Encanto (S01 E02)

Laion Azeredo Silva
FICÇÕES POR MINUTO
6 min readDec 2, 2015

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— Pronto! Assinei essa merda! — Diz a mulher para a ampla e requintada sala de reunião de um caro escritório de advocacia na cobertura de um famoso edifício comercial localizado na Avenida Paulista.

Seu único interlocutor responde em tom de alívio.

— Obrigado, Joana. Espero que agora não tenhamos mais problemas, certo?

— James, só porque estamos nos separando não significa que estou morrendo para você, ? Esse pedaço de papel não muda em nada meu amor — Seus olhos lacrimejam.

— Ah, Joana. De novo não! Não vamos ter essa conversa novamente. Nossa relação não dá mais! Entenda isso! Após dois anos de perseguições, controle e exigências irreais de sua parte, eu não consigo mais. Você é too much.

— Não seja tão duro comigo. Dói ouvir isso assim, no meio da cara. Engraçado que você não falava isso na cama, não é mesmo? Você não falava isso quando eu te dava presentes caros. Você não falava isso quando te ajudei a conseguir a porra do visto permanente aqui para o Brasil. Se não fosse por mim você ainda seria um caipira, limpando merda de ovelha no cu da Escócia. É assim que você me paga? Me chutando da sua vida sem mais nem menos?

— Você sempre dramática, aren’t you? Em primeiro lugar, eu não sou um caipira. Dumfries é uma cidade importante e eu tinha um emprego decente lá. Quando você me seduziu naquele pub e decidiu ir para cama comigo, não pensou em Dumfries como roça e eu como tuathanach[1]. Você é uma hipócrita.

— Hipócrita é você. Odiava aquela vida pacata e sem propósito e estava doido para ser um homem de sucesso em outro país, casar com uma mulher linda e amorosa como eu, ter filhos e uma casa na praia. Aí agora vem pagar de que eu que te seduzi? — Joana já estava quase gritando.

James rebate.

Are you crazy? Essa é a sua fantasia, não a minha. Eu gostava da minha rotina. Eu gostava de dar aula de matemática na escola. Eu gostava de fazer bicos naquele pub a noite. Eu gostava de morar perto dos meus pais e, sim, às vezes, ajudar meu velho ayr[2] a limpar merda de ovelha. Qual o problema disso? Por que estou errado em querer ser simples, pacato? Você sempre quis me impor sua visão de mundo, mas nunca parou para ouvir a minha.

— Simplesmente porque a sua está errada! Quem quer viver na merda quando tem potencial para fazer mais? Você tem de querer sempre mais, buscar sempre mais. Ter mais dinheiro, viajar mais. Conhecer o mundo e ter uma casa com piscina para os finais de semana. Um apartamento grande e aconchegante na Zona Sul para receber os amigos durante a semana. Esse é o imperativo do século XXI, meu bem. Você pode tentar negar isso, mas será cuspido do mundo.

“Eu só queria liberar seu potencial. Você tem um lord inglês aí dentro de você. Um homem sensível, educado, superinteligente, gentil e respeitador. Um homem que me eleva acima de qualquer outra prioridade na vida, exceto o seu trabalho, é claro. Um homem que está sempre antenado com os últimos assuntos dos negócios e da vida saudável. Um homem que só consome álcool moderadamente, que faz sexo selvagem comigo, e somente comigo, sem moderação.

Você tem tudo para ser um homem perfeito. Vi isso em você logo de cara. Você só precisa deixar eu moldar você um pouquinho.

My Gosh! Você está cada dia mais maluca. Eu não sou nada disso que você falou. Quantas vezes preciso te dizer? Não acredito em metade destes valores que você listou. Fui criado para ser um homem simples, não esse banqueiro feroz, amante impecável, pai herói e atleta olímpico que você imagina. Isto tudo está em sua cabeça. São suas ideias, sua visão de mundo! Não me obrigue a segui-las. Meu nome é James McCloud, não James Bond, got it?

— James, por favor. Seja mais esperto. Abra seus olhos. Deixe essa visão limitada dos seus pais para trás. Olhe as oportunidades que te cercam.

— Não! Pare de querer controlar minha vida. Cuide mais da sua. Você vive em função de montar essa visão de vida perfeita, quando na verdade não consegue nem mesmo dar um jeito em si mesma e na sua família.

“Ontem sua irmã, Mareca, foi eliminada do reality show e você nem foi lá acompanhar sua mãe. Eu não gosto da sua irmã e você sabe. Mas ela é a única família que você tem. Você abandonou a todos por essa busca incessante por dinheiro, sucesso na carreira, aparências e por meu amor. Ou seria minha posse? Mas o que você quer de verdade? Quem é você de verdade? Após dois anos de casado e mais quatro de você tentando me conquistar, eu ainda não sei responder a esta pergunta. Shit! Você vive se escondendo atrás de clichês e estereótipos. Visões aprovadas pela sociedade sobre o que é a vida. Mas para você, lá no fundo do seu cridhe[3], o que é a vida perfeita? Duvido que seja essa corrida dos ratos em que você vive e acha que eu devo viver. Você e sua irmã devem dar muito orgulho à sua mãe. São bonitas e tem sucesso financeiro. Mas, infelizmente, são ocas e destruídas por dentro. Obsessivas com coisas externas e não cuidam da própria alma. Para o mundo, vocês são modelos a serem seguidos. Para mim, são lições do que não fazer!

Joana mastiga lentamente as palavras duras de James. Olha no fundo dos olhos do escocês. As pupilas dela estão dilatadas de tensão e raiva. James imagina que se parecem com dois canos de revolver apontados para sua cabeça.

Após um silêncio que parece durar anos, Joana diz.

— Você é um ingrato. Você sabe quanto dinheiro gastei em viagens para a Escócia apenas para te ver? Em roupas para você? Em viagens pela Europa e Ásia com você, só para te mostrar o mundo, para te refinar e te agradar? Sabe quanto custou a porra da festa do nosso casamento, o Porsche que te dei e a viagem de lua de mel? Você sabe? Hein? É assim que me retribui? Nosso casamento foi um fracasso por sua causa! Você não tem ambição. Não tem refinamento. Não tem visão da vida. Prefere ficar com a cabeça enfiada no chiqueiro e dando aula para retardados em uma escolinha de segunda categoria. Encher uma mulher de filhos e entupir o bucho de uísque barato todos os dias no pub local com seus amigos igualmente fracassados.

Você poderia ser um príncipe. Meu príncipe! Eu lhe daria tudo. Faria tudo por você. Mas você não quer ser. Você não enxerga essa oportunidade que estou te dando. Você me chama de controladora. Não sou. Só quero o melhor para você, seu idiota.

De que adianta ter tudo, mas perder minha essência no processo? Adeus, Joana. Foi bom te conhecer.

Ele se levanta e sai da sala. Seu voo para Glasgow partiria em quatro horas.

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[1] Caipira em gaélico escocês.

[2] Pai em gaélico escocês.

[3] Coração em gaélico escocês.

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