Futuro (S02 E04)

Laion Azeredo Silva
FICÇÕES POR MINUTO

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“O Deputado Federal Valdemar da Padaria acaba de ser citado em processo disciplinar no Conselho de Ética da Câmara em virtude de acusações de desvio de verba das secretarias de educação e saúde e corrupção ativa no ano de 2017, quando era prefeito do município de São Luiz do Mato.

Neste ano, as secretarias sofreram diversos cortes de orçamento e atrasos nos pagamentos do funcionalismo. A crise culminou em uma greve geral das secretarias no início de 2018, o que paralisou todos os serviços de saúde e escolas do município.

Ao mesmo tempo um surto de Zika Vírus[1], potencializado pela paralisação dos trabalhos de prevenção, fez com que o pequeno município do interior se tornasse notícia nacionalmente por abrigar o maior número de casos de microcefalia congênita[2] do país naquele ano. A microcefalia está diretamente relacionada à infecção por Zika durante a gestação Especialistas já falam em ‘desastre de saúde pública’ e em ‘uma geração perdida’.

Os desvios de verba teriam sido usados para comprar vereadores e outras instâncias públicas para aprovar pautas de interesse do prefeito e para financiar a sua candidatura a Deputado Federal em 2018.

Procurado por esta reportagem, o Deputado não foi encontrado para que pudesse se manifestar.

Renata Souza, direto de Brasília, para o Jornal Independente”

— Isso é um absurdo! Uma calúnia que fazem contra mim — Valdemar está possesso e anda de um lado para outro da sala enquanto gesticula enquanto o noticiário continua a ser exibido na TV — Isso certamente é algum golpe. Tenho certeza que é a galera do partido de oposição querendo minar minha candidatura para a presidência da CPI do BNDES.

— Tenho certeza disso, querido — Marta tem a voz aflita — Você precisa ir agora à mídia e às redes sociais dizer que isto é um absurdo.

— Pai, por que eles estão falando estas coisas de você? Isto é verdade? — Caio pergunta ao pai.

— Claro que não meu filho. É tudo mentira.

Caio ainda está incomodado com algo.

Valdemar continua com sua revolta.

— Você tem razão, amor. Vou convocar alguns jornalistas e vou me manifestar no Twitter e no Facebook. Meus eleitores têm de ter segurança de minha idoneidade.

— Concordo, amor.

Caio toma coragem para questionar o pai.

— Pai.

— Sim, Caio.

Se você não é o responsável por estes desvios, qual foi a causa do rombo no orçamento das secretarias? Se você era o prefeito, como você não viu que isso ia ocorrer? E, sabendo que havia um surto do vírus Zika e a relação desta doença com microcefalia e como isso pode afetar uma geração inteira, como o senhor deixou que os Agentes de Vigilância da Saúde entrassem em greve?

Valdemar fica em silêncio olhando intrigado para o filho. O menino de 17 anos jamais questionara o pai de maneira tão direta e veemente. Valdemar se quer sabia que seu filho se interessava por política.

— Filho, gerir uma prefeitura não é tão simples quanto você faz parecer.

Caio, tomado por uma coragem que ele não sabe de onde vem, continua o questionamento.

— O senhor está sendo evasivo, pai. Eu andei pesquisando sobre a época. O senhor assinou diversos decretos aprovando despesas milionárias no mínimo esquisitas, como reformas de escolas que se quer existem.

“Tem também compra de medicamentos para tratamento de doenças que não registraram nenhum caso sequer no município em vários anos.

— Por que você anda perdendo tempo com essas coisas, menino?

— Por que é vergonhoso ver a situação que o local onde nascemos se encontra e saber que piorou muito por causa do próprio pai.

“Nós viemos da pobreza pai. Eu era pequeno mas lembro que passamos fome algumas vezes. Lembro que o senhor finalmente conseguiu um emprego de atendente em uma padaria. Lembro que o senhor era tão bom que o dono o chamou para ser sócio gerente. Lembro também da morte misteriosa do sócio e que até hoje não foi investigada. Lembro como, depois de muito trabalho, o senhor transformou uma pequena padaria em uma rede espalhada por toda a região. Lembro da primeira vez que se tornou vereador e como prometia fazer o melhor para o povo que te elegeu, pois você havia vindo do mesmo lugar que eles e sabia suas dores.

“Eu tinha orgulho do senhor, pai. Mas depois de ver o que o senhor fez em seu primeiro ano de mandato e principalmente as consequências graves que seus atos deixarão em nosso povo, o povo que nos deu comida quando passávamos fome, tenho que dizer que hoje tenho vergonha do senhor!

Valdemar de súbito muda de expressão, esbugalha os olhos fazendo uma careta de fúria e estala um forte tapa na face do filho.

— Que porra é essa, Caio. Que monte de merda é esse que você está dizendo? Você sabe a gravidade das acusações que fez?

Caio olha incrédulo para o pai. Em 17 anos ele nunca havia sido agredido assim. Mesmo com o rosto machucado, o jovem não reduz a potência da investida.

— Sei sim, pai. São graves. Mas o senhor fez isso tudo. Eu tenho certeza. Diferentemente do senhor e da mamãe, que desde que viemos para Brasília não falam mais com as pessoas de São Luiz do Mato, eu mantenho contato com todo mundo da minha juventude.

“Eu converso com as pessoas e eles me contam a situação em que o município se encontra. Essa crise da microcefalia está sendo terrível, pai. Mais de 1.200 crianças afetadas em pouco mais de um ano. Mais de 1.200 famílias pobres destruídas. Jovens que queriam apenas constituir uma família, agora terão de se desdobrar para cuidar de uma criança com debilidade mental.

“Tudo isso poderia ter sido evitado. Essa tragédia humana poderia ter sido contida, se as vacinas contra o Zika tivessem sido aplicadas a tempo e se os Agentes de Saúde tivessem feito o trabalho de prevenção. Mas não! Não havia dinheiro. O senhor o havia roubado todo para nos dar luxo e financiar sua campanha.

— Caio, ordeno que você cale a sua boca!

Marta intervém, finalmente.

— Caio, peça desculpas imediatamente ao seu pai!

— Não pedirei, mãe. Tenho vergonha dele. Ele é sujo. Todos nós somos. Vimos o que ele fez e ficamos calados. A senhora está adorando ir à Paris de seis em seis meses, não é mesmo. Mas a senhora se lembra da Dona Lurdes? Aquela que nos dava bolsas e bolsas de compras todo mês para que não passássemos fome quando papai estava desempregado? A netinha dela, Luiza, nasceu com microcefalia. É assim que nós retribuímos?

— Caio, a situação de São Luiz é muito triste. Mas você não pode me culpar por tudo que ocorreu lá só porque fui prefeito na época.

Te culpo por não ter empatia, pai. Te culpo por aceitar ser um agente público e não cuidar de quem te colocou lá. Te culpo por ser egoísta e não lembrar de quem te ajudou quando mais precisou. Te culpo por esquecer seu passado. Mas te culpo, acima de tudo, por tirar a única coisa irreparável de qualquer ser humano: O Futuro.

“Quando desviou dinheiro público da educação e da saúde o que o senhor fez na verdade foi retirar a possibilidade de sonhar com um futuro melhor de milhares de pessoas que eram nossos vizinhos e vizinhos de nossos pais e avós.

“O senhor tirou a chance de qualquer um deles querer avançar e vencer na vida, como o senhor fez.

O senhor cometeu a pior das violências possíveis: Retirou a esperança do coração das pessoas. Isso é imperdoável. Não sei como o senhor consegue dormir à noite com isto na consciência.

“Na verdade, eu sei. É fácil ser violento quando não precisa olhar nos olhos da vítima, não é? É fácil matar, quando a vítima está longe. Mas então, olhe isto — Caio mostra a foto de uma mãe com seu bebê microcéfalo — Esta é a Joana. Na escola eu era apaixonado e sonhava em me casar com ela. Se o senhor não tivesse virado vereador e me tirado daquela escola, talvez isso tivesse acontecido. Então, pai, olhe bem esta criança no colo dela. Ela poderia ser seu neto.

Caio se vira e sobe para o quarto correndo.

[1] O vírus Zika (em inglês, Zika virus — ZIKV) é um vírus que, transmitido pela picada do mosquito Aedes aegypti, causa, em humanos, a doença conhecida como zica (ou febre zica, ou febre Zika). É relacionado aos vírus da dengue, da febre amarela, da encefalite do Nilo e da encefalite japonesa, os quais igualmente fazem parte da família Flaviviridae.

[2] Microcefalia (do grego mikrós, pequeno + kephalé, cabeça) é uma condição neurológica em que o tamanho da cabeça é menor do que o tamanho típico para a idade do feto ou criança. Também chamada de Nanocefalia, constitui-se no déficit do crescimento cerebral, quer pelo pequeno tamanho da caixa craniana, quer pelo reduzido desenvolvimento do cérebro. É uma das causas de oligofrenia (déficit intelectual).

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