Meu Pedacinho de Chão resgata a criatividade das novelas brasileiras

Trama das seis chega ao fim, e deixará saudades — e um futuro muito mais interessante para a televisão por aqui

Bruno Viterbo
Ficção brasileira

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Meu Pedacinho de Chão deixará marcas profundas na forma de se fazer teledramaturgia no Brasil. Um país tradicionalmente noveleiro — que engatinha na produção seriada — viu um produto extremamente bem acabado, criativo e ousado, revigorando o gênero. Seus quase 100 precisos e preciosos capítulos foram o suficiente para apontar um novo jeito de produção de novelas.

Uma colcha de retalhos pode definir a construção do produto. Como que num liquidificador, o diretor Luiz Fernando Carvalho usou e abusou de boas referências, tanto do cinema como de suas próprias obras anteriores. Vimos toques do cineasta Tim Burton, do cinema e dos mangás japoneses (a professora Juliana, com seus grandes olhos azuis, é um mangá humano), das histórias em quadrinhos (tela dividida em blocos de vários tamanhos), western-spaghetti (os “duelos” de Zelão), Mazzaropi (o jeito caipira e matuto de alguns personagens), operetas (em três ocasiões, a novela tornou-se um musical, com todos os personagens cantando uma só música), do dramaturgo Bertold Brecht (ao mostrar as residências em seu todo, como uma casa de bonecas), o pintor Van Gogh (na construção do colorido dos cenários, feito a cada pedaço), Hoje é Dia de Maria e Capitu (do próprio Carvalho, através da produção artesanal de figurinos e cenários e na prosódia), técnicas de animação e stop-motion (a cidade em miniatura, o trem chegando na cidade), e agora, na reta final, até Game of Thrones (as vestes negras de Zelão)… Tudo isso sem exageros. Tudo isso muito bem dosado em cenários, figurinos e atuações. O site Televisual fez um dossiê completo dos figurinos e cenários da trama. Vale a leitura: Cenários e figurinos de Meu Pedacinho de Chão.

O remake da trama da década de 1970 pode ser considerada uma nova obra. O conteúdo — escrito pelo autor Benedito Ruy Barbosa nas duas ocasiões — manteve-se clássico. Mas a forma extrapolou as barreiras conservadoras da TV. Aliás, o autor virou “personagem”: o galinho Bené, sempre a postos e vigiando toda a vila, é uma singela homenagem ao autor.

A prosódia das personagens é caricatural propositalmente. O sotaque carregadíssimo do interior deu graça à trama. Os cenários e figurinos refletiam a personalidade de cada figura que nos foi apresentada. Com isso, tivemos atuações incríveis, marcantes, em um ambiente lúdico, colorido, até mesmo lisérgico. A mão pesada do diretor na trama refletiu em todo o conjunto.

Na trama, clássicos da dramaturgia: romances e disputas políticas permearam a história. Apesar da falta de um vilão — pelo menos na maior parte da novela —, Meu Pedacinho de Chão foi exemplar ao mostrar temas sérios de forma lúdica, até mesmo ingênua (a imagem distorcida, com focos em diferentes posições na tela, é o reflexo da luneta que Serelepe tem em mãos: é aquela vila e seu povo na visão de uma criança). Originalmente uma novela educativa — onde o tema da educação e da reforma agrária estavam em debate —, em 2014 vários assuntos que até hoje estão em pauta foram abordados.

A educação se fez presente através de alguns personagens. A professora Juliana (Bruna Linzmeyer) lutou para que sua escola fosse erguida na Vila de Santa Fé. Lutou e alfabetizou dois personagens icônicos da trama: o antiherói Zelão (do excelente Irandhir Santos), um bronco apaixonado, e Serelepe (Tomás Sampaio), o garoto esperto e levado sem família. Em uma ocasião, já sabendo “ler e escrevinhar”, Serelepe diz: “hoje em dia ninguém mais me xinga. Pegaram respeito!”. Na trama, Serelepe foi o “professorzinho” de Zelão, que precisava aprender para escrever cartas de amor à sua amada, Juliana. A pequena Pituca (Geytsa Sampaio) também foi alfabetizada pela professora, e formou uma dupla simplesmente adorável com Serelepe.

