A vida é ourobórica

(Reflexões sobre a imaginação — parte 1)

Filipe Henz
Filipe Henz
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3 min readDec 3, 2019

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Em meio a tantos outros significados que nos permite este arquétipo, um deles indica para a realidade de que contamos histórias e somos as histórias que contamos. Mais que isso, somos a maneira que as contamos, sejam memórias, ficções, ou a mistura das duas coisas (o que geralmente é o caso).

O Ouroboros é a chave metafórica que aponta para aquilo que contém e está contido em si mesmo, como se numa sobreposição de fractais, em que somos capazes de identificar o todo pelo detalhe e o detalhe pelo todo. Estamos inseridos em nossas próprias criações, ao mesmo tempo em que as depositamos no mundo. Quando criamos, rememoramos, também somos criados, refeitos.

O Ouroboros é um símbolo para o funcionamento da vida e da psique humana, que se destrói e se refaz incessantemente, porém, como a vida se alimenta de si mesma, jamais perde o que adquiriu. A vida nutre a própria vida. Se doamos vida, teremos mais vida.

Mas o que a imagem de uma criatura que engole a si mesma a partir de sua cauda tem a ver com processos de imaginação?

Podemos afirmar que essa autofagia do Ouroboros conduz a camadas cada vez mais profundas de si mesmo; um processo natural, por ser cíclico, infinito. E, como tal, autônomo, livre.

Creio que um dos meios para a cura psíquica da imaginação, ou seja, para o contato genuíno do indivíduo com suas imagens internas, aconteça a partir da identificação e compreensão de seus literalismos de subjetividade aprisionantes: quando começamos a abandonar as noções da dualidade, como doença e cura, bem e mal, dentro e fora, ficção e realidade, e nos colocamos a disposição para observar o que há para além dessas barreiras. É como sentar-se diante de um rio e observá-lo correr. Você pode até entrar na água para interagir com ele, mas é impossível detê-lo. O mesmo diz respeito a nossa realidade psíquica, à nossa imaginação.

As diferenciações comuns entre ficção e realidade partem de paradigmas limitantes que negligenciam uma realidade da psique. Consideram a imaginação algo infantil (em um sentido negativo da palavra) ou a patologizam. Essa visão nos impõe restrições, que nos impedem de enxergar a vida em sua vastidão de paradoxos e contradições não permite um contato profundo e direto com a imaginação.

Portanto, há de se considerar que existe em nós uma realidade autônoma, natural, que age, se manifesta e nos influencia independente de nossa vontade. É o que chamamos de realidade psíquica. As figuras que surgem dessa realidade são parte dessas diversas camadas que devemos desvelar para conhecermos a nós mesmos. Isso ocorre com a libertação da imaginação, do desencadeamento de processos que fogem às limitações impostas pelo ego e permitem um contato direto com suas imagens vivas: um mundo interior que pode negar inclusive nossas próprias noções de ética.

A figura do Ouroboros nos abre para a nossa capacidade de enxergar as diversas camadas que nos compõem. Simboliza também a autofecundação, o encontro consigo mesmo para a gestação, para a criação; significa desvelar-se para encontrar em si mesmo a verdade. Esse desvelamento de si surge a partir do conhecimento das diversas partes que nos formam.

Ouroboros também é a reconciliação dos opostos, ou seja, a compreensão para além dos literalismos de subjetividade que vêm conduzindo a decodificação da realidade através da comparação entre as polaridades, ou das operações lógicas “Se… Então…”, “Ou… Ou…”.

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