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Nikolai e Nataniel

“As fotografias! Não é possível viver sem roubar…"

Duanne Ribeiro
20 min readNov 27, 2013

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O metal escurecido da caixa de correio estava coberto de neve. Nas frestas dos flocos, o sol, mais do que raro nessa época do ano, reluzia de um amarelo-ouro resplandecente e mínimo. Nikolai avistou, da janela de casa, o grande embrulho que o correio pusera ali; que seria? O homem cofiou a barba, vestiu o pesadíssimo capote preto e cinza, saiu. O silêncio se rompia apenas pelas suas pisadas no chão fofo de brancura. O barulhinho granulado, se quebrando e se movendo, infinitude de partículas. Bolivia — o pacote viera da Bolívia. O remetente era Nataniel Arzáns. Nunca ouvira falar do sujeito. Nem mesmo sabia bem onde fica a Bolívia. Rasgou o papel pardo, deixou cair os pedaços; e ao passo que eram arrastados pelo vento, ao passo que o próprio Nikolai era rodeado, nuançado por um sutil redemoinho branco, descobria do que se tratava: um livro. Uma brochura encadernada em espiral, o texto impresso em inglês. O título na primeira página dizia: Encounter with Salazar.

Dois anos vivendo em Oymyakon e até então não recebera qualquer carta. E aí, de súbito, o livro — enviado da Bolívia, sobre um ditador português da primeira metade do século XX, escrito na língua inglesa. De pé, as nuvens bloqueavam lerdas o sol, começou a ler:

Meu sofrimento me deixou triste e soturno.

Escritor que era, Nikolai contemplou essa primeira linha. Era este um bom modo de iniciar um romance? Isto é, se fosse de fato um romance. A primeira pessoa não o deixava decidir se estava lidando com ficção ou autobiografia. A referência ao tal “sofrimento” parecia boa de duas maneiras: por um lado, indicava ao leitor algo a descobrir — qual sofrimento? — e, por outro, sugeria que o sofrer pode ser sentido de várias formas. Nikolai não se sentia triste ou soturno, mas possuia dentro de si um sofrimento curtido, familiar e apaziguado.

O estudo acadêmico e a intensa, frenética atividade política, no entanto, rapidamente me seduziam de volta à vida. Meu engajamento na Mocidade Portuguesa, tão firme que fora considerado estranho por alguns familiares, permanecia minha principal preocupação cotidiana. Ao mesmo tempo, eu mantinha duas pesquisas: a primeira, sobre Charles Maurras, uma referência importante nesse novo estado que Portugal se tornava; a segunda, sobre o lince-ibérico, um trabalho diletante, estimulado pelo meu interesse em biologia e pelas próprias características desse animal. Sua elegância, recheada de agressividade potencial, sua beleza castanha-amarela e camuflante, pintinhas negras agéis disfarçadas nos maquis — tudo isso me fascinava, talvez porque me fornecesse um símbolo de todos os aspectos que eu desejava agregar à minha personalidade.

É certamente um bom segundo parágrafo, pensou Nikolai. O contraste entre empenhos tão díspares — a política, a biologia — em uma mesma personagem lhe davam atrativo. Quais os pontos de contato de uma a outra? Todas as contradições de uma pessoa se harmonizam ao redor de uma ideia fundamental que as rege dialeticamente, ou pelo menos isso é algo a que o leitor pode se agarrar, e ele irá adiante na história para reestabelecer a simplicidade. Além disso, por detrás da descrição do felino, vemos as sugestões da primeira frase serem desenvolvidas: o narrador anseia por força e aparência cujas expressões sejam precisas, na medida do inimigo e da situação. Ainda não construiu para si essa potência, o que pode ser um dos motivos para o seu sofrimento soturno e triste. Demos um passo recalcitrante numa direção, ponderou Nikolai, e divisamos na distância outros locais a visitar.

