Corpo (S02 E01)

Laion Azeredo Silva
FICÇÕES POR MINUTO
10 min readDec 7, 2015

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Muito se fala sobre violência na mídia e nas conversas particulares. “O mundo nunca esteve tão violento como hoje em dia”, dizem algumas pessoas. É uma afirmação difícil de comprovar, devido à impossibilidade de comparação precisa com épocas passada.

Entretanto, a equipe do FICÇÕES POR MINUTO acredita que a pergunta principal a ser respondida é na verdade “POR QUE SOMOS VIOLENTOS?”. Ela nasce conosco? Ela é aprendida? Ela pode ser evitada?

Na série desta semana trabalhamos a violência e suas diversas manifestações: Violência contra o corpo, contra a alma, contra a natureza, contra o nosso futuro e contra nós mesmos enquanto sociedade.

Começamos a semana acompanhando a história de Clara. Ela é agredida constantemente por seu companheiro violento, mas não consegue se libertar da influencia dele. Será que Clara vai ser livre de novo? Acompanhe nas linhas abaixo.

Amanhã acompanharemos uma mulher que acabou de perder o emprego reflete sobre sua vida até ali e descobre que suas escolhas foram pautadas por medos e modelos que seus pais imputaram nela. Assim, ela viveu a vida de outras pessoa, não a sua. Como se convive com algo assim?

Na quarta temos um Agente do IBAMA que participa de uma perseguição a traficantes de aves raras na amazônia. Ao capturar um dos bandidos interroga-o em busca de respostas do porque fazer aquilo com seres indefesos.

Na quinta um político corrupto é questionado por seu filho de 17 anos após ele ser acusado de denúncias de desvio de verba. O filho pergunta ao pai porque ele fez aquilo? Porque ele tirou o futuro de tantos jovens iguais a ele roubando verba da educação e da saúde. Quando não se olha nos olhos da vítima, é mais fácil ser violento?

Por fim, na sexta, vocês acompanharão a grande conclusão destas histórias. Em uma agência bancária, os quatro personagens principais das outras histórias desta semana se encontram durante um assalto — que na verdade é um teste de um psicopata — e terão de tomar decisões difíceis em um teste psicológico sobre a natureza humana.

Espero que estes ensaios, além de diverti-los e entretê-los, os façam refletir sobre quem somos nós.

Bom episódio!

Clara entra na sala apertada. Os móveis são todos de metal. As paredes são cinza bem escuro, e dão um ar sombrio ao cubículo. A iluminação é eficiente, preenchendo o ambiente apenas no necessário. Em tudo aquela sala buscava mostrar austeridade e simplicidade. Clara observa e conclui que esta lógica faz bastante sentido, se tratando de uma sala de interrogatório policial.

Clara não se sente nem um pouco à vontade em sentar em uma das cadeiras que se encontram em lados opostos de uma mesa no centro do ambiente.

Ela prefere ficar encolhida, em pé, em um dos cantos da sala esperando algo acontecer.

Não demora muito, algo finalmente acontece.

Uma pessoa entra no ambiente. Suas feições são graves e há marcas de expressão, não tanto por causa do tempo, quanto por causa do constante franzir do cenho e aperto dos lábios em uma cara infeliz.

Os cabelos são grandes, negros e ondulados, mas estão presos por um rabo de cavalo mal feito.

O corpo é atlético e firme. Talvez a pessoa pratique alguma arte marcial.

A postura é de autoridade, comum em pessoas que estão acostumadas a serem obedecidas.

A pessoa tem uma pasta de arquivos e um gravador de áudio nas mãos.

Logo depois de entrar e perceber a presença de Clara no ambiente, rompe o silêncio.

— Olá, Clara. Sou Antônia, delegada deste distrito. Sei o que você vem passando e vim ouvir sua história. Preciso coletar seu depoimento para poder agir sobre seu caso. Se importa em responder algumas perguntas?

Clara observa a novata e a avalia como se duvidasse de sua identidade ou propósito. A vida ensinou Clara a duvidar de tudo.

Por fim, ela responde.

— Sim, senhora.

— Por favor, sente-se.

Clara se senta. Antônia faz o mesmo logo depois.

Passam-se uns cinco minutos de silêncio entre as duas pessoas na sala enquanto Antônia instala do gravador e organiza a papelada.

Quando aparentemente está satisfeita com seu trabalho, Antônia volta a falar.

— Olá de novo, Clara — Antônia força um sorriso para parecer simpática — Como já lhe explicaram, o próximo passo na denúncia de agressão doméstica é a gravação de um depoimento.

“A coisa toda é bem simples. Vou te fazer algumas perguntas e basta você respondê-las. Sei que não é fácil falar sobre determinadas coisas, mas precisamos disso se quisermos parar com as ameaças sobre você. Tudo bem? Alguma dúvida? Podemos começar?

