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Fialho Hermínio

Filipe Henz
Filipe Henz
9 min readMar 20, 2020

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Every creature casts a shadow

Under the sun’s golden finger

- The Handsome Family

Parti a cortina de contas ao meio. Alternadas com anéis de alumínio, as tiras de bambu tilintaram ocas atrás de mim. A tábua rangeu sob o peso do meu passo, que abandonou a luz cega do dia, refletida na terra ocre. O interior cheirava a coalhada. Moscas zumbiam, batendo contra as superfícies das coisas. Ao canto, uma mesa coberta com toalha verde, e sobre esta uma partida de xadrez em suspenso — seis peões, três cavalos, nenhuma torre, reis, rainhas -, um duelo interrompido contra a própria morte, cheguei a pensar. Bati no balcão. Passeei com os olhos num arco. Ovos em conserva apinhavam-se azuis dentro de um vidro. Atravessando as perfurações no telhado de zinco, o sol pintalgava o chão encerado; persegui uma delas até alcançar o espelho diante de mim e ver, realçado pela lâmpada pendurada antes de meu reflexo, as gotículas de suor em minha testa e nariz, a vermelhidão cobrindo-me o supercílio, atribuindo-me um aspecto de abandono, sentimento ao qual de fato havia me aferrado há alguma meia hora; agora não mais.

Minha cara diante do espelho, no entanto, revelou ser outra a verdade.

Com um pouco mais de peso no punho, noquei a superfície do balcão. A dobradiça de uma porta (ou janela) grunhiu atrás das paredes, então se fechou num batente seco.

— Dia! — disse o velho, se aproximando, inclinando a cabeça, como se houvesse algo do qual se desviar. Veio oscilante, meio coxo (o que depois me foi sabido ser um tipo de hábito desenvolvido com sua progressiva perda de visão). Naquela época, apenas seu olho direito estava debilitado e ainda não fazia uso da bengala.

Eu lhe disse que procurava leite fresco, e que havia andado à margem da estrada, seguindo o poente, como me havia explicado minha tia-avó, Valquíria, no dia anterior.

Diferentemente do que eu esperava, o velho não expressou surpresa ao que lhe revelei meu parentesco com um de seus conterrâneos. Manteve-se sério, as pálpebras do olho direito espremidas, como se conservasse dentro das órbitas um tipo não ordinário de segredo, o olho ali mesmo, no entanto, virado para o interior de seu crânio, percebendo cada sensação em seu corpo, cada reação química, cada fluxo de sua consciência. (Obviamente só pude desvendar tais percepções, não naquele instante, mas depois de associá-las ao que sucedeu-se anos mais tarde). Abriu uma gaveta atrás do balcão. O som de talheres. Em seguida ele bateu com uma caixa de papel na palma da mão e prendeu entre os lábios o palito de dentes.

— O que houve com as vacas? — perguntou, por fim.

— Já não iam bem — lhe informei, tal qual me disse a tia, e fiz um esgar pesaroso, mais por hábito do que por algum real sentimento. O velho pareceu ter notado minha incongruente falha. Nada disse, no entanto. Virou-se e curvou o pescoço, atravessando a porta atrás do balcão. Em seguida voltou, pousando as duas garrafas à minha frente. O leite estava alvíssimo e senti tocar meu rosto o frescor do vidro recém-saído do freezer. Quis me demorar mais um pouco antes de enfrentar novamente a tarde, e emendei assunto: disse-lhe que, por ter me levantado da cama tarde demais, fui deixado para trás; pelos parentes saídos a passeio, falei. Não. Abandonado! Essa foi a palavra que usei: abandonado. Olhei para o espelho atrás do homem e notei que o ar gelado que emanava das garrafas me havia aliviado a expressão contraída. Então concluí, sem voltar-me ao velho: — Pus-me a andar, segui a estrada como me disseram, pensei que fosse menos distante. Aqui estou. Vou levar este leite.

Fui tolhido pelas mãos do velho, que, por cima do balcão, me agarrou os pulsos. No início pensei ser um calor abrasador, porém a sensação logo se revelou um frio ardente, que me paralisou ao toque. Envolvido pela fragrância gélida, o homem me disse:

— Sei quem é e por que veio. Não tenho mais tempo.