Ele fecha a brochura, observa a capa. Por que esse homem me enviou isso? Bolívia…

*

Talvez ele tenha lido algum dos meus livros. Um leitor, um admirador, que, também artista, decidira remeter a um criador de sua predileção, para que o avaliasse, sua tentativa literária. Neste caso, o sujeito provavelmente sabe russo; afinal, não houve traduções das suas obras, com exceção de Nós Comemos as Crianças Primeiro, que foi publicada em inglês no jornal londrino The Guardian. Talvez seja uma recomendação do meu editor, que achou similares os tipos de história que produzimos. Todavia as relações com a editora já estavam rarefeitas antes de sua partida de Moscou, e hoje, após dois anos de autoisolamento, se esgarçaram ao ponto da quase inexistência. Talvez um engano do correio! O escritor boliviano o enviara a um amigo seu, também morador da Sibéria, e, pelo acaso simplesmente, o livro extraviou-se e terminou à porta da casa de um desconhecido. Todas essas, hipóteses fracas, já que não há qualquer carta acompanhando o pacote, nem a um amigo, nem a um editor, muito menos a um ídolo romancista de além mar. Perto, o envelope vibrava contra o vento, preso em um montículo de neve. Nele, o nome era claro: Nikolai Kropotkin. Somente a cidade estava no campo de endereço. O que nosso escritor tinha em mãos era um pedaço de inexplicável. Ele pensou isso, nesses termos, e o considerou um acontecimento poético; sentiu-se quente por dentro, e foi percorrido por um pequeno estremecimento. Talvez seja um milagre…

As nuvens descobriram o sol; e a luz ofuscou os olhos de Nikolai — fato que ele não pode deixar de acompanhar com um sorriso… pois, logo agora… Acolheu o volume embaixo do braço e caminhou de volta à residência. A história da literatura está repleta desse gênero de inspirações providenciais, ele disse a si mesmo. José Saramago passando por uma banca de jornal vê de relance em uma publicação a frase “o evangelho de Jesus Cristo”; retorna no instante seguinte o olhar surpreendido: não há nada lá. Mas a faísca permanece, e ele redige seu livro. A desova desta sugestão é como que uma intervenção divina — e não é curioso o romancista português não tê-lo notado, não ter aberto enfim a porta ao mistério. Não, não é o caso de ter sido uma ação do Demônio, não, o que é demoníaco não é criativo. Por que eu penso em Saramago neste momento? Um português, outra vez uma conexão de símbolo…

Sentado em seu sofá, ele abre Encounter With Salazar sobre as pernas, com um interesse de nova estirpe, uma curiosidade revigorada. Avança pelas páginas lendo trechos dispersos, de maneira que a própria aleatoriedade lhe dá a sensação de ter sido levado a ler uma coisa em vez de outra; avança pelos parágrafos como quem consulta um oráculo:

Salazar permaneceu em mim. Eu nunca o esqueci. Arriscaria dizer que sinto saudade dele? Eu sinto. Sinto falta dele. Às vezes, eu o vejo nos meus sonhos. Pesadelos, na maior parte, cheios do horror da dependência e de mim mesmo como inferior — mas um horror que se mescla com o amor. Tal é a estranheza do coração humano. Ainda não sei como consegui abandoná-lo, abandonar seu projeto, sem nem mesmo olhar pra trás. Como se eu tivesse cortado artérias e veias a golpes de machado, e restasse meu coração só, no chão, mas a pulsar…

Contemplou o fragmento por alguns segundos, esperando que o segredo estalasse na mente. Sem conseguir arrancar das palavras uma revelação, virou as folhas, passou ao próximo:

No campo aberto, os melhores momentos para visitas são o nascer e o pôr do sol, que é quando a maioria dos animais emerge à vida. Eles se espreguiçam e saem das tocas, andando devagar para a beira d’água. Eles mostram as vestes. Eles cantam suas canções. Voltam-se uns aos outros e cumprem seus ritos. Não há quase recompensa em assistir a essa mecânica da natureza; mas o vigilante olhar e a orelha atenta conseguem abstrair daí o que é humano também.Eu gastei muitas horas sendo uma testemunha silenciosa de múltiplas formas de vida, e fui preenchido por uma graça ruidosa e estupefata quando lhe formulei sentido.

