Cena de O Grande Ditador, que aparece na abertura da novela.

A mocinha, o vilão e o moralismo

Renata Andrade
Ficção brasileira

--

Sou uma noveleira incurável, mas pertenço àquele grupo que diz: “não se faz mais novela como antigamente”. Acho até que há algumas exceções, mas não vou mentir: as únicas que atualmente acompanho são as reprisadas pelo Canal Viva. Uma delas é “O Dono do Mundo”, novela de Gilberto Braga originalmente exibida em 1991.

Eu tinha 10 anos quando ela foi ao ar pela primeira vez e lembro bem de ter entrado numa loja com a seguinte missão: a de decidir se levaria pra casa o LP de “Carrossel”, a novelinha sensação do SBT – e que tirou o sono da Globo naquele ano –, ou o de “O Dono do Mundo”. Eu, que era uma criança bem esquisita, optei pelo segundo. Voltei para casa com o coração, em partes, despedaçado por ter traído Maria Joaquina, Cirilo, professora Helena e cia, mas feliz também porque eu amava o Rap da Rapa que tinha na trilha da concorrente global.

Disco de Carrossel, o fenômeno mexicano.

Pra ser franca, acabei voltando satisfeita com a minha escolha. Eu olhava pra Glória Pires na capa, sorria pra ela e ela devolvia um sorriso de Monalisa. Ouvi aquele disco à exaustão e, com o tempo, descobri que ele era muito mais do que somente o rap do Ademir Lemos. A trilha sonora é fantástica!

Capa da trilha sonora nacional de O Dono do Mundo.

A novelinha mexicana terminava às 20h30, então dava tempo de mudar correndo de canal e pegar boa parte da da Globo, que era exibida numa época em que as novelas das oito começavam realmente às 20h. Nem dava pra zapear nos intervalos porque, em 1991, televisão com controle remoto era um luxo que eu, uma criança que só podia comprar um LP por vez, fui desfrutar somente alguns anos depois.

Nem sei como meus pais deixavam que eu e minha irmã (ela é dois anos mais nova) assistíssemos a “O Dono do Mundo”… Definitivamente, aquilo não era coisa de criança. Há poucos dias, porém, descobri que eu e ela não éramos as únicas que, em 1991, ficavam de olho na novela. Meus pais não estavam sozinhos nessa maluquice. Bom, a verdade é que eu assistia sem entender muita coisa, provavelmente dormia muito antes do final de cada capítulo, mas lembro bem de algumas cenas, de praticamente todas as personagens e, claro, do Rap da Rapa, que sei de cor até hoje.

Malu Mader e Antônio Fagundes em O Dono do Mundo.

Segunda tela

Adoro assistir TV acompanhando hashtag no Twitter e participando de grupos no Facebook. No Twitter, especificamente, faço isso com final de vôlei, Copa do Mundo, concurso de miss, final de reality show e, claro, com novela. Além disso, sou saudosista e algumas cenas das tramas antigas me remetem a algum lugar do passado. É cafona dizer isso, eu sei, mas o que posso fazer se é verdade?

Muitos detalhes e curiosidades da novela eu só fui tomar conhecimento anos depois. A rejeição que a mocinha Márcia (Malu Mader) sofreu, que deve ter deixado o careca Gilberto Braga de cabelo em pé, é uma delas. A dor de cabeça que “Carrossel” representou tanto para a novela quanto para o Jornal Nacional é outra. Gosto de saber o que as pessoas pensam, gosto de ler as impressões de quem já era adulto naquela época e, sobretudo, gosto de fazer das redes sociais uma grande sala de estar com todo mundo reunido diante da televisão. E assim eu fico: com um olho nas redes sociais e outro na novela. Isso me diverte.

A trama

Márcia é uma moça simplória, virgem e noiva há 4 anos de Walter (Tadeu Aguiar), funcionário da clínica do Dr. Felipe Barreto, um cirurgião plástico bem sucedido, casado e mulherengo convicto vivido pelo sempre incrível Antônio Fagundes.

Felipe Barreto fica louco por Márcia desde a primeira vez que a vê. Fica ainda mais ao saber de sua virgindade. Ele deseja tanto aquela mulher, que jura pra si mesmo que dormirá com ela antes do marido. Faz disso uma meta e arma um plano engenhoso e muito ardiloso para conseguir o que tanto quer. O marido de Stella (Glória Pires) é um homem tão sujo e tão covarde, que é capaz até de apostar uma caixa de champanhe com Júlio (Daniel Dantas) para mostrar que conseguirá levar Márcia para a cama antes de Walter.

