Um pedaço de boa novela

“Meu Pedacinho de Chão” é uma daquelas pequenas vitórias que deixarão sementes para o futuro

Bruno Viterbo
Ficção brasileira

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Passados um terço, pouco mais de 30 capítulos — “Meu Pedacinho de Chão” terá por volta de 100 —, a trama das seis da Rede Globo mostrou que, talvez pela primeira vez, não é uma novela de autor. Tal qual o cinema, a novela é totalmente focada na direção de Luiz Fernando Carvalho. Não desmerecendo o trabalho do autor Benedito Ruy Barbosa, que retornou às novelas. Mas Carvalho imprime seu estilo de maneira intensa, como poucos diretores de núcleo da nossa TV.

Estética visual de “Meu Pedacinho de Chão” remete à “Hoje é Dia de Maria” e “Capitu”, outras obras de Luiz Fernando Carvalho

“Meu Pedacinho de Chão” é o triunfo da boa produção, da aposta, da ousadia, do diferente. Não chega a ser inovadora — Luiz Fernando Carvalho continua com seus devaneios estéticos vistos em “Hoje é Dia de Maria” e “Capitu”, e o texto de Benedito Ruy Barbosa é clássico, tão clássico quanto sua obra na TV. O ritmo é tranquilo — como qualquer cidade do interior -, sem sobressaltos ou grandes viradas. Aqui vale a estética, o figurino, os cenários, a interpretação e os enquadramentos de câmera.

A novela seria 8 ou 80, diziam alguns. Não foi 8 nem 80. Conseguiu manter boa parte de um público desacostumado com esse tipo de coisa, visto apenas em horários mais tardios, em séries e minisséries. Não seria um sucesso estrondoso, nem ia elevar os índices do horário. “Meu Pedacinho de Chão” está apenas entre 1 e 2 pontos abaixo de “Joia Rara”, novela anterior. Se não tivesse dado certo, estaria perdendo até pra Record, de tão diferente e ousada. Conseguiram manter boa parte do público.

Destaco as personagens Gina (Paula Barbosa, ao lado) e Catarina (Juliana Paes, abaixo). Gina tem uma trajetória interessante, mas totalmente machista: querem a todo custo mudá-la, deixando-a “mais feminina”, pois assim será “melhor”. Ainda que atemporal, a novela reflete uma sociedade que ainda persiste no Brasil. Já a Catarina de Juliana Paes é um caso à parte. Esse é o melhor trabalho de Juliana, de longe. Há um cuidadoso trabalho de interpretação e gestos. As mãos trêmulas da personagem refletem toda uma personalidade confusa, exaltada, bem humorada, e chamam a atenção.

Juliana Paes no papel mais importante de sua carreira: Catarina tem um cuidadoso trabalho gestual, que vai além da interpretação e vozes marcadas

O machismo também é visto na trama de Catarina. Ela é posse do marido, Epaminondas (Osmar Prado) e há um forte componente machista, como quando Catarina decidiu ir embora de casa — à revelia do marido — e teve os pneus do carro furado. Ferdinando, filho de Epaminondas, defendeu o pai — ainda que brigados —dizendo que esta poderia ter sido uma declaração de amor. Sentimento de posse traduzido de maneira errônea, mas muito comum.

Outro destaque é o Zelão de Irandhir Santos. O anti-heroi, um capataz apaixonado, é apontado como um protagonista, apesar de não sê-lo oficialmente. Zelão é daqueles que pode até matar, mas guarda ternura e amor. Apaixonado pela professora Juliana (Bruna Linzmeyer), Zelão tem em si uma carga emocional grande, fazendo com que o telespectador mergulhe na história. A torcida pelo casal é alta, já que Juliana tem outros dois envolvimentos: o ambíguo Ferdinando (Jhonny Massaro) e Renato (Bruno Fagundes).

Enquanto Ferdinando parece ser um personagem ambíguo, que ama Juliana, mas ainda parece preso às origens do pai, o vilão Epaminondas, Zelão é explicitamente ambíguo. Pedro Falcão, personagem de Rodrigo Lombardi, encontrou o tom e o deixou menos imbecil, menos bobo.

As crianças Serelepe (Tomás Sampaio) e Pituca (Geytsa Garcia) são um caso à parte. O encanto e sintonia dos dois dão graça à novela. Serelepe é o retrato de um Brasil analfabeto, mas que deseja ter uma vida melhor. Aliás, novela, por definição, não tem obrigação de prestar nenhum tipo de serviço. Mas “Meu Pedacinho de Chão” se vale da educação e reforma agrária de maneira lírica, sem que incomode quem assiste. A Vila de Santa Fé é um microcosmo do nosso país interior, com suas complexidades (falta de educação e distribuição de terras) e seus governantes que impedem o progresso.

Os personagens parecem saídos de um desenho animado. Zelão — o único da trama que tem figurino fixo — é a maior representação disso. O estilo caubói, com extremidades largas (veja as ombreiras e a calça) e a cintura fina esticam a silhueta do personagem. Juliana parece um anime japonês, com direito até aos grandes olhos azuis. Gina é a representação física da animação “Valente”, da Disney.

A trilha sonora instrumental é marcante, como em quase todas as obras do diretor musical Tim Rescala. A trilha sonora original foi pouco mostrada, com uma única canção do grupo DeVotchKa.

Cinemascope: técnica remete aos antigos filmes western. Não à toa, o recurso é usado apenas em cenas “tensas”

Desfoques em posições aleatórias, priorizando um elemento/personagem em foco são constantes. A “transformação” da tela em um cinemascope (foto em destaque, acima, com as barras pretas na tela) pode causar estranheza. Luiz Fernando Carvalho não tem vergonha de usar o recurso, principalmente quando há embates — emocionais ou tensos — envolvendo Zelão. O clima é de faroeste, bem como a trilha sonora usada nessas cenas. Outro recurso, mais ousado, é mostrar toda a casa (foto ao lado), com todos os cômodos na tela. É como se fosse uma casa de boneca, mostrando os personagens se deslocando em algumas cenas.

“Meu Pedacinho de Chão” tem uma narrativa visual que acompanha a novela. A movimentação extremamente marcada dos atores, com posicionamentos, gestos e vozes é o elemento que faz com que o texto fique mais intenso, apesar de simples.

A novela aponta o futuro da teledramaturgia com sua duração menor. A fuga de espectadores do gênero faz com que toda uma indústria se adapte aos novos tempos. Experiências como essa já são vistas na Globo no horário das 23h, com novelas “especiais” ou até mesmo na Record, com “Dona Xepa”. É um caminho sem volta. Um caminho que pode assegurar mais uns anos de vida às novelas como conhecemos.

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Bruno Viterbo
Ficção brasileira

Redator, às vezes fotógrafo (como na foto ao lado) e às vezes jornalista. Mas sempre encontrando tempo para assistir alguma coisa (boa) na TV.