A reforma agrária também foi citada através dos personagens Pedro Falcão (uma desconstrução total da figura de galã de Rodrigo Lombardi), Coronel Epaminondas (Osmar Prado, sempre convincente) e os moradores da fazenda do coronel. Pedro construiu a Vila, e distribuiu terrenos para outros moradores e comerciantes, como Giácomo (mais um italiano na galeria de Antonio Fagundes, que entrou de cabeça no espírito de “brinquedo” do personagem). Na fazenda do coronel, os moradores teriam que sair de suas casas se desistissem de trabalhar, mesmo que morassem por lá há anos. Um tema sério, mas tratado em algumas ocasiões.

Outro item foi a saúde, através de Renato (Bruno Fagundes), médico que chega à Vila de Santa Fé para construir um posto médico. O doutor enfrentou a resistência de alguns, elucidando o pensamento retrógado de alguns governantes — coisa que ainda persiste hoje.

Na política, as disputas em torno do comando da cidade das Antas — nome no mínimo sugestivo — permaneceram durante toda a trama. Suspeitas de corrupção do prefeito (Ricardo Blat), candidaturas de gente nova e honesta (Ferdinando) e de gente velha e “macaco-velho” (Epaminondas) seguiram até o fim. Foram várias as vezes as discussões sobre como falar em público, como fazer campanha, apreender o título de eleitor até o dia da votação… Coisas que, até hoje, acontecem — pensando que Meu Pedacinho de Chão se passe em uma época distante (mesmo que o diretor afirme que é uma trama atemporal).

No entanto, o que mais me chamou a atenção na novela foi o machismo. O interior do Brasil ainda guarda raízes que não vemos nas grandes metrópoles. A personagem Gina (Paula Barbosa, excelente) foi a representante — digo mais: foi a grande personagem da novela. Tida como “mulher-homem” por seus hábitos masculinos — ajudava o pai Pedro Falcão na lavoura — e seus trajes rústicos, Gina foi uma versão bem brasileira da animação Valente, da Disney. De criação oprimida, a mulher foi julgada e, em vários momentos, obrigada a amar, a “arranjar marido” e se “portar como mulher”. A desculpa é que Gina não tinha descoberto o “amor”. Antes, passou por uma metamorfose em uma das melhores cenas da novela. O “sair do casulo”, como que num sonho, foi uma cena maravilhosa. Artesanal, impactante. As fotos acima são um pouco da cena que acredito ser a mais marcante da trama.

Gina permaneceu bronca por toda a trama, até que encontrou o amor nos braços de Ferdinando (Jhonny Massaro). Uma fábula clássica, mas que suscitou uma discussão interessantíssima sobre os valores da mulher na sociedade. Como o diretor disse, a novela foi uma fábula atemporal, caminhando por assuntos para construir uma estética diferente, reunindo impressões do passado, presente e futuro.

Outra grande mulher de Meu Pedacinho de Chão foi Catarina, no melhor trabalho de Juliana Paes na TV. O figurino exuberante e apertado foi a representação de uma personagem que tinha um vulcão dentro de si, mas era aprisionada pelo marido, Epaminondas. Catarina pouco saía de casa. O trabalho gestual — onde Catarina tremia as mãos — é um primor, externando toda a tensão que Catarina carregava consigo. No início da novela, foi deixado implícito — ou estou vendo coisas demais? — um suposto interesse da personagem por Ferdinando, seu enteado. No entanto, o tema não foi adiante. Talvez, seria demais num universo tão colorido, mas ao mesmo tempo tão sério.

