As Barbáries do Nosso Cotidiano

Reações ao Feminicídio de Janaína Romão

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
4 min readJul 17, 2018

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Bonecos de Lula e Dilma enforcados em manifestação de 2015 no Brasil

Desafortunadamente estamos vivendo tempos bem difíceis. Está havendo uma guinada assustadora que vem trazendo à tona a dimensão mais obscura do ser humano. Tempos de crise costumam trazer temores e gritos de ajuda, muitas vezes confundidos com barbárie. Mas hoje parece ser diferente. O afastamento que o mundo virtual proporciona (por mais que seus defensores ainda acreditem que promova aproximação) tem feito emergir uma espécie de liberdade distorcida, insidiosa e autoritária. “Liberdade Autoritária” pode parecer ser algo paradoxal, porém não tão paradoxal como a própria liberdade em sua plenitude.

Se for impossível conceber qualquer liberdade sem que ela seja extensiva a todos, fatalmente, teremos que limitar qualquer ideia difusa de uma liberdade irrestrita. Precisaremos limitar voluntariamente nossa liberdade para que todos sejam livres. Quando não limitamos nossa liberdade, estaremos indo em direção a cercearmos a liberdade de alguém. Sem essa consciência, não há civilidade, não há convivência possível, a não ser sob opressão.

A total irresponsabilidade em se difamar, atacar, perseguir e centralizar sua vida em uma convicção irrefletida, traz como causa uma espécie de blackout cognitivo que parece obrigar todos a ter que dizer quaisquer coisas por impulso. Isso tudo ultrapassa o fato de estarmos em tempos em crise, mas nos mostra que a própria humanidade está em crise.

Parecem haver coisas que precisam estar irresistivelmente ligadas à qualquer noção de liberdade: ética (que pressupõe a existência do outro), empatia (que pressupõe que o outro seja um ser senciente), responsabilidade (que pressupõe que o outro possa julgá-lo por seus atos). Tudo isso, embora possa parecer cercear nossa liberdade, na verdade a amplia diante de uma petição tácita de consenso para que todos possam ser livres.

Janaína Romão Lúcio — Foto O Globo

Na noite do sábado, dia 14/07/18, Janaína Romão Lúcio, de 30 anos, foi mais uma das inúmeras vítimas de Feminício no Brasil: morta por seu ex-marido a facadas, mesmo após ter registrado ao menos dois boletins de ocorrência por violência doméstica contra ele.

Esse fato, por si só, estarrecedor e sintomático, já deveria comover a todos que abrigam as coisas que foram relacionadas junto à liberdade neste texto. Porém, tão ou mais estarrecedor do que o próprio ato hediondo cometido, foi assistir o bárbaro espetáculo das pessoas que se dispuseram ou pensaram ser necessário comentar nos principais portais que repercutiram a notícia.

A perda da civilidade, a falta de empatia, a crueldade que inúmeras pessoas se permitiram para fazer piada ou pseudo-críticas políticas sobre o fato de uma funcionária do Ministério dos Direitos Humanos ter sido morta, mostra que a humanidade e, em especial o Brasil, tem falhado miseravelmente.

A distorcida ideia (martelada pela mídia marrom e reforçada até por candidatos à presidência do país) de que Direitos Humanos significa defender bandidos, aliada a um gosto mórbido por sangue e desejo de vingança, deram o tom da maioria dos comentários. Pessoas em catarse como dizendo “bem feito, pois quem defende bandido merece morrer mesmo”. Outras se recusando a aceitar que tenha sido Feminicídio e culpando, novamente, os tais Direitos Humanos. Houve portais que desativaram os comentários da notícia, muito provavelmente com engulho por terem que ler tais disparates desumanos e cruéis. Essa catarse vingativa e bárbara sequer leva em consideração o fato de que cada um dos que comentaram terem garantido seus direitos de serem absolutos imbecis, mas pior, sequer se da conta de que o assassino não era nenhum bandido “defendido” pelo ministério que