Não há quase nada vivo em Oymyakon, lembrou-se Nikolai. Ou ao menos a desolação fez-se a marca mais forte na sua percepção. Há caribus, vacas e nômades, claro. Crescem ainda as árvores, o fogo arde nas fogueiras indiferente à temperatura. Existem carros, caminhões e semáforos. Mas posso voltar quando quiser, gritou, sem voz, no oco da mente, vim pois o quis. Veio para fruir a angústia, a expiação de Dostoiévski — o confinamento intolerável, o frio insuportável — para parir da experiência um Memórias do Subsolo, um Crime e Castigo. Contudo, não pode escrever mais do que rascunhos de seu 101 Cartas ao Primeiro Ministro. Observar os animais, seria esse o conselho secreto? Descobrir, quem sabe, o ódio no olhar de um búfalo. Mas sabia haver ódio o suficiente dentro de si. Sabia haver bastante de animal estúpido no aquoso esbranquiçado do seu olho. A neve lá fora. As janelas foscas. O mundo inteiro, com que paciência eu o percorreria?

Certamente, eu o percorreria com meu intelecto e minha inspiração. No entanto, é preciso o substrato ao qual se apliquem tais ferramentas. Este livro. Esta cidade. Em qual posição eu preciso me colocar para que me torne o prisma de onde surja iridescente a criação nova? Eu estou desesperado. Eu não consigo escrever. Queria ser imenso. Queria que seu nome fosse aquele a recobrir em glória a extensão completa da Rússia — e além. Maior que Púschkin! E lembrou-se de um conto seu, antigo, inspirado em Jorge Luís Borges, no qual um jovem se tornava grandioso somente pela cópia cuidadosa das obras imortais. Palavra por palavra, ele vertia ao papel uma segunda vez Lolita, uma segunda vez O Capote, uma segunda vez Dom Casmurro, Madame Bovary, Ulisses, duas vezes sete Em Busca do Tempo Perdido. O jovem era o monumento definitivo da Arte. Mas eu eu! — contraí essa doença: o desejo de ser original! Parou. Havia lhe acontecido uma frase. Correu a anotá-la.

Escreveu: Eu contraí o desejo de ser original.

Ponderou. Escreveu: Eu contraí o desejo da originalidade.

Riscou “desejo”. Escreveu: Eu contraí a doença da originalidade.

Mas “contrair” supunha “doença”. Repensou. Escreveu: Contraí a originalidade.

Falta algo. Contraí em desalento a originalidade.

Parecia bom. Com o qualificativo. Deixou o papel em cima da escrivaninha. Observou seus rascunhos, a pilha de papéis e pastas transparentes, atrás do monte a fileira dos livros que a editora tinha aceito publicar. Sete Estórias, reunião de contos em que está “Pierre Menard, autor da Humanidade”, “Richard Parker, o tigre-pirata”, “O Colecionador de Piscinas”, “A Noite em que os Hóteis Estavam Vazios”, “A Ficção da Enciclopédia Britânica”, “Maneiras de Morrer” e “Max, o Felino”; Si Mesmo, poema em prosa tributário de Heidegger, em que o personagem transforma-se de homem a mulher aos demais gêneros, de criança a velho às demais idades, de homem a deus às demais substancializações — até que se desenha o ser em si mesmo; Nós Comemos as Crianças Primeiro, pequeno romance no qual um grupo se vê em situações críticas de sobrevivência, e decidem se alimentar dos infantes de imediato, pois assim não saberão do terrível egoísmo a que podem chegar. Três volumes, um poema ou outro publicados em revista. Abriu uma delas. Um post-it azul marcava a página:

sempre há uma caveira cinzenta ao meu lado
a me lembrar a tolice da humana ambição
eu zombo da caveira cinzenta ao meu lado
zombo da tolice da sua ambição:

não serei sua vítima.
você não crê na vida, mas
eu não creio na morte.

afasta-te!

