Carta para Paula n.º 2

Leticia Lyra Acioly
Filhas da Memória
Published in
8 min readApr 3, 2022
Praça São Marcos — Canaletto — 1723–24 circa

Existem dias onde a vontade de jogar o trabalho burocrático pro alto e me voltar à escrita é muito grande. Grande tipo vontade de gritar. Mas a gente vai deixando a vontade morrer porque… São tantos os porquês que dá preguiça de explicar.

Quando você me contou sobre Veneza e pediu dicas de lugares, pensei: não sei se consigo fazer isso. Talvez a única seja: se hospede em Veneza. É mais caro que ficar no continente, mas vale muito à pena. Quanto aos lugares a visitar, eu não sei indicar. Veneza é única no mundo e só de andar por ela e se perder e se encontrar e se perder de novo já torna a viagem digna de boas memórias.

É bom ter bateria no celular pra usar o GPS sempre, mas caso a bateria acabe, aproveita pra entrar em algum bar, pedir pra carregar um pouco e beber uma cerveja enquanto isso. Aproveita e faz amizade. É assim que conhecemos pessoas locais que nos apresentam os melhores lugares. Eu a Patrícia conhecemos um pirata assim, e fomos convidadas pra sua festa de aniversário. Até hoje não sabemos se ele é pirata. Provavelmente não, mas é algum marinheiro muito louco que foi simpático.

Uma outra dica seria: não se espante se eles forem rudes. Eu conheci pessoas bem grosseiras em Veneza. Não leve pro pessoal ou isso pode estragar a viagem. Numa tentativa de fazer a sua viagem melhor e talvez tentar amenizar a imagem ruim que os venezianos podem passar, eu pensei em deixar alguns registros do Goethe enquanto esteve passeando por lá. São trechos que me deixaram alegre, emocionada e feliz por saber que alguém, séculos antes, conseguiu exprimir sentimentos que vivi no século XXI.

Espero que seja um bom presente, como foi pra mim, lê-lo.

Estava escrito em minha página no livro do destino que eu avistaria Veneza pela primeira vez aos 28 de setembro de 1786, à tarde, à quinta de nossas horas, aportando do Brenta em direção às lagunas, de modo que logo deveria pisar o solo e visitar essa prodigiosa cidade insular. Desse modo, Deus seja louvado, Veneza deixaria de ser apenas uma palavra, um nome vazio, que a mim tantas vezes angustiara, a mim, o inimigo mortal das palavras sem sentido concreto.

De Veneza já se falou e escreveu tanto que não quero me estender em descrições. Quero apenas dar voz às impressões que a cidade provoca em mim. Acima de tudo, causa-me espanto seu povo, essa grande massa em uma existência ao mesmo tempo necessária e involuntária.

Não foi por divertimento que se abrigaram nessa ilha. Tampouco foi por capricho que outros se juntaram a eles. A necessidade ensinou-lhes a buscar sua segurança na mais desvantajosa das situações geográficas, que mais tarde passou a lhes ser vantajosa, tornando-os sábios, enquanto o mundo nórdico jazia envolto na escuridão. Sua prosperidade e riqueza foram consequência necessária. Entretanto, as moradias se tornaram cada vez mais estreitas, a areia e os pântanos foram progressivamente substituídos pelas pedras. As casas buscavam o ar, assim como as árvores de copa fechada, que procuram compensar em altura aquilo que lhes falta em diâmetro. Ávidos por qualquer faixa estreita de solo e já desde o começo restritos a espaços apertados, construíram suas vielas com largura não maior do que a necessária para separar uma fileira de casas da outra que lhe fica à frente e para assegurar aos habitantes o espaço necessário para ir e vir. A propósito, a água nem lhes fazia as vezes de rua, mas sim de praça e de passeio público. O veneziano teve de se tornar uma nova espécie de criatura, do mesmo modo como Veneza só pode ser comparada consigo mesma. O grande canal em forma de serpente não se assemelha a nenhuma outra rua do mundo, o espaço em frente à praça São Marcos não pode ser comparado a coisa alguma. Refiro-me ao grande espelho d’água em forma de meia-lua, circundado de um lado por Veneza propriamente dita. Do outro lado do espelho d’água vê-se à esquerda a ilha de San Giorgio Maggiore, um pouco mais à frente, à direita, a Giudecca com seu canal, seguindo ainda um pouco mais à direita a Dogana e a entrada para o Canal Grande, de onde se vê o faiscar de alguns enormes templos de mármore. São esses, em poucas pinceladas, os objetos que divisamos quando adentramos São Marcos passando em meio às duas colunas. Essas vistas já foram tantas vezes reproduzidas em cobre que os caros amigos poderão facilmente fazer uma ideia da paisagem que se nos apresenta.

Entrada da praça de São Marcos passando pelas duas colunas — Canaletto, 1733–34 circa

Depois da refeição, apressei-me para ter uma ideia do todo e lancei-me — sem acompanhante, orientando-me apenas pelos pontos cardeais — no labirinto da cidade, a qual, completamente atravessada por grandes e pequenos canais, se deixa unir novamente por pontes grandes e pequenas. Não se pode avaliar a estreiteza e o caráter compacto do conjunto sem tê-los visto. De modo geral, pode-se medir quase completamente a largura das vielas com os braços esticados. Nas mais estreitas, roçam-se os cotovelos nas paredes, mantendo os braços para baixo. Certamente há algumas ruas mais largas, aqui e ali uma pequena praça, mas de modo geral pode-se chamar a tudo de estreito.

