Natureza (S02 E03)

Laion Azeredo Silva
FICÇÕES POR MINUTO
6 min readDec 9, 2015

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— La vai ele. Vamos pegá-lo — Um grito ecoa na noite da floresta.

O barulho de mato farfalhando por causa da perseguição agita toda a fauna em volta.

Três homens são os responsáveis por toda esta agitação.

Mais atrás na perseguição vão Júlio, agente da Polícia Federal novato e em sua primeira operação na floresta fechada, e Christian, agente do IBAMA[1] com mais de 20 anos de atuação na investigação, busca e captura de traficantes internacionais de animais silvestres.

O homem que corre na frente é conhecido como Matteo. Acredita-se que seja da Córsega[2], mas não se tem certeza.

Há mais de 10 anos Matteo é procurado no mundo inteiro por atender a milionários excêntricos que querem animais raros empalhados em suas salas de jantar chiques.

É um negócio arriscado, Matteo bem o sabe depois de vários ataques de animais e humanos. Contudo muito lucrativo.

Uma Arara-Azul Grande brasileira — ou como os biólogos a chamam, Anodorhynchus hyacinthinus — empalhada vale mais de 500 mil dólares na Europa e na Ásia. Se estiver viva, multiplique isso por seis.

Uma grana nada ruim para um ex menino pobre que perambulava pelas ruas de Ajaccio[3].

— Pare de correr e renda-se. Nós vamos pegá-lo — Grita Júlio.

Matteo responde com um tiro. Os homens que vem atrás tentam se proteger. Júlio responde à gentileza com outro tiro.

Estamos perto. Perto como nunca estivemos. Precisamos pegá-lo”, pensa Christian.

A perseguição se iniciou em um acampamento de traficantes estourado durante uma operação do IBAMA, com suporte da Polícia Federal.

Vários traficantes foram presos, mas Matteo, bandido experiente, conseguiu se embrenhar na floresta e iniciar uma fuga. Christian, agente experiente, pegou Júlio pelo braço e iniciaram a perseguição.

A mata está escura e úmida. O risco de tropeçarem em algo e arrebentarem a cabeça em uma pedra é alto. E é justamente o que ocorre.

Matteo, quando vira para atirar, se descuida e tropeça em uma raiz de árvore protuberante. Ele realiza um breve voo por sobre a mata e cai, batendo com a fronte em uma pedra, perdendo a consciência logo depois.

***

Horas depois — ou poderiam ser dias, ele não sabe — Matteo acorda com um banho de água fria.

Acorda assustado. Não sabe onde está. Não sabe quem são as pessoas em volta dele.

Júlio é o primeiro a falar.

— Acorda, Matteo. Eu sei que você está bem e que fala português. Nós te conhecemos bem.

Matteo, já entendendo melhor a situação em que se encontra, finge desentendimento.

Uma bofetada forte no lado direito do seu rosto dada por Christian faz ele parar com o fingimento.

Vai parar com essa palhaçada ou não, seu lixo? — Christian é enfático.

— O que querem de mim? — Matteo pergunta em tom arrogante, como se estivesse prestando um favor aos agentes.

Outra bofetada encontra a sua face. A mão que bate desta vez é a de Júlio.

— Fale direito conosco. Não gosto desse tom — Júlio diz.

— Sim, senhor — Matteo abaixa o tom — Em que posso ajudar?

Simples. Queremos tudo. Lista de clientes, rotas, pedidos em aberto, parceiros que você utiliza, bases de apoio. Toda a sua operação. Se nos ajudar, podemos ver formas de negociar que você cumpra pena na Itália, onde sabemos que você tem família.

— Desculpem, senhores. Não faço acordos com policiais — Matteo declara firme.

***

A cabeça de Matteo pende para o lado. Ele não consegue sustenta-la. As agressões que sofreu durante a sessão de tortura levaram seu corpo ao limite.

Os policiais conseguiram que ele cooperasse, por assim dizer. Conseguiram todos os dados da operação do grupo de Matteo e a promessa de seu auxílio em operações futuras.

Caso ele tente enganá-los, será extraditado para a França, país que não é reconhecido por tratar especialmente bem seus presos, muito menos se são traficantes de animais. A França é o que Matteo mais teme.

Obrigado, Matteo. Você nos ajudou bastante. Agora pode descansar, seu rato — Júlio diz.

Ele e Christian começam a caminhar para fora do galpão onde ocorreu o interrogatório.

Mas antes de saírem, Christian hesita. Ele se vira e olha para Matteo. Caminha lentamente em direção ao traficante, se agacha diante dele e lhe dá um tapa na cara para que acorde.

— Ei, Matteo. Acorda, rapaz.

Matteo desperta assustado.

— Sim, senhor.

— Me responde uma última pergunta?

— Eu já falei tudo, senhor. Juro!

Não é sobre sua operação. É sobre você.

Matteo olha nos olhos do agente do IBAMA sem compreender muito aquilo.

Christian continua.

— Por que você faz isso? Por que você caça animais indefesos, os prende, os maltrata, os priva de alimentos, os obriga a fazer coisas que não querem e os expõe onde não deveriam estar expostos, apenas para o bel prazer de alguns poucos ricaços? É pelo dinheiro apenas? Você não tem consciência do mal que faz? Da violência que gera?

Matteo pensa durante um minuto, encarando firmemente Christian. Ele sente como se os olhos de Matteo, escuros como a noite, perfurassem seu crânio.

O corso finalmente responde.

— Quando eu era pequeno, meu pai costumava caçar pássaros canoros silvestres e prender em gaiolas, para que cantassem e nos divertissem.

O animal perdia sua liberdade, mas em troca ganhava segurança contra predadores, água e comida.

“O pássaro trabalhava muito, era uma vida dura. Mas depois de algum tempo ele se acostumava e aceitava seu destino.

“Tentei livrar um certa vez. Achamos ele morto dois dias depois nas imediações da casa. Ele não sabia mais viver sem a estrutura que criamos para ele.

“Quando cresci e comecei a viajar o mundo, percebi uma coisa interessante. As pessoas nas grandes cidades são como os pássaros do meu pai.

“São capturadas, ao nascer, em um sistema opressor que as faz trabalhar incansavelmente apenas por água e comida — ou coisas idiotas como eletrônicos, carros e viagens.

Perdem totalmente sua liberdade e buscam sempre agradar a pessoas que não lhes interessam, para que possam ganhar mais água e comida.

“Perdem tudo em troca de uma pseudoproteção contra inimigos na maior parte dos casos imaginários.

“Abrem mão de sua liberdade, de ação e pensamento, para se sentirem seguros, quando na verdade já estão mortos, pelo menos por dentro.

“Os poucos que tentam sair disso, acabam descobrindo que não sabem mais viver livres. Que perderam a sua natureza e, não tarda, tentam voltar para a gaiola.

“Veja o que está acontecendo na França após os ataques do ISIS de 13 de Novembro. Os abusos de poder do Estado em prol da ‘segurança nacional’.

“Morei um tempo no Rio de Janeiro durante o ano de 2013. Vi o Estado criando inimigos para que pudessem endurecer as ações contra opositores em manifestações populares. Os inimigos não existiam afinal, mas os abusos permaneceram.

“Você, agente, vive neste mundo, nesta grande gaiola, e vem me criticar? Eu sou violento? Sou. Todos somos. É nossa natureza. Mas pelo menos agrido outras espécies. O Estado que você representa agride a própria espécie. Mata a própria espécie. Tira a liberdade da própria espécie.

“Retorno sua pergunta: Você não tem consciência do mal que faz?

Christian permanece olhando fundo nos olhos de Matteo sem ação.

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[1] O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis — IBAMA — é uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). É o órgão executivo responsável pela execução da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) e desenvolve diversas atividades para a preservação e conservação do patrimônio natural, exercendo o controle e a fiscalização sobre o uso dos recursos naturais (água, flora, fauna, solo, etc).

[2] A Córsega é a quarta maior ilha do Mar Mediterrâneo por extensão (depois da Sicília, Sardenha e Chipre). Localiza-se a oeste da Itália, na zona geográfica italiana, constituindo uma região administrativa da França.

[3] Capital da Córsega.

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