Sorriu: estava bem escrito. Retornou à sala e voltou ao livro boliviano como se ele pudesse entregar de bandeja, outra vez, outra frase e outro gole de esperança na própria capacidade. Desta vez, daria a ele a atenção plena que é a benção esperada por todo escritor. Deitou-se, ajeitou a brochura no peito e a leu inteiramente, de maneira que era madrugada ao terminar. A lua lá fora era um olho gigantesco, a luz prateada refletida pela brancura fofa do piso, luz metálica sobre a ferrugem da caixa de correio onde uma história encalhou e foi resgatada.

***

Mas até parece que eu sou a mulher dessa relação, diz Nataniel, escorado na cama. Pança, calção listrado azul e cinza, crucifixo sobre o peito, levanta-se; desvia da pilha de livros no chão do apartamento, lá fora La Paz está ensolaradíssima, porém pra que isso me serve, vou ficar o dia inteiro trancado aqui dentro, quem sabe boto a cara pra fora pra ir até a praça um tanto só; ele enche a caneca de café até a borda e enfia um pedaço de pão na boca, senta na cadeira do computador ainda mastigando, desce a barra de rolagem checando quais e-mails se referem à trabalho e quais não. Yolanda tinha deixado o lugar quinze minutos antes, sem dizer nada, como sempre. Ela e sua pele tão vermelha, acobreada, contrastando com a roupa íntima azul-cobalto, ela, independente ao ponto da ausência quase permanente. Oh love — canta Cohen pelas caixas de som — I need you, I need you, I need you now e Nataniel se identifica, Nataniel é um romântico, porém Nataniel também tem contas, haja contas. Então ele se força a olhar a tela. E na tela, diferente de ontem e anteontem, há um serviço novo:

Olá,

Bom dia.

Tenho a intenção de escrever um romance, mas não consigo desenvolver as ideias principais. Ouvi falar muito bem do seu trabalho e penso que pode me ajudar. A minha ideia é confrontar os motivos que as pessoas se inventam para acreditar em deuses. Levar cada um desses motivos ao limite e ver se ficam de pé, um Deus — Um Delírio versão ficção. Um livro para te fazer perder a fé em deus. Ligue-me no número abaixo e conversamos mais, eu tenho notas e tudo mais, mas é difícil demais por o que se pensa no papel.

Atenciosamente,

Piscine Patel

Reclina-se na cadeira e cumpre o tique: leva o crucifixo à boca e o morde. Mas como… Nataniel é um católico, porém Nataniel também tem contas — e católico, mas nem tanto. A última vez que foi a uma igreja, quando? Sente sim um carinho por Santa Bárbara, santa de sua mãe, a padroeira. Talvez não deixe de ter fé nela por medo de que se magoe. Considera outra vez o e-mail. Os motivos que as pessoas inventam… eu não inventei nada! Eu sei. Ou pelo menos é como se soubesse. Não busquei, não tentei criar, é como se sempre estivesse estado em mim. Se Nataniel tivesse de derrotar a si mesmo, a crença viva em si, que faria?

Yolanda era escritora. Isso o assusta um tanto, mero revisor, tradutor, ghost writer no seu máximo. Ela era escritora de verdade, e ele sempre enxergou nisso uma tal profundidade. Como se chapinhasse no raso enquanto ela se lançava ao mar aberto; velejando convicta em uma situação na qual ele estaria à deriva — e assim, os dois estando juntos, não pode nunca deixar de sofrer uma sensação de esmagamento: de um lado do barco, ela, a força pura, e do outro, ele, o ser simplório. Ela, a beleza furiosa; ele, a debilidade persistente. Conheceram-se há três semanas, em uma oficina literária ministrada por ela. Se eu consegui trazê-la até aqui, pensa Nataniel, é porque algo eu tenho. Alguma coisa a encantou. Mas seja o que for, seu efeito fenece a olhos vistos. Ontem ela lhe mostrou o projeto de um romance. As folhas que trouxe ainda estavam sobre o sofá.

