Maravilha (S01 E01)

Laion Azeredo Silva
FICÇÕES POR MINUTO
7 min readDec 1, 2015

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— E com 58% dos votos, a eliminada é…

“Vamos, diz logo não enrola cara.”

— A eliminada da noite é…Mareca. Obrigado, Mareca. Pode se despedir dos seus colegas de casa.

“Caramba. Que merda. Que merda. Eu não achei que isso fosse acontecer. Putz grila! O que eu faço agora? Todos estão me olhando. Cacete!

“O produtor falou para eu chorar caso isso acontecesse. Isso criaria mais empatia com o público. Então lá vai. Lágrimas a caminho”

— Que cena emocionante pessoal. Mareca não controla as lágrimas. É a nossa heroína da noite. Venha cá para fora, Mareca. O público quer te ver. Sua família e amigos estão aqui com saudades.

“Família e amigos? Hahaha. Só rindo dessa. Minha mãe me odeia. Sempre me achou uma puta, só porque trabalhava na TV.

“Minha irmã é uma idiota que nunca teve vida própria e vive para o marido boçal. Ela perdeu os melhores anos de sua juventude tentando conquista-lo e agora descobriu eu ele não é um príncipe encantado. Heloooo!

“Minha filha está respondendo a um processo criminal em liberdade. Homicídio culposo. Só Deus sabe quanto dinheiro gastei para que ela não ficasse presa.

“A imbecil, em uma das suas crises de rebeldia, pegou meu carro drogada, saiu em disparada e atropelou e matou uma garotinha em plena Avenida Paulista.

“Não tem muito o que fazer por ela. Vai ser presa mais cedo ou mais tarde. Ainda bem que a família da criança é pobre não pode pagar bons advogados.

“Pobre! Sei bem o que essa palavra significa. Vim de lá, da pobreza, sabe?

“Consegui chegar no topo. Dinheiro, poder, fama. Era a melhor apresentadora infantil da TV brasileira, em uma época em que as crianças sabiam o que era TV. Até a Xuxa abaixava a cabeça para mim.

“Do nada, tudo desmoronou. Dinheiro, fama, poder, amigos, festas, convites, áreas VIPs, Ilha de Caras, ensaios fotográficos, bufets, coquetéis, orgias na casa de diretores de programas de TV, drogas…tudo virou areia. Uma hora está ali. Na outra, não.

— Venha, Mareca. Pegue suas malas e venha.

“Pronto, tenho de sair desta casa. Deste maldito reality show de celebridades decadentes. Deste circo de atrocidades ao vivo, 24h por dia, em pay per view.

“Só tem gente bacana aqui. Só rejeitos do show biz brasileiro.

“O cara de quem estou me despedindo, por exemplo. Era ator de novela. Conseguiu um certo sucesso. De repente foi parar na polícia por ter agredido um travesti e sua carreira foi para o espaço. Ganhou notoriedade novamente trabalhando em filmes pornográficos e, advinha, justamente com travestis. Bitch, please!

“O cara com quem ‘namorei’ aqui dentro — afinal, o diretor falou que um romance sempre chama a atenção. Nós deveríamos dar um jeito de ‘se pegar’, para usar uma expressão dele — é outro caso típico.

“Ator, galã, gostosão. Faz algumas novelas. Não aguenta a pressão. Se vicia em drogas — quem nunca, não é mesmo? — e aparece em um escândalo.

“Vai para a reabilitação, volta a fazer algumas novelas, mas faz uma merda maior ainda. Por fim, um paparazzi flagra ele saindo de um festa com o nariz mais branco que um pico nevado. Bingo! Decadência e reality show de celebridades.

“Mas a melhor é esta a quem estou abraçando agora. Miss bumbum por um estado qualquer do Sul do Brasil. Ganha fama local e aí faz o que? Monta um ONG? Nããããão. Começa a fazer Book Rosa, é claro.

“Três ou quatro mil por noite para fazer uma coisa que você já ia fazer mesmo — dar para alguém. Se tivesse isso na minha época eu teria topado também.

“Mas aí a pessoa exagera e cai nas drogas — porque esse povo não aprende que coca não leva a nada? — se mete com orgias, satanismo — isso eu acho que é exagero dela para vender mais livros — e finalmente faz uma cirurgia plástica que dá errado.

“Fica hospitalizada, quase morre — mas não deixa de atualizar o Instagram um dia se quer. Afinal, você deve ser a primeira a dar o furo da sua morte, certo?

