Ilhas à margem do tempo
Quando falei em algum texto anterior a respeito dos amores deixados ao longo da história, tinha na cabeça principalmente a cidade de Baiae; uma cidade do império romano, pertinho de Napoli, que foi afundando aos poucos. Todos os anos ela afundava um pouco mais, até que seus habitantes resolveram deixá-la totalmente. Hoje ela é um sítio arqueológico submerso: estátuas, mosaicos, quartos, vestígios de estranha civilização…
Coincidentemente, reli as Memórias de Adriano há pouco tempo e eis que me deparei com uma informação que até então não havia percebido: em um dia quente e úmido de julho de 138 Adriano deu o seu último suspiro nessa mesma cidade.
Parece o desfecho perfeito para um homem que foi amado até o fim. O que me faz pensar que todos esses sentimentos, de Adriano e para Adriano, ainda estão pelo Mar Tirreno, por entre ruínas e escafandros.
Já no fim de sua vida, seu amigo Arriano lhe escreveu uma carta descrevendo a viagem que estava fazendo pelo Mar Negro. Através de Arriano, Adriano teve notícias de Cólquida, de Medeia e de Jasão. Através de Arriano e de seu périplo pelo Euxino, Adriano visitou a Ilha de Aquiles e encontrou também Pátroclo, porque
a Ilha de Aquiles é também, como é óbvio, a Ilha de Pátroclo, e os inumeráveis ex-votos que decoram as paredes do templo [de Aquiles] são dedicados tanto a Aquiles como a seu amigo, porque, bem entendido, os que amam Aquiles estimam e veneram a memória de Pátroclo. O próprio Aquiles aparece em sonhos aos navegantes que visitam essas paragens: protege-os e adverte-os dos perigos do mar, como o fazem aliás os Dioscuros. E a sombra de Pátroclo aparece sempre ao lado de Aquiles.
Conto-te estas coisas porque julgo que vale a pena serem conhecidas e porque aqueles que mais contaram as conhecem diretamente, ou as ouviram de testemunhas dignas de fé… Aquiles parece-me por vezes o maior dos homens, pela coragem, pela força de alma, pelos conhecimentos do espírito unidos à agilidade do corpo, e por causa do ardente amor pelo jovem companheiro. Nele, nada me parece maior do que o desespero que o levou a desprezar a vida e desejar a morte quando perdeu o bem-amado.
Quando o amigo contou para Adriano da ilha próxima ao delta do Danúbio, habitada somente por cabras, gaivotas e alcatrazes, ele pintou o local perfeito para Adriano voltar seu pensamento em seus últimos meses de vida:
Em Tíbur, em pleno maio ardente, ouço nas praias da Ilha de Aquiles o longo queixume das vagas; aspiro seu ar puro e frio; vagueio sem esforço no átrio do templo banhado pela umidade marinha; avisto Pátroclo… Aquele lugar que jamais verei, torna-se minha morada secreta, meu supremo refúgio. Estarei lá certamente no momento da minha morte.
Adriano morreu em Baiae, mas escolheu a Ilha de Aquiles como refúgio de seu espírito. Ulisses sonhava com sua Ítaca; Medeia com Cólquida; Agamemnon com Micenas; Tutsi com Bósforo; Leticia com Guanabara; Marguerite com Tíbur:
Lugares escolhidos para nele vivermos, residências invisíveis que construímos para nós à margem do tempo. Habitei Tíbur e morrerei talvez ali, como Adriano na Ilha de Aquiles.
Seja como for, sempre haverá a posta-restante milênios no ar, em cidades submersas ou no eco das nossas ruínas. Por mais em vão que seja, os exploradores encontrarão os nossos amores e as nossas ilhas e, talvez com sorte, direcionarão as nossas histórias para que alguns continuadores a vivam intensamente, com o doce sabor das aventuras humanas.
Érato.
Observação: Os trechos transcritos acima pertencem ao livro “Memórias de Adriano” da autora Marguerite Yourcenar. A carta de Arriano de Nicomédia a Adriano realmente existiu; em seu livro, Marguerite transcreve alguns de seus trechos.