Pessoas bem intencionadas, mas desinformadas, creem que os animais selvagens são “felizes” porque são “livres”. Essas pessoas geralmente tem em mente um grande e belo predador, um leão ou tigre (raramente se exaltam as vidas de um boi ou de um tatu). A vida do animal silvestre é simples, nobre e repleta de sentido, eles imaginam. Então ele é capturado por homens malignos e jogado em uma pequena jaula. Sua “felicidade” é despedaçada. Ele deseja desesperadamente a “liberdade” e faz tudo o que pode para escapar. Se sua “liberdade” for negada por tempo demais, o animal se torna uma sombra de si mesmo, quebra-se seu espírito. É assim que alguns pensam, não é assim que é.

Ah, sim, foi daí que tirou a metáfora que acabara de pensar: Yolanda como bicho. Felina. O que gostamos nos gatos é que cada movimento seu parece justo — suas espáduas dançam e as patas tocam o chão macias; Yolanda como tigre? Nesse caso essa elegância que se move é também um gesto potente de assassinato. Yolanda, língua áspera, compenetrada lambe as patas, jamais ergue os olhos, mesmo assim nunca será surpreendida: é que o mundo tem de lhe pedir permissão para acontecer. Será que o pouco que fiz já a prendeu demais? Yolanda retira a calcinha azul-cobalto de pé, sem tirar os olhos dele, mantém o sutiã. Não se atreve a terminar de despi-la por si mesmo mesmo quando ela se ajeita sobre ele. Sua boca frouxa desmaiada no ombro cor-de-cobre; Yolanda como uma ilha que a gente chega e na verdade a ilha é um complexo de plantas carnívoras. De repente ela desabotoa a última peça. Assim: como uma santa que concede a graça sem esperar nada em troca.

Nós não dizemos: “Não há lugar como nosso lar”? É certamente o que os animais sentem. Animais são territoriais. Essa é chave para suas mentes. Um zoológico biologicamente bem trabalhado — seja jaula, toca, curral, aviário ou aquário — é só outro território, peculiar apenas por sua proximidade com o território humano. Isso é o que os animais são: conservadores, reacionário, até.

Seria lindo se você fosse a uma casa, chutasse a porta da frente, arrastasse as pessoas que moram lá para fora e dissesse: “Vá! Você está livre! Como um pássaro! Vá! Vá!” — e essas pessoas simplesmente permanecessem um instante lívidas, mas não mais, e caminhassem pela rua até o horizonte como se nada mais pudesse detê-las. Mas elas não fariam isso. Pássaros não são livres. As pessoas diriam: “Com que direito você nos expulsa? Essa é nossa casa. Nós somos donos dela. Nós vamos chamar a polícia, seu vagabundo”.

O crucifixo caído à toa sobre o seio que se movimenta com toda justiça. Será que ela está me dizendo com isso que está pronta para se prender? Sendo escritora, ela provavelmente transcreve o drama de sua vida às letras. Pode ser que eu esteja nessas linhas!, pensou ele, não sem algum triunfo. Depois desanimou: ou será que sou eu o conservador e reacionário? Gostaria de não ser assim. A questão é que tenho de viver a vida. Um dia, com apartamento pago, eu poderei escrever minhas coisas também. Já terei lido os clássicos, eles fermentarão bem na minha cabeça, e minha grande história surgirá naturalmente. A questão é que eu sou alguém que avança pouco a pouco, por força das circunstâncias. Yolanda deixando o quarto — ergue-se, veste a saia florida, a blusa branca, prende o cabelo num rabo-de-cavalo, deixa a porta aberta sem olhar pra trás enquanto Nataniel finge dormir, esperando no canto d’olho que ela pudesse voltar para lhe dar um beijo. Ele perscruta seus ruídos. Passos no corredor. Abre a porta do banheiro. A urina escorre. Como em uma cena de Graciliano Ramos. Feito uma sinfonia sonsa. Passos no corredor. Abre a porta da frente, fecha. Silêncio. Silêncio.

