O meu amor

Leticia Lyra Acioly
Filhas da Memória
Published in
3 min readFeb 25, 2021
Amor e Psiquê — Antonio Canova (1788–1793)

- E se eu te contar dos meus amores, você vai acreditar? Se eu disser que eles são tantos, são distantes, são próximos, cheiram a damasco, maresia, jasmim, goiaba e limão…

- E se eu disser que eles são morenos de olhos coloridos e possuem o mar na palma das mãos?

- Hoje eu escutei sobre Eros e Psiquê e pensei o quanto eu existo nessa história sem saber. Como é lindo caber em histórias e fazer delas as nossas também.

- Ontem a posta-restante chegou e eu fui dormir pensando na carta que nunca recebi, nos cheiros que nunca senti, no amor que ficou jogado por aí.

- Essa semana eu já chorei algumas vezes pensando nas histórias de amor que eu nunca vivi. Se eu te falar que tenho sede de mundo e que todas as histórias de amor são minhas também, você acredita?

- E se eu te disser que a minha dor mora justamente em não ter vida pra viver todas as histórias, você me acharia obsessiva, megalomaníaca e sem limites? Ou você falaria da grandeza da minha alma e me abraçaria falando pra ter calma porque a gente sempre se divide nos outros também e que essa é a melhor forma de viver todas as aventuras na alma?

- Você sabia que psiquê é alma e borboleta também?

- Há um mês, quando amei ao som de Futuros Amantes, também pensava em Marguerite, mas essa parte não entrou no texto. Eu dividi com a Julia e ela chamou “casamento”. Eu li “casamento e liberdade”; e fiquei pensando quando eu também poderia viver aquilo.

- Mas é ter um ego muito grande querer viver todas as histórias de amor, ein! Te aquietes, uma hora tu te cansas. Se bem que talvez não. Mas tu sempre foste assim ou esse isolamento te mudou?

- As duas coisas. Sempre fui assim, mas só consigo te falar porque viver isolado assim dói até os ossos; e dor nos ossos só passam quando contamos histórias e abraçamos pessoas. Na falta de braços amados, abraçamos contos.

- E são tão bonitos…

- Olha aqui o que a Marguerite falou: “Este livro não é dedicado a ninguém. Deveria tê-lo sido a G. F…., e tê-lo-ia sido se não houvesse uma espécie de impudor em colocar uma dedicatória pessoal numa obra em que eu desejava justamente apagar-me. Mas a mais longa dedicatória é ainda uma maneira incompleta e banal de honrar uma amizade tão pouco comum. Quando tento definir este bem que desde alguns anos me é concedido, digo comigo mesma que um tal privilégio, por mais raro que seja, não pode, todavia, ser único; que, na aventura de um livro levado a bom termo, ou numa vida feliz de escritor, deve haver por vezes, um pouco na sombra, alguém que não deixa passar a frase inexata ou fraca que por fadiga gostaríamos de manter; alguém que relerá vinte vezes conosco, se necessário, uma página sobre a qual temos alguma dúvida; alguém que alcance para nós nas estantes das bibliotecas os grossos volumes onde poderíamos encontrar uma indicação útil, e se obstina em consultá-los ainda no momento em que o cansaço nos terá levado a fechá-lo; alguém que nos ampara, nos aprova, por vezes nos combate; alguém que partilha conosco, com igual fervor, as alegrias da arte e as alegrias da vida, seus trabalhos jamais tediosos e jamais fáceis; alguém que não é nossa sombra, nem mesmo nosso complemento, mas ele próprio; alguém que nos deixa divinamente livres e, contudo, nos obriga a ser plenamente aquilo que nós somos. Hospes Comesque*.”

- Hospes Comesque… Hoje a gente foi longe, né…

- E olha que nem falamos das músicas que eu e o Junior preferimos.

- Até já sei a que par de olhos azuis elas pertencem.

- Será que vai dar tempo? Meu estômago tá doendo.

- Não dá pra saber. Mas, por enquanto, pega aqui essa ambrosia e brinda comigo. Brinda a nossa imortalidade e as nossas infinitas possibilidades.

-Evoé!

*Hóspede e companheiro

Amor e Psiquê — Antonio Canova

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Leticia Lyra Acioly
Filhas da Memória

Amante amadora do mundo da arte, arquiteta e urbanista por insistência, entusiasta de idas ao bar e apaixonada pelos meus amigos. https://linktr.ee/alyraleticia