***

Não tardou para que Fialho Hermínio perdesse completamente a visão exterior. Seus olhos foram se desviando, confirmando minhas suspeitas: os globos oculares tornavam-se aos internos da caixa craniana, dando a ele um tipo especial de perspectiva. Sem nada externo que se interpusesse à sua originalidade e capacidade de observação, passou a desenvolver memória e imaginação excepcionais. Num controle total do tempo, seu tempo interno, foi capaz de buscar no mais profundo de suas experiências o material necessário à manifestação da vida em suas palavras; construía imagens das mais inusitadas, buscando nalgum futuro distante, inconcebível, o mais perene da existência humana, o que jamais se perderá, sem, entretanto, deixar de estar aberto ao presente imortal, mutável, dotado de toda sorte de surpresas capazes de alterar o mais fino fio de qualquer pensamento. Como eu posso saber de tudo isso, como, se tão pessoais são tais experiências? Mesmo que eu possa traçar algumas linhas oblíquas, controversas, de suas peculiaridades, jamais perscrutarei a essência de Hermínio. O que sei me parece ter sido transmitido numa espécie de osmose, troca diária de energia vital através da simples observação e da tentativa de aprendizado, por meio de sonhos dos quais eu recordava somente quando a lição se materializava em meu dia, ensinamentos registrados tão profundamente, nas sombras de minha alma, dos quais eu apenas sentia seus efeitos e me maravilhava diante de novas perspectivas e sinapses naturalmente estabelecidas, como sementes que germinam no húmus.

Dele, de Fialho Hermínio, não existem retratos, o último constituía um daguerreótipo, guardado no interior de um pingente de colar, perdido em seu traslado para o continente, enquanto deixava para trás a guerra da ilha de Três Lagoas. A única imagem que permitiu de si foi um desenho feito por mim, depois de ter ficado completamente cego; mas fez questão que eu o representasse com os olhos bem abertos, como se ainda pudessem ver o mundo objetivo, convencionado (talvez porque, creio eu, ainda sentia falta de compartilhar das experiências mais triviais do mundo externo, de toda a gente).

Nos últimos trinta e um anos, fui preenchido com entusiasmos e êxtases, com inspirações que jamais poderei descrever nestes textos. Motivei-me a compartilhar o que somente me foi autorizado devolver ao mundo depois que o Sr. Hermínio estivesse morto.

Ouvi com devoção as suas narrativas. Tornei-me o responsável por datilografar aquilo que ele me contava com exímia eloquência, as pálpebras cerradas, sentado em sua poltrona, apoiando-se na bengala; ou de pé, diante da janela do escritório, o vento serrano em seu rosto, o sol iluminando sua consciência, para onde era capaz de olhar com profundidade. E aquilo que via me dizia em detalhes, permitindo-me registrar cada uma de suas generosas palavras.

O texto a seguir se trata de um dos primeiros contos por ele ditado, bem antes de se deitar e se despedir, abandonando conscientemente o corpo, ou mergulhando tão profundamente dentro de si, que eu não mais poderia alcançá-lo em seus submundos, por mais que eu chamasse a carcaça ainda pendular sobre a cadeira de balanço. Disse-me que deveria ser o primeiro conto de seu trabalho reunido. E aqui está ele, tal qual me foi ditado; ou o que pude apreender de suas palavras, enquanto batia as teclas da Remington nº5 de 1894:

As pequeninas mãos de minha irmã

Fialho Hermínio

Viemos ao mundo juntos, eu e minha irmã. A mãe quem disse, à cabeceira da mesa, onde então ocupava o lugar que era do pai, ela sempre dizia, distribuindo o pão seco melado na banha quente, inclinando a térmica sobre a xícara de vidro âmbar. O meu rosto colado ao de minha irmã, as pernas entrelaçadas como cipós, e o parto. Siameses.

A membrana espessa que nos unia, contudo, não suportou as tensões de nosso cabo-de-guerra, eu voltado ao leste, ela, ao oeste, e logo se rompeu: eu ciente da escuridão do mundo, tão cara à luz, enquanto ela…

“Não a deixe sozinha na água”, disse a mãe.

Minha irmã salta agachada ao remanso do Rio das Almas, selecionando com luminoso afeto os seixos mais claros, esféricos, evocando a inocência de um mundo sem aspereza. Suspendo os dois pés e abandono a rede que, amarrada às vigas no alpendre, range e range e ran… Aproximo-me em silêncio e me detenho ao seu lado; seus pés descalços fazendo curvar a corrente rasa que aclara suas canelas. Ela me olha de baixo e o dia faz contrair seu rosto, suas pequeninas mãos em forma de concha acima dos olhos, e mostra-me o espaço vazio de um dente prestes a brotar outra vez. Eu sorrio de volta — mesmo sabendo ser involuntária sua expressão — e me viro severo à extensão do rio, o reflexo do sol picando em partículas brilhantes na água, rebatendo ao meu rosto de forma alternada. Afasto-me da margem e me deito na grama.