*

Teve afinal a ideia: escreveria uma anti-Aposta de Pascal. O argumento do filósofo francês era bastante conhecido e possuía um apelo irresistível: esquivava-se da tentativa de provar a existência de Deus e se concentrava no modo de vida do indivíduo. Cabe a este indivíduo, o desconhecido à sua frente, decidir-se por uma ética, um proceder. Caso o desconhecido que é o seu futuro esteja prenhe de um deus e de um paraíso e ele não crer nesta divindade, tudo estará perdido. Caso creia, receberá a Graça. E o golpe de mestre: caso creia e nada existir, não terá perdido nada. Apostar em deus-existente, para citar Lebrun, é jogo sempre ganho. A Aposta sempre dera certo conforto intelectual a Nataniel, mesmo depois que ele procurou pelos ensinamentos pascalianos mais a fundo e aprendeu que este lance de risco, na medida em que se restrinja à decisão pela fé meramente psicológica, não garante nada: seria preciso ainda agir como um cristão verdadeiro (é forçosamente a que leva o argumento) e aguardar, sem certezas, que Deus se predisponha a tomar-lhe para si. Sempre lhe confortara, porque se sentia a meio caminho, ao menos na estrada certa, que poderia perseguir quando fosse o tempo. E lhe cabia agora criar uma história em que escolher aquela estrada é um erro.

Baixou os Pensamentos e o leu demoradamente, tentando forjar uma cena dramática. Com isso feito, enviaria a premissa ao cliente e partiria a conversa desse ponto. A Aposta ocorre em diálogo. Tenho então dois personagens: o pensador e o descrente. Não é preciso seguir o esquema à risca. Conforme esse Piscine Patel queira, podemos fazer interagir outros tipos de personagem — o importante é que suas personalidades sejam contrastantes, que isso fará a história correr. Tipo Máquina Mortífera. Duas pessoas bem diferentes, por algum motivo tem de ficar juntas e lidar com suas diferenças: é uma estrutura que funciona. Vamos ver, a princípio, um sujeito mais convencional, trabalhador, família formada, crente, e o outro, um qualquer solto na vida, quem sabe um criminoso. O pagador de impostos e o assassino, os dois presos um ao outro numa viagem interestadual de carro, por alguma razão. Isso dá até filme!, sorriu Nataniel. No meio desse choque, ponho as proposições de Pascal, invertidas.

O pagador de impostos diz:

— É preciso acreditar. É preciso sempre estar vigilante, porque depois do erro não tem jeito de voltar atrás. É isso o que Pascal nos diz.

O assassino, cigarro no canto da boca, jaqueta de couro (quem sabe possamos ambientar as cenas nos anos cinquenta dos Estados Unidos):

— Ok, você fez sua aposta e está aí esperando o céu cair no seu colo com as anjas peladas. Se te passo essa arma, talvez tenha bala, talvez não, você põe na tua boca e atira?

— Deus não aceita o suicídio. Boa tentativa.

— Sei. Mas qual foi teu primeiro pensamento? Sua sensação íntima.

Ele traga o cigarro e solta a fumaça:

— Seu pensamento íntimo foi: de maneira nenhuma.

Toca a campainha. Será Yolanda? Lá fora, La Paz se inunda de por-do-sol. Tomara que não seja um cliente, já disse pro porteiro não deixar subir, mas é um idiota. De fato: pelo olho mágico ele espia alguém que nunca viu antes. O rosto bastante branco e a barba espessa são alongados pelos efeitos típicos desse vidro. Nataniel abre a porta, o cumprimenta, pergunta o que quer — em espanhol, naturalmente. O homem tem um sobretudo dobrado no braço e uma mala enorme no chão, ao lado do corpo. Segura numa das mãos uma grossa brochura. Desculpe, peço que me envie pedidos pela internet primeiro, para orçamento. A expressão do desconhecido é de dúvida. Finalmente, ele fala, em inglês pesado de sotaque, com uma voz rouca e grave: Vim agradecer e pedir desculpas por uma criação sua que roubei.

***

Nikolai e Nataniel sentaram-se nos sofás da sala de estar do apartamento. O primeiro abriu a mala e de lá retirou um livro que pôs sobre a mesa de centro. Chamava-se Encounter With Salazar, e seu nome vinha logo abaixo em letras também garrafais. Disse: aqui, seu livro. O ênfase na palavra “seu” e a expressão compungida confundiram outra vez Nataniel. Amigo, ele respondeu, nunca escrevi um livro na vida. Trabalhei pra você, é o que quer dizer? Sem parecer surpreendido, o outro voltou a pegar algo na mala: um envelope. Nele, o boliviano se chocou ao encontrar seu próprio nome. Sei que você a abandonou, começou Nikolai, que teve seus motivos para isso. Eu me aproveitei disso e estou aqui para retribuir.

