Alma (S02 E02)

Laion Azeredo Silva
FICÇÕES POR MINUTO
6 min readDec 8, 2015

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“Devem ser umas quatro da manhã”, pensa a mulher.

Ela rola mais uma vez na cama.

Já fazem algumas horas que ela tenta em vão dormir.

Rola para lá. Fica sem posição. Observa o teto no quarto escuro. Entra em pânico, após ouvir um pequeno ruído na cozinha. Pega seu revólver na gaveta do criado mudo e vai verificar. Alarme falso. Ufa!

Volta para a cama e tenta dormir novamente. Nada acontece. Mesma maratona. Rola para lá. Rola para cá. Algum ruído estranho. Verificação. Alarme falso. Cama.

Maria — este é seu nome — está acostumada a insônias. Há anos que ela não dorme direito. Sempre que possível evita remédios. Por isso, olheiras se acumulam embaixo dos seus globos oculares.

Contudo, hoje está diferente. A noite está quase acabando e o sono não aparece.

Daqui a pouco o dia amanhece. “Por que estou preocupada com horário?”, pensa Maria.

Realmente, por que ela está preocupada? Uma outra pessoa estaria, pois teria de acordar logo para sair para o trabalho. Maria não tem esse problema. Acabou de perder seu emprego.

Não que ela gostasse muito de lá. Mas não desgostava também. Era um lugar que pagava razoavelmente bem e lhe dava segurança — ou deveria dar.

Ela achava que nunca iria ser demitida. Afinal, fez um concurso público para entrar. Mas havia um probleminha.

Embora fosse uma empresa de economia mista — meio pública, meio privada — e o ingresso fosse feito através de concurso, o contrato de trabalho era baseado na CLT.

Assim, como a empresa está passando por dificuldades orçamentárias — que órgão do Governo não está? — eles viram a necessidade de reduzir quadros.

— Mas por que eu? — Pergunta Maria ao seu chefe durante a reunião de demissão.

— Nada pessoal, Maria. Apenas identificamos que você não tem o perfil que estamos buscando nesta nova fase da organização — Responde o chefe.

— Como assim?

Você é conservadora demais. Precisamos de pessoas…hum…digamos, mais arrojadas neste momento crítico.

Pessoas mais arrojadas. Isto é tudo o que Maria não é.

Ela foi criada para ser uma pessoa que preza pela segurança.

O mundo é um lugar podre, decadente, sujo e que tem por objetivo te ferir. Isso se estende a pessoas, empresas, governos. TUDO! O mundo é violento e vai acabar com você assim que tive a chance.

Essa é a crença da Maria.

Você deve estar pensando: Nossa, que mulher neurótica! Que exagero dela! Ela precisa de ajuda!

Concordo. Ela precisa de ajuda. Não é mesmo, Maria?

— Por que vocês acham que eu preciso de ajuda? Você aí que está lendo, discorda da minha visão? Por acaso o mundo é um lugar tranquilo de se viver?

O Leitor não pode responder agora, Maria. Mas vou representa-lo, se ele não se importar, é claro.

O mundo certamente não é um lugar tranquilo de se viver, mas também não é uma selva onde você deve temer cada passo que dá.

— Você quem pensa! Basta ler os jornais. Essas confusões lá no Oriente Médio, Síria, sei lá. Atentados Terroristas na França, EUA e Cochinchina.

Eu certa vez pensei em viajar para Paris, sabia? Ainda bem que desisti. Imagina se eu estivesse lá justamente no dia dos atentados! Ai, meu Deus!

“Aqui no Rio mesmo. Essa bandidagem roubando e matando a torto e a direito. Pivetes te esfaqueando por toda a parte.

Uma mulher frágil como eu não tem a menor chance. Morreria mais cedo ou mais tarde. Estou começando a achar que foi até bom perder este emprego, sabe. Pelo menos não preciso sair mais de casa. Aqui estou mais segura e…

Calma, Maria. Calma! Assim você vai deixar o Leitor maluco. Vamos tentar manter uma conversa estruturada aqui, ok?

— Tudo bem!

Fale para o Leitor, por favor, desde quando você tem essa visão, digamos, pessimista do mundo.

— Meus pais me criaram assim. Mas minha visão não pessimista. O mundo é assim! Basta ler o noticiário. Basta andar na rua.

“Você viu o negócio dos policiais que metralharam o carro com alguns adolescentes? Mais de 100 tiros! Meu Deus! Imagina se sou eu passando de carro na hora…

Maria, volte para o foco da conversa, por favor.

Ok! Só quis citar um exemplo.

Voltando. Leitor, você está entendendo? Está acompanhando? Bom, vamos lá. Seus pais te criaram para achar que o mundo é perigoso. Mas por que eles fizeram isso?

— Para me proteger, ora! Minha mãe era dona de casa e meu pai, que Deus os tenha, era militar, da Marinha. Sou filha única. Já disse isso?

Não, não disse, Maria.

— Ah, tá. Antes de me terem eles viajaram o mundo. Conheceram várias pessoas e vários lugares.

Daí, engravidaram a primeira vez. Mas em uma dessas viagens, foram assaltados e minha mãe perdeu o bebê. Eles ficaram traumatizados. Tanto que quase decidem não ter mais filhos.

“Eu fui concebida por acidente. Então, desde que nasci, eles viveram apenas para me proteger de todo o mal. E fizeram isso muito bem. Mas quando precisei sair de casa, a coisa mudou.

O que mudou, Maria?

— Não havia ninguém mais para me proteger das pessoas. Da violência do mundo. Eu estava sozinha. Pelo menos durante a semana, já que aos fins de semana voltava para a casa dos meus pais.

Você não saía com amigos ou namorava durante a semana?

— Está louco? Você e esse Leitor só podem estar brincando comigo. Nessa cidade de tarados, estupradores e pessoas cheias de doenças? Como me relacionar aqui?

“Todos os homens, exceto papai, são podres, desrespeitosos e agressores, mamãe sempre dizia.

Entendi. Quando seus pais morreram, como você lidou com isso?

— Bom. A primeira coisa que fiz foi guardar a arma de papai comigo. Vai que alguém tenta invadir minha.

“Comprei uma casa com a herança. Um apartamento em um condomínio que dizem ser o mais seguro da cidade.

“Vivendo com a pensão, passei a estudar para concurso público. Meu diploma de contabilidade me abria possibilidades interessantes.

“Bom. É isso. Minha vida não é muito excitante. Não viajo. Não tenho muitos amigos. Não saio muito.

Mas fico muito na internet. Fico bastante tempo no Facebook e portais de notícias, observando e comentando a situação deplorável que nosso país se encontra. Nosso país não, o mundo inteiro.

O Leitor deve estar se perguntando se você, Maria, acha esse conteúdo que você absorve por redes sociais confiável.

— Óbvio que não é minha única fonte de informação, né. Mas é claro que é confiável. São pessoas de verdade postando. São vídeos reais. Não é o que essa mídia manipuladora nos apresenta na TV.

E você busca que tipo de informações?

— Informações que possam afetar minha segurança. Onde há um tiroteio. Onde há mais assaltos. Agressões. Assassinatos. Coisas assim. Sabendo disso primeiro, posso me proteger melhor.

Mas Maria, vamos pensar juntos. Nós três: eu, você e o Leitor.

Se você só consumir coisas que alimentem seu medo não será pior?

Você estará envenenando sua alma com coisas ruins. Quando você seleciona apenas um tipo de conteúdo, você corre o risco de ver o mundo apenas por esse foco.

Como você só procura notícias ruins, tragédias, crises e violência, você acabará por só ver isto na sua mente. Isto alimenta seus medos, o que faz você buscar mais tragédias para se sentir segura. Entende o ciclo vicioso?

Assim você violenta sua alma e a fecha para as coisas boas do mundo, para a novas possibilidades. Você acaba por viver uma vida que não é real.

— Hummm.

O que acha de começar a buscar outros conteúdos? O que acha de abrir mais sua mente às boas notícias? O que acha de comentar em redes sociais apenas quando for para proferir boas palavras? O que acha de conversar com mais pessoas, de preferência na vida real, não na vida virtual?

O que acha destas ideias, Maria?

— Você só pode estar maluco! Claro que não. Não posso perder meu tempo com idiotas. Com visões deturpadas da realidade.

“Sou uma mulher sozinha em um mundo perigoso. Não posso dar mole. Inclusive, você e esse Leitor têm umas ideias muito estranhas.

“Não quero mais conversar com vocês não. Vou dar unfollow em vocês.

“Boa noite. Vou tentar dormir.

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