O cirurgião convence o casal a passar a lua de mel no Canadá, lugar para onde ele já iria. Dá a viagem de presente de casamento, cria uma situação pra manter o noivo afastado, seduz a mocinha e a faz acreditar que ele está apaixonado por ela. Márcia, por sua vez, tenta resistir e, chorando, liga para o marido para convencê-lo a voltar ao chalé onde estavam hospedados. Mas Walter, obcecado com a ideia de consertar, a todo custo, o computador com a apresentação de uma palestra do patrão (Felipe cria um problema de senha para mantê-lo bem longe deles), ignora o pedido da mulher e a deixa mais uma noite sozinha. Carente e pouco segura dos sentimentos que nutre pelo marido, ela acaba caindo no papo de Felipe. Márcia se entrega àquele homem envolvente e, tola que é, se apaixona. Aposta ganha.

Márcia (Malu Mader), Felipe Barreto (Antônio Fagundes) e Walter (Tadeu Aguiar).

A novela começa assim e nos 4 primeiros capítulos, isso já é apresentado ao público. Muitas águas ainda vão rolar e eu pouco sei sobre o que está por vir. Em 1991, o público puniu Márcia pelo seu erro e pelo mal que causou ao então marido. Felipe Barreto, embora fosse casado, não foi tão criticado. Já ela foi apontada como a principal culpada por tudo o que aconteceu. A conduta da personagem foi muito questionada enquanto a do vilão, pelo menos nas primeiras cenas, se manteve inabalada, preservada. Márcia teve a infelicidade de verdadeiramente se apaixonar por um homem que fez o que fez apenas para se autoafirmar e porque havia uma aposta em jogo.

A repercussão em 2014

23 anos se passaram. A mulher recém-casada que cedeu aos encantos daquele homem sedutor, volta a ser, aos poucos, condenada. Sim, ela tem a sua parcela de culpa, afinal de contas, ingênua ou não, traiu o homem com quem tinha acabado de casar. Além disso, topou oficializar a união com Walter por puro comodismo. Ela não o amava. Descobriu o amor com Felipe e isso a deslumbrou. Todavia, Márcia é também vítima desse plano nojento e friamente pensado. 23 anos depois, a história se repete. Para parte do público, Felipe Barreto é apenas um coadjuvante em meio à polêmica provocada principalmente por ela.

No grupo do Facebook em que participo, há essa discussão. As opiniões estão bem divididas, por enquanto. Há quem condene radicalmente Felipe Barreto e entenda que, mesmo errada, Márcia é humana, carente e acabou cedendo porque se apaixonou, sem saber, por um homem sem caráter. Por outro lado, há quem atire pedras apenas nela e, com discursos muito machistas, minimize a culpa do vilão. Pior: há quem afirme que a culpa é exclusivamente da mulher.

“Para menina ingênua, é muito saidinha.”

“Não tem justificativa. Márcia ali não teve caráter.”

“Ai, promessas de amor de um cara que ela conheceu ontem, recém-casada em lua de mel? (…) e o Valter? Como ficaria diante da sociedade?”

“Na minha opinião, ela ultrapassou todos os limites do caráter”.

Perguntei para uma dessas pessoas: “e se fosse o contrário? E se a Stella, mulher de Felipe Barreto, seduzisse o recém-casado Walter e este, atraído por ela, fosse ao seu encontro? A culpa seria dele? Dela? De ambos?” Obviamente, fiquei sem resposta. O silêncio, porém, significou muita coisa. Não é muito difícil imaginar qual seria essa resposta. Curiosamente, no Twitter, Márcia é vista apenas como burra, ingênua demais, boba demais. Por lá, os discursos moralistas ainda não chegaram.

Conservadorismo e moralismo brasileiros

No Brasil, o conservadorismo e o moralismo, muitas vezes, ajudam a punir a vítima (que, em muitos casos, é uma mulher) e a aliviar a barra do agressor/culpado. Nem é preciso assistir novela para saber disso. Basta ver os casos de estupro noticiados, em que se imputa a culpa à vítima. É comum vermos gente defendendo o argumento de que “se estava vestida de tal jeito, com certeza a mulher pediu para ser violentada”. Ou então: “homem é homem! Age de acordo com os seus instintos”. Por aqui, lamentavelmente, não importam as circunstâncias: a culpa é e sempre será da mulher.

“O Dono do Mundo” é apenas uma obra de ficção, mas os debates gerados a partir dela são assustadoramente reais. Querendo ou não, eles escancaram a mentalidade tacanha de muita gente. 23 anos depois, muita coisa mudou no País, mas muita coisa também continuou igual. Que pena.

--

--

Renata Andrade
Ficção brasileira

Autoproclamada fina flor de Oswaldo Cruz, Madureira e adjacências. Autora roteirista da TV Globo e cronista desde sempre.