Na reta final, parece que o autor Benedito Ruy Barbosa entrou na viagem lúdica proposta pelo diretor — a parceria dos dois é de longa data, e a confiança do trabalho do outro mostra total sintonia da equipe. Nevou na Vila de Santa Fé! Aparentemente concebida como uma cidade interiorana, Carvalho extrapolou os limites convencionais e deu mais mostras do universo lúdico da trama. Ou então, foi mais uma mostra da exacerbação de todos os sentimentos do lugar: coisas simples viram rios de lágrimas, a alegria é contagiante e, o frio (e a falta de amor) faz nevar. Um exagero maravilhoso.

O colorido deu lugar ao branco. A fotografia ficou azulada, esverdeada. Tudo pelo endurecimento do coração de Zelão, abandonado pela amada Juliana (disse ele: “O mundo ficou frio, igual ao meu coração”). Zelão tomou sua capa preta — uma clara referência às vestes de Game of Trhones. Depois, ao redescobrir o amor, a Vila de Santa Fé foi tomada por mais cores, mais vida. E mais um “clipe” musical para nossos olhos e ouvidos, desta vez com “Beijinho Doce”.

Meu Pedacinho de Chão foi um primor. É a prova de que é possível fazer novelas de outro jeito, com menos de 150 longos e intermináveis capítulos, com menos personagens e menos locações — e mais criatividade. O mérito da trama não vem de sua história, tão clássica e passível de várias interpretações, assim como Sheakspeare. O mérito vem do universo proposto pelo diretor Luiz Fernando Carvalho que, tão cheio de referências, mostrou aos telespectadores — e aos críticos — que sabe usá-las como nenhum outro diretor de TV no Brasil. Como que um Quentin Tarantino (diretor de Kill Bill, Bastardos Inglórios, Django Livre), Carvalho mistura suas ótimas referências e, ainda assim, faz produtos únicos. Leia a (ótima) entrevista do diretor, fazendo um balanço da novela: “É preciso renovar mais e copiar menos”, diz diretor de “Meu Pedacinho”, no UOL.

A TV brasileira precisa, cada vez mais, de diretores que apostam no ousado e no diferente. Meu Pedacinho de Chão será considerada um marco, sem dúvidas. Luiz Fernando Carvalho continuará sendo o diretor “fora da casinha” da Rede Globo, e isso é sensacional.

Os versos da música de Mazzaropi refletem as marcas que Meu Pedacinho de Chão deixarão em quem acompanhou a trama:

A dor da saudade
Quem é que não tem?
Olhando o passado
Quem é que não sente
Saudade de alguém?

Falei de Meu Pedacinho de Chão aqui “Meu Pedacinho de Chão” é a disposição da Globo em mexer com seu maior patrimônio e aqui Um pedaço de boa novela.

P.S.: É algo a ser considerado: o horário das 18h é o mais estável em termos artísticos na emissora. Se o horário das 19h anda um pouco perdido, e o das 21h já não é obrigatoriamente o destaque da TV, a faixa vem de uma sequência de boas novelas, a começar pela também ousada Cordel Encantado (2011). Em seguida, vieram (as nem tão interessantes, mas bem produzidas) A Vida da Gente e Amor Eterno Amor (2012). Daí em diante, só coisa boa: Lado a Lado (vencedora do Emmy International de melhor novela), Flor do Caribe (2013), Joia Rara e, agora, Meu Pedacinho de Chão.

A sucessora Boogie Oogie tem tudo para entrar nesse seleto grupo: uma boa história nos anos 1970 (o autor Rui Vilhena promete reviravoltas a cada 50 capítulos, já que será uma novela “comum”, longa), um elenco de peso (Giulia Gam, Marco Ricca, Alessandra Negrini, Deborah Secco), dois dos melhores diretores em atividade (Ricardo Waddington e Gustavo Fernandez, que esteve recentemente comandando a ótima Além do Horizonte) e uma trilha sonora que marcou época. A ver.

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Bruno Viterbo
Ficção brasileira

Redator, às vezes fotógrafo (como na foto ao lado) e às vezes jornalista. Mas sempre encontrando tempo para assistir alguma coisa (boa) na TV.