Clara tem o olhar fixo sobre a interlocutora.

— Podemos sim.

— Ok. Vou ligar o gravador.

Antônia liga o aparelho. Um som mecânico começa a ecoar nas paredes nuas da pequena sala.

— Vamos começar estabelecendo uma cronologia — Antônia está mais séria e objetiva do que antes — Me conte como conheceu o Marcos.

— Bom, isso faz uns dois anos. Amigos de amigos nos apresentaram. Fui a um barzinho com um grupo e, por coincidência, em outra mesa havia uns amigos de um dos meus amigos.

“No fim, juntaram as duas mesas e eu parei ao lado de Marcos. Ele era muito bonito, bom de papo e galanteador. Fomos para cama naquela noite e passamos a sair com frequência.

“Após cinco meses de namoro me mudei para a casa dele. Conosco sempre foi tudo muito rápido e intenso.

— Como era a convivência com ele?

— Sempre foi ótima. Ou melhor, nos primeiros meses foi ótima. Ele sempre foi muito gentil, galanteador e carinhoso.

“Sempre me deu muitos presentes e me tratava muito bem. Mas depois de alguns meses morando juntos, uma face diferente da personalidade dele começou a surgir.

Começou como algo inocente. Ele criava uma pequena cena de ciúmes quando saíamos e achava que alguém estava olhando para mim.

Eu achava aquilo natural. Afinal, as pessoas têm ciúmes, certo? Aquilo era uma demonstração de amor no fim das contas. Mas a cenas se tornaram mais frequentes e mais intensas.

— Quando e como ocorreu a primeira agressão? — Pergunta Antônia.

— Estávamos em casa. Era domingo à tarde e assistíamos ao futebol. Eu saí da sala para tomar banho durante o intervalo. Quando saio do banheiro, ainda enrolada na toalha, recebo um soco no tórax — A voz de Clara embarga ao dizer isto, como se ainda sentisse a dor — Meu celular havia recebido uma notificação enquanto eu estava no banho. Um colega de trabalho havia mandado um whatsapp solicitando o envio de um determinado documento no dia seguinte, até o meio-dia.

“Ele encarou aquilo como um código para marcação de um encontro sexual na hora do almoço. Perdeu a cabeça e me agrediu a primeira vez.

“Assustada e desorientada, tentei explicar que não havia código algum. Ele só estava pedindo um documento mesmo.

“Pouco adiantou. Na verdade, só o deixou mais nervoso. Danou a me socar mais e mais, até que eu caí no chão tentando me defender. Eu sou bem menor que ele, então ele conseguiu me dominar sem dificuldades.

Depois que ele descontou toda a raiva em mim, me vi estendida no chão, com o rosto lavado de sangue e dores por todo o corpo. Mas a dor da alma era muito maior.

“ Fui ao médico sozinha e falei que tinha sofrido uma queda. Obviamente a médica da emergência não acreditou e tentou me ajudar. Ela devia estar acostumada com casos de violência doméstica. Me aconselhou a ligar para o telefone 180. Segundo ela era a principal via para denunciar casos de violência doméstica, embora ela não estivesse certa se funcionaria no meu caso — Clara faz um gesto apontando para seu corpo enquanto diz isso — Contudo, após os curativos, quando ela saiu para chamar a assistente social, eu fugi.

— E porque você fugiu, Clara?

— Não sei. Estava assustada, envergonhada. Não sei mesmo. Apenas fugi e voltei para o Marcos. Esta cena se repetiu diversas vezes depois. Agressões sem sentido, com uma violência cada vez maior, pronto socorro, fuga, volta para Marcos.

“Quando eu voltava, era sempre muito impressionante. Ele sempre fazia uma expressão de preocupação, como se não soubesse onde eu estava e como se os ferimentos tivessem sido causados por outra pessoa, por outras mãos.

Cuidava de mim, me acolhia, era o Marcos que eu conheci e por quem me apaixonei. Me sentia a pessoa mais importante do mundo em seus braços neste momento.

“Mas não tardava para acontecer novamente. Ciúmes desnecessários, agressões, choro, desespero. Hospital, fuga. Carinho e amor.

“Na última vez, ele suspeitou de um primo meu. Eu não tenho mais redes sociais ou qualquer aplicativo de chat justamente para não dar motivos. Mas mesmo assim ele continua suspeitando. E começou a encrencar com minha família.

“Ao chegarmos em casa depois da festa de Natal na casa da minha mãe, em que o tal primo estava presente, ele começou a me questionar sobre minha infância com esse primo.

“Falei que éramos bastante próximos, que jogávamos bola juntos no playground do condomínio e tal. Ele entendeu que eu tinha um amor de infância por esse primo e começou a me agredir verbalmente.

“Quando o ignorei e fui para o quarto ele veio com tudo para cima de mim. Tentou me socar, mas eu corri para a sala. Ele veio atrás e tentou me dar chute. Pegou de raspão e me desequilibrei. Ele então veio e pisou no meu braço esquerdo. Não chegou a quebrar, mas trincou um osso.

“Eu consegui me levantar, gemendo de dor, e corri para a cozinha. Lá tem uma porta e eu pretendia me trancar. Mas antes que conseguisse fazer isso ele me alcançou e me empurrou. Caí no chão. Havia uma faca grande em cima da bancada. Ele não hesitou. Pegou a lâmina e veio me atacar. Eu, no chão, não pude fazer muito. Apenas me virei de lado. A lâmina perfurou meu ombro — o mesmo do braço machucado — e saiu do outro lado. Ela ficou presa em um osso. Ele não conseguiu retirar. O sangue começou a escorrer pelo chão. Acho que neste momento ele se sensibilizou um pouco, porque parou os ataques por um minuto.

“Foi o tempo que necessário para eu me levantar, dar com uma panela de pressão na cabeça dele e sair correndo pelo corredor. Sai da casa e me enfiei no primeiro taxi que vi. Vim para delegacia, onde fui encaminhada para um hospital. Hoje tive alta e aqui estou.

— O que você pensa dessa relação alternante que vocês têm? Digo, uma hora ele te agride, na outra cuida dos ferimentos que ele mesmo causou? Você acha isso saudável?

— Obviamente não é saudável, delegada. Não sou idiota. Mas não é tão simples quanto você acha sair disto. Já ouvi histórias de mulheres que ficam presas neste círculo vicioso.

“Achei que isso era coisa de mulher e que não aconteceria comigo. Mas veja só. Estou presa nesta roda de dor e amor e vejo que o único caminho possível para mim será morrer nas mãos do Marcos — O rosto de Clara cai dentro das mãos em profundo desespero e choro desenfreado.

Antônia espera a crise de Clara passar e oferece um copo d’água que está sobre a mesa. Clara se recompõe.

— Clara, eu entendo sua situação. Não pense que diminuo sua dor ou te culpo pelo que passa. Às vezes a influência que alguém exerce sobre nós é tamanha que nos sentimos compelidos a abandonar nossos próprios instintos de sobrevivência e amor próprio para estar perto dessa pessoa.

Só falei aquilo para que se conscientize que esta situação não é saudável. E, principalmente, que há outra saída além da morte pelas mãos do Marcos.

Nós podemos ajudar. Basta você deixar ser ajudada.

“Você já deu um passo muito importante vindo até nós e estou muito orgulhosa de você. Sei como é difícil. Eu, na juventude, fui agredida por um namorado. Já sofri com isso. Mas para prosseguirmos, você precisa continuar caminhando. Precisa ter força e querer continuar a ser ajudada.

“Temos sistemas para te proteger do Marcos e grupos de ajuda com assistentes sociais para que possa trabalhar estes traumas. Você só precisa se lembrar que não está sozinha nessa. Mas só podemos te ajudar se você nos permitir.

“Precisa se afastar do Marcos e aceitar ser protegida pela Lei. Você aceita? Podemos te ajudar a ser feliz novamente?

Clara, ainda com cara de choro, hesita um minuto, mas responde.

— Sim, delegada.

— Muito bem, Clara — Responde Antônia com um sorriso sincero nos lábios — Para terminarmos, preciso apenas que você diga seu nome, idade, local onde mora e porque está aqui, em alto e bom som, para que possamos registrar.

— Meu nome é Clara Nunes Ferreira, nascida José Nunes Ferreira, transexual, 29 anos, moradora do bairro de Cascadura, Rio de Janeiro e estou aqui porque meu companheiro, Marcos Novais, me agride.

— Obrigada, Clara. Parabéns pela coragem. Vou me ausentar um minuto para pegar os últimos papéis que você precisa assinar. Depois disso vou entrar com um pedido de mandado de segurança. Assim o Marcos não vai poder mais se aproximar de você. Você vai estar finalmente segura. Me espere apenas um minuto, ok?

Antônia sai da sala.

Clara fica sozinha.

Ela odeia este momento. Isto já aconteceu antes. Ela sabe o que vai acontecer. Ela sabe que não é certo. Mas ela não consegue evitar. A atração é forte demais.

Menos de dois minutos depois que Antônia deixa a sala, Clara se levanta, passa pela porta e se dirige à saída da delegacia. Ela vai voltar para casa e para os braços de Marcos.

A violência doméstica é um mal que atinge milhares de pessoas em nosso país. Ajude a salvar vidas. Converse com mulheres ou homens que você suspeite que esteja sofrendo violência, indique o telefone 180 para atendimento contra violência e estenda a mão sempre que possível.

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