Eu acredito em providência, ele continuou, e este livro, para mim, é uma prova dela. O que penso é que você simplesmente o enviou para qualquer lugar. Percebi que o meu primeiro e o último nome pertencem respectivamente a outros dois escritores: você deve ter somado ambos e enviado o livro para esse recém-criado literário. Seu nome era como um aceno derradeiro, o último gesto de apego ao que fez. Contra toda expectativa, de fato chegou àlguém; a mim. E eu o li, aprendi a amá-lo, e logo surgiu o desejo de adotá-lo; tomá-lo entre os meus para que visse o mundo e conquistasse outros leitores. Foi o que fiz. Li, reli e li outra vez e ainda outra vez, até que as palavras fossem tão minhas quanto foram tuas, até que soubesse como recriar em mim as condições de cada uma delas. Como se deus me desse apenas o homem, e eu tivesse de criar o mundo que lhe era devido a partir dos aspectos da criatura. Ela fez sucesso. Mas não era meu sangue na veia da história, eu queria que fosse, mas não era.

Foi engraçado, porque soou profética uma outra história, essa eu escrevi de fato, em que o personagem era também um falsário, e, por ser um falsário, um gênio. Isso faz três anos. O seu livro me abriu uma clareira em que eu pude trabalhar com calma. Foi como uma bomba de fumaça, dispersou meus inimigos, impediu-os de me enxergar, eu pude trabalhar calado, enquanto um livro que não tinha me esgotado, que não tinha exigido tempo ou esforço, agia calmamente fora de mim. Eu me libertei por ser um ladrão. Eu não tinha responsabilidade… Se o autor está morto, então tudo é permitido! Nikolai gargalhou. Ainda de boca aberta, o sorriso suspenso, notou a estupefação de Nataniel. Voltou lentamente a uma expressão contida; houve um momento de silêncio. Amigo, eu… nunca escrevi um livro… quer dizer, não um livro meu… A expressão de Nikolai frente a essa última frase foi paternal. O filho pródigo retorna ao lar, meu caro Nataniel Arzáns. Me permite ler alguns trechos seus que me marcaram profundamente?

(Quais as chances disso estar acontecendo?, pensou Nataniel.)

Ele consentiu. Nikolai abriu o livro e leu:

Esse era o custo terrível de Salazar. Ele me deu uma vida, minha própria, mas sob o preço de tirar outra. Algo em mim morreu e jamais voltou à vida. “Não é irônico?”, ele me disse, “Nós estamos no inferno, mas ainda assim tememos a imortalidade”. Estavámos, a portas fechadas, em sua sala. O tapete vermelho frente à mesa de mogno, sob a penumbra. Com a pouca luz, seu rosto era dramatizado e intenso como em um filme expressionista. “O que eu sei sobre Deus? O que você sabe sobre Deus? Nada. Sem um motorista este carro não vai a lugar nenhum. Nossas vidas estão terminadas. Nós podemos ficar juntos, você pode ir à janela — mas é uma visão triste.

(Nataniel lembrou-se de Pascal. E do que o assassino que esboçou estava defendendo: era a vida abandonada pelo personagem, a vida que Salazar substituía pelo fascínio divino.)

Nós vemos isso nos esportes sempre, não? O campeão leva todos os jogos. Mas, no final, se o desafiante não tem nada a perder, ele fica relaxado, despreocupado, temeroso. Súbito, ele pode jogar como o demônio e o campeão precisa suar para ganhar os últimos pontos. Foi assim comigo. Com os coordenadores de campanha, os politiqueiros baixos, os demais acadêmicos, minhas chances eram altas. Com a “aristocracia” acima deles, os homens de família, os poderosos da Igreja, os militares, minhas chances eram remotas. Porém, contra Salazar eu seria tão obviamente superado que nem mesmo havia porque se importar. Com um tigre a bordo, minha vida estava acabada. Concluído isso, por que não se jogar?

Eles estão em conflito, encerrou a leitura Nikolai. O que temos com esse personagem, ele continuou, é uma distância enorme entre suas ações e possibilidades — e a imensidão dos exemplos que pretende seguir. Ele se sente asfixiado por seus sonhos. Existe um ponto sutil em que um sonho pode ser um parasita, um câncer, devorando mais e mais da tua vontade, tornando-a, na prática, um serviçal seu, exclusivo. Meu sonho drenava meu sangue, direto da aorta. Como escreveu Balzac sobre o anseio de ser um escritor, “a menos que se tenha espáduas de Hércules, acaba-se ou sem coração ou sem talento”. Mas eu enganei meu monstro. Escapei do desejo, do sonho, do tigre à bordo, por tempo suficiente para entender o que eram. “Com minha pele de urso, sendo urso eu-próprio”, como escreveu Flaubert. Você consegue entender o que te digo?

(— Se não há motorista, pensou em Nataniel o assassino, posso ir a pé, não?)

Talvez… talvez entenda. E se, por outro lado, nosso sonho nos fosse entregue de repente? O tempo todo fracasso ou aleijamento, e, de uma vez, pronto, sem arestas, o sonho para que o vistamos e vivamos? Porque Pascal aposta, não obstante o que implode dentro de si não é a vida velha — é o silêncio de cada uma das estruturas, dos telhados das casas às janelas das carruagens, do canto dos pássaros até o último suspiro das crianças assassinadas de fome, é o silêncio de que nada mudou. Eu desejo! E nada mudou. Eu sonho! E nada mudou. Eu luto e venço, e há mais luta, e venço, e há mais luta. E nada mudou. E se por outro lado Deus de imediato batesse à porta e sorrisse: Obrigado, filho. Era só o que eu esperava. Estou aqui.

(Não, não sou um escritor ainda. Preciso mais. Sei que preciso.)

Nataniel insistiu: Nikolai, me perdoe, mas não sou quem você acha. Nunca escrevi nada literário. Sou um empregado das ideias dos outros. Não esperava outra coisa, disse Nikolai, se levantando. Realmente, o que eu precisava era dizê-lo. Confessar. Acender uma vela. Chequei por meses os nomes e as ocupações, e vim aqui com certeza irrestrita. É o que me basta. Desculpe-me. Obrigado.

Com um gesto, Nikolai indicou que deixaria a brochura original ali. Nataniel sentiu que era inútil resistir. Acompanhou o visitante até a porta, angustiado. Antes que ele saísse, afirmou: Posso ajudá-lo. Posso procurar por esse outro Nataniel Arzáns. Assim você encontra o seu escritor. O homem sorriu. Aproximou a boca do ouvido do escritor-fantasma e sussurrou, como se temesse assustar o destino: Você é um indivíduo honesto. Digo: eu sei. Seu nome é também a composição de dois escritores. Seja quem for que enviou, disfarçou seus passos. Mas é bonito o acaso. E eu precisava desta história.

Lívido, Nataniel viu o russo se afastar. Ainda no corredor, ele gargalhou como um trovão e se voltou à porta do apartamento.

— Acabamos de plagiar Mia Couto. As fotografias! Há! Não é possível viver sem roubar…

***

Cinco dias depois, Yolanda lhe fez uma visita. Não estava séria demais, porém não parecia entusiasmada. Por que viera? Mas Nataniel lhe disse: Bom que você veio. Quero lhe mostrar algo que nunca mostrei a ninguém. É um romance. Meu romance. O rosto dela se iluminou de interesse novo. Ele retirou uma brochura encadernada em espiral de uma gaveta. Estava com partes da borda amassadas, pequenos pedaços rasgados, um tanto suja.

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Duanne Ribeiro

Jornalista. Mestre em Ciência da Informação, pós-graduado em Gestão Cultural e graduado em Filosofia (USP). Analista do @itaucultural. Editor da @rcapitu.