Encontrei com facilidade o Canal Grande e a ponte principal, Rialto; ela é composta de um único arco de mármore branco. Tem-se lá de cima uma bela vista do canal semeado de navios, que suprem todas as necessidades da terra firme. É aqui seu principal ponto de ancoragem e descarregamento de mercadorias, por isso o lugar fervilha de gôndolas. Hoje, dia da festa de São Miguel, a vista é especialmente bela e vibrante. De modo a oferecer um quadro que faça jus à cena, preciso ir ainda um pouco mais longe.

Veneza é dividida pelo Canal Grande em duas partes principais, ligadas uma à outra por uma única ponte, Rialto. Há, entretanto, muitos pontos de comunicação entre as duas margens. O transporte se faz por meio de barcaças abertas, às quais se tem acesso em pontos de embarque determinados. Hoje, tudo parecia especialmente belo; as mulheres bem vestidas, embora cobertas por um véu negro, faziam-se transportar em grupos, para chegar à igreja do arcanjo cujo dia se comemorava. Deixei a ponte e meti-me em um desses pontos de travessia, para melhor observar os passageiros que desembarcavam. Vi entre eles alguns rostos e formas muito belas.

Ponte Rialto — Canaletto — 1726–27 circa

Ao fim de certo tempo, cansei-me. Tomei então assento em uma gôndola, abandonando a estreita viela, e dirigi-me para o lado oposto para ver o outro lado do espetáculo, seguindo pelo lado norte do Canal Grande, contornando a ilha de Santa Clara em direção às lagunas e ao canal da Giudecca até a praça de São Marcos, sentindo-me, ao menos por uma vez, senhor do mar Adriático, como todo veneziano se sente quando está em sua gôndola. Pensei então em meu bom pai, que não se cansava de contar-nos sobre essas coisas. Será que o mesmo não aconteceria também a mim? Tudo o que me rodeia é digno, uma grande e respeitável obra do trabalho e da força conjunta do gênero humano, um magnífico monumento, não de um senhor, mas de um povo. E quando suas lagunas lentamente se encherem de sedimentos, quando miasmas se elevarem por sobre os pântanos, quando seu comércio enfraquecer e seu poder declinar, nem por um momento a visão da República e de seu espírito parecerá menos digna àquele que a contemplar. Ela paga seu tributo ao tempo, como tudo aquilo que tem uma existência no mundo sensível.

Ele fala muito de Palladio, que, ao contrário dele, não me esforcei para conhecer quando estive na cidade-ilha. Acredito que a nossa formação arquitetônica se gratificará de algumas visitas às obras do mestre, ainda que as críticas sejam inevitáveis. Mas sempre há chance em se apreciar um bom edifício palladiano.

A Igreja Il Redentore, uma bela e grandiosa obra de Palladio, tem uma fachada mais digna de elogios do que a de San Giorgio.

Palladio foi completamente tomado pela existência dos antigos e experimentou a estreiteza de horizontes e a pequenez de sua época como um grande homem que não quer se entregar, mas sim alterar as coisas como for possível, de acordo com seus nobres conceitos. Ele estava insatisfeito, como pude concluir a partir de sutis passagens de seu livro, com o fato de que as igrejas cristãs continuavam a ser construídas de acordo com o formato das basílicas. Por conta disso, tentou aproximar as igrejas que construiu dos templos antigos. Dessa ideia resultaram algumas impropriedades, as quais a visita a Il Redentore me fez ignorar, mas elas ganham um vulto em San Giorgio.

Veja você, Palladio quis recriar os antigos templos pagãos, como aquele que tão bem estudamos ao lado do Juju. Perceber que estamos diante de obras que só conhecemos até então através de livros e do contar de outras pessoas é uma experiência indecifrável, indescritível. Aliás, eu pensava isso até ler os diários de Goethe. Ele fala exatamente o que é esse sentimento, fico abismada em ler; mas obviamente a leitura nunca é a mesma coisa que viver o lugar. Mas que ajuda uma boa literatura, isso ajuda!

É como visitar uma velha família, que ainda nos comove, embora seus tempos de esplendor já tenham passado.

E sobre a decisão de partir nessa viagem à Itália, ele diz:

Não tivesse eu tomado a decisão que levo adiante agora, teria já sucumbido. Impeliu-me a essa viagem o desejo de ver tais objetos com meus olhos, imprimindo-os em meu espírito. Não é o conhecimento histórico que me move. As coisas estão a apenas um passo, mas separadas por um muro impenetrável. Não seria uma ousadia dizer que não me sinto como se visse as coisas pela primeira vez, mas sim como se as revisse agora. Estou há pouco tempo em Veneza e sinto-me bastante adaptado à existência daqui. Sei que levarei comigo uma noção clara e verdadeira, mesmo que incompleta.

Ainda que incompleta, porque nunca conseguiremos conhecer tudo, eu desejo que essa rápida visita te encha desse sentimento apaixonante que é imprimir na alma aquilo que só podemos viver através dos nossos sentidos, na presença do nosso corpo em cada espaço visto até então apenas em fotografia, pelo aroma de cada refeição, pelo som das embarcações no Adriático e da língua italiana que transforma toda forma de expressão em gestos mirabolantes. Os seus olhos podem querer não acreditar estar diante de um Canaletto vivo, mas ainda bem que os outros sentidos não deixam a gente se enganar. Que Veneza seja doce, que você veja as cores tangerinas do seu pôr-do-sol, e que seu coração fique aquecido de amor na cidade incomparável.

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Leticia Lyra Acioly
Filhas da Memória

Amante amadora do mundo da arte, arquiteta e urbanista por insistência, entusiasta de idas ao bar e apaixonada pelos meus amigos. https://linktr.ee/alyraleticia