Escavando a terra úmida me cubro até encontrar o calor puro, o calor que se forma de dentro para fora, acumulando-se em si mesmo, atravessando-me a pele, e sou conduzido ao meu próprio centro sem, no entanto, deixar de sentir a aragem em meus cílios, um piscar demorado, levado ao torpor profundo, inabarcável, águas sobre as quais adejo e em tudo que vejo é a linha a dividir-me as vistas, em imagens que me chegam como os raios de sol entre as folhas, num fluxo corredio, uma seguida da outra, das quais sou espectador, porém, pela ânsia de inspirá-las profundamente, as revolvo emoções, torvelinho sem propósito, senão a própria necessidade de existir. E a água se vira contra mim, e o seu peso e o da Terra inteira dobram-se em meu ventre, forçando-me a expulsar de meu interior não uma das partes de uma simbiose, mas qualquer parasita, que de mim tudo leva, nada deixa em agradecimento. Sinto mais uma vez o peso sobre meu dorso, a pressão que se repete, minha irmã sacode meu corpo, puxa meu braço, me chama para correr entre pés de mamona, banana, trepadeiras-maracujá. Ela se adianta em meio à mata. Eu, retardado pela sonolência, acerto os passos atrás dela.

Sigo a pequena trilha aberta por insistência até que trilha não haja. Aos gritos, chamo minha irmã, movendo os braços em frente, dedilhando o mato alto, abaixando-me para não dar com a cara n’algum jatobá. Estico o pescoço, berro em direção ao dia. Passo com a lâmina dos olhos em volta. Escuto. Um vento frio roça meus ouvidos. A voz dela mal me alcança. Volto por de onde vim, aproximando-me dos arbustos e espinhais, onde ela se deita, paralisada até o joelho, apertando o tornozelo: dois pequenos pontos vermelhos que inflam feito bexigas.

De meu colo, deitei minha irmã, lábios escuros, olhos profundos e lacrimosos, no sofá da sala. Esperei que a mãe saísse do banho e apontei com a cabeça. Por mais que a mãe sacudisse minha irmã, nada a faria se mover de novo. Apertei o ombro da mãe e andei até o terraço, onde me larguei na rede, como quem se largava da vida.

Minha mãe deixou de falar de nosso parto, até que a figura alva de minha irmã, agachada à margem do rio foi desaparecendo de nossa mesa.

Como de costume, subo as escadas, entreabro a porta do quarto, bato três vezes. “Mãe”, digo. Espremo os passos e entro. Afasto da parede a moldura do quadro em que dois potros correm livres por uma praia, e deixo que a chave caia em minha mão. Destranco o armário da sala, pego a garrafa. As sombras da cerca se alongam sobre o passeio de pedras entremeando a horta. O Rio das Almas enregela o ar numa corrente firme, musical. Um gole demorado, enquanto caminho em direção ao matagal, sem tirar a garrafa da boca. Um vento balança o verde e me faz olhar para cima, o dia esfria entre nuvens num azul e laranja. Mais dois goles. Ergo a garrafa e a observo contra a luz que se esvai. O matagal farfalha à minha direita. Detenho-me equilibrando o eixo do corpo. De um arbusto batem as asas duas columbinas. A trilha se estreita, tal qual meus passos para sustentar-me de pé. Alguém se aproxima às minhas costas. Estaco, tornando o pescoço. Não há ninguém.

Então:

“Irmão!”, ouço.

Num impulso, corro para os espinhais, onde antes minha irmã havia se encontrado com a cobra. Atropelo o passo. A garrafa escapa da minha mão. Afasto o mato e a tomo de volta. Continuo, dessa vez mais devagar. Ali está: o espinhal, os arbustos ao redor. Sento-me sobre uma pedra e me ponho a soluçar, os ombros, o corpo inteiro em espasmos.

“Irmão”

Retranco a garganta, a respiração. Escuto.

Irmão, novamente. O lábio inferior de minha irmã brilha molhado sob o sol. Sua gargalhada me preenche o crânio.

Irmão. Irmão. Irmão.

A palavra se repete incessante, emendando-se uma na outra, como um eco entrecortado, sem ritmo, monótono.

Rodeado pela voz que não revela sua origem, ando até a casa, abro a gaveta da cozinha e volto aos espinhais. Jogo a garrafa contra a rocha e deixo que o líquido escorra por sobre as folhas secas, para em seguida riscar um, dois, dez fósforos.

Do outro lado do Rio das Almas, assisto ao brilho que emana dos espinhais em chamas, refletido na água.

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