“No final, recebe uma revelação divina.

“Na semana que sai do hospital se torna beata, contrata um ghostwriter — um cara que escreve um livro para você quando você não sabe fazer isso — e lança uma biografia para ‘chocar a família brasileira’ contando sua trajetória de ‘vir do nada, fama, sedução pelo satã do materialismo, luxúria e drogas, queda e conversão’.

“A Jornada do Herói, completinha. Fui ao inferno e voltei. Obrigado gregos por terem criado o teatro trágico. Aff, que sono essa menina me dá.

“Bom, já me despedi dessa corja de fracassados. Tenho de caminhar até a porta da casa, olhar para trás com cara de saudade e o rosto cheio de lágrimas, dar um tchauzinho para meus amiguinhos, assoprar um beijo para meu ‘ex-namorado da casa’ e sair. Esse é o roteiro que o diretor escreveu para mim. Vamos lá.

“Porta, virar para trás, choro, saudade, beijo assoprado e porta de novo. Pronto!

“Agora estou em um corredor. No final tem um estúdio cheio de pessoas querendo me ver.

“No fim das contas, é isso sabe? É com isso que eles nos compram. Pessoas! Amor! Essa sensação de que todos te amam!

“Eu me viciei nisso. Nas fotos, nos abraços, nas cartas apaixonadas das meninas de 12 anos com a frase ‘eu te amo’ escrita ao longo de 15 m de papel.

“Eu sou uma dinossauro. Venho de outra época. Antes do asteroide chamado internet destruir a televisão. Só existia a TV. Nós, dentro daquela caixinha de plástico, éramos deuses.

“Mas o pior ocorre quando você mesma acredita nesse conto. Quando você se convence que é realmente especial. Neste momento, neste exato momento, você se fodeu para o resto da sua vida.

“Eu, como qualquer menina boba do interior, sempre quis ser famosa, claro. Mas, quando venci meu primeiro concurso de beleza, aos 14 anos, e experimentei o público… Ahhh, ali começou tudo.

“A fama se tornou a única alternativa viável. Abandonei os estudos, fui morar no Rio de Janeiro, dormi na rua, fiz sexo em troca de figuração em programas de TV, até que, depois de muito trabalho, consegui estrelar meu próprio programa infantil. Manhã da Mareca. Eu adorava aquilo.

“Mas essa era justamente minha prisão. Meu vício. Minha obsessão. Abandonei minha família. Não criei minha filha — isso talvez explique o fato de ela só fazer merda na vida — e nunca quis saber de mais nada. Só a fama me interessava. Acho que nunca cheguei sequer a me apaixonar.

“Engraçado pensar nisso. Sempre quis ser amada por todos, mas fui incapaz de amar.

“Aí, então, veio a queda. Uma outra loirinha, mais nova, mais antenada, mais gostosinha e mais disposta a dar para as pessoas certas tomou meu lugar.

“Nesse momento descobri o pior de mim. Fui capaz de tudo para não perder a fama. A queda era inviável, impossível para mim. Não podia perder meu público, meus fãs.

“Que decepção descobrir que a única coisa a qual dediquei minha vida poderia me esquecer tão rápido. As crianças tem memória curta pelo jeito.

“Entrei em depressão. Quis me matar. Quis matar minha filha, que tentou impedir meu suicídio. Me viciei em álcool, antidepressivos e sarcasmo. Descobri que a queda é tão pior quanto mais alto você estiver.

“Hoje, depois de tanto tempo, aprendi a conviver com isso. Com a falta de fama.

“Tenho um canal nesse tal de YouTube, com poucos assinantes, e faço umas coisas engraçadas — me tornei uma caricatura de mim mesma. Uma piada sobre os anos 90. É uma degradação absurda.

“Saio de cada gravação com vontade de me jogar embaixo do primeiro ônibus que aparecer. Mas mantenho as aparências. Sabe por quê? Porque preciso. Necessito disso. De fama!

“Talvez eu não tenha aprendido a conviver com isso.

“Não estou falando de dinheiro. Nasci pobre, sei viver com pouco. Mas preciso de fama e abro mão de tudo por isso. Meu amor próprio, minha dignidade, minha vida.

“A queda foi muito dura, alguns ossos quebrados. Feridas internas, mas meu sorriso permanece. Ainda mais esta noite que, ao passar pelo corredor, vou me sentir amada novamente. É tão bom!

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