Era meio careca, daqueles que ainda tem cabelo nas laterais. O jeito dele falar era a síntese do “curto e grosso”. Frases rápidas que não pareciam ter espaço entre as palavras. O rosto tinha a típica expressão “duvido você me imaginar sorrindo”. Certamente era o avô da Alana.

A mochila já estava na sala com tudo dentro, tirando as chuteiras que estavam ao lado. Logo após eu checar tudo, a Tapioca entra na sala. Faço um carinho nela e aviso “Vou levar a gata também. Não sei se a sua neta contou, mas ela é minha”.

Ele se aproxima e diz

— Opa, Opa. Peraí… A Alana não falou nada sobre gato algum.

— Bem, não foi nada combinado. Mas a gata é minha. Eu vim aqui pra levar tudo que é meu

— A gata é sua? Como eu vou saber que você não está mentindo?

— Senhor, a Tapioca é minha.

— Tapioca? Que porra de nome é esse? A Alana chama essa gata de “Jade”. Ah, mas eu sabia. Estava mentindo mesmo. Pega essa mochila e some daqui, pivete.

Perai… “Jade”? A Alana mudou o nome da Tapioca? Pra que? Ela acha que mudar o nome da gata que EU DEI vai desaparecer com qualquer vestígio de lembrança sobre mim?

Isso, na verdade, complica ainda mais a situação. Eu não posso confirmar que a gata é minha porque a Alana não fica com o celular ligado em horário de serviço e tá parecendo que, mesmo se fosse possível, a Alana não estará disposta a entregar a Tapioca pra mim. Eu tenho que sair com essa gata daqui agora.

— Olha, dá pra ver que o senhor presa pelo respeito ao bem alheio, né? Então, por favor, deixa eu levar essa gata. Eu sou o dono dela.

— OK, Patropi. Vamos fazer assim então. Você disse que a gata é sua, certo?

— Certo.

— Então ela te reconhece como dono, certo?

— Creio que sim.

— Bem, a gente vai fazer assim — ele fez uma cara de Salomão pronto para cortar um bebê — a gata vai ficar do outro lado da sala. Você tem que chamar ela por “Tapioca”. Se ela for seu bicho de estimação, como você alega ser, ela irá até você. Aí tu podes levar ela.

Na minha mente só passava o quão estúpido era aquilo, mas era notável que aquele velho era difícil de lidar e que já era um milagre ele não ter me expulsado de casa ainda só pelo fato de eu estar usando bermuda de skatista, então eu topei.

— Só chamar e pronto, né?

— Chamar pelo NOME.

— Tá, tá… vamo lá

Tapioca, tapioca psiushshshshshsh

Vem cá psiushshshshsh

— Pera, pera, pera. Negativo. Não pode usar o “psiushshshsh”.

— Como não?!

— Qualquer gato atende a um “psishshshsh”. Tem que usar só nome.

— Só o nome?! Isso é coisa que cachorro faz!

— Minha filha mais velha tem um gato e ele atende só pelo nome.

— Tá, mas essa gata não é assim.

— Garoto, você já perdeu. Pega essa mochila e volta pro teu DCE.

— Meu senhor, me desculpa, mas eu vou levar essa gata — peguei a Tapioca nos braços.

— Larga imediatamente esse animal — ele disse me puxando pela alça da mochila.

A coisa já estava complicada demais e, quanto mais tempo eu passava insistindo, mais ele me odiava. O cara já me considerava um mentiroso, então eu resolvi acabar com tudo aquilo com uma mentira definitiva.

— Sabe qual é o seu problema?

— Hipoglicemia.

— Não, não… falo de gente como você. Gente conservadora, com princípios firmes e inflexíveis, família tradicional e etc… vocês não sabem lidar com filhos problemáticos.

— Sei muito bem lidar com filho problemático. Já ouviu falar das palmatórias com furo no meio? Acho que não.

— Tô falado sério. Seu… como é seu nome mesmo? — eu disse me sentando numa cadeira

— José Maria — disse se sentando na poltrona em frente

— Seu José Maria. Sejamos francos: o senhor não é próximo da Alana. O senhor não conhece a Alana. O senhor não sabe sobre as coisas que a Alana faz, com quem ela anda, do que ela gosta. E, por isso, não pode controlá-la. Não pode afastá-la daquilo que você e os pais dela desaprovam.

— Olha, você fala muita merda pra um simples ladrão de gato.

— Sou o ex-namorado da Alana. Ela deve ter comentado isso com o senhor ou o senhor já deve ter ouvido falar de mim pela boca da mãe dela. Eu conheci a Alana profundamente. Sei tudo sobre ela. Sei de coisas que nem os pais dela sabem — falei fazendo um carinho na Tapioca deitada no meu colo.

— Cuidado com o que diz, moleque.

— Alana gosta de graffite, sabe? Riscar muro. Ela também não come carne. Apoia o aborto… Sabia que a Alana anda com feministas?

— Onde você quer chegar?

— Assim como o senhor propôs um jeito de resolver isso, eu também vou propôr o meu jeito. É o seguinte: eu digo um segredo da Alana. Algo que o senhor gostaria de saber. Pode ter certeza, o senhor vai querer saber. Feito isso, eu saio daqui com a minha gata. Todos ganham. Não tem nenhuma troca injusta. Eu saio daqui com o que é meu e o senhor com o que é do seu interesse — disse me preparando pro pior.

— Está blefando, moleque. Tu não tem nada do meu interesse.

— Nem sei blefar, senhor — eu disse com o cu na mão.

— Eu devia te botar pra fora daqui na base do chute.

— Realmente — não passa uma agulha.

— Chute não… eu devia te esfolar… e quebrar o teu pescoço como se fosse um frango.

Ele ficou uns 15 segundos olhando fixamente nos meus olhos. Eu nem mesmo tinha coragem de piscar, mas forcei duas leves piscadas para demonstrar naturalidade. Foi aí então que ele disse:

— OK… fale.

— Sua neta transa com garotas.

— Tira esse gato pulguento da minha frente.

Peguei a Tapioca nos braços e saí imediatamente de lá.

Em casa, já de madrugada, pluguei o HD externo no notebook e fiquei escutando música e perambulando pela internet enquanto a Tapioca brincava com a tomada da TV, como ela fazia nos velhos tempos. Foi então que eu vi no facebook uma atualização nova da Alana. Era uma foto dela com uma colega de trabalho, onde ela contou a longa conversa que teve com a sua família hoje de tarde e anunciando para todos que estava assumindo publicamente o namoro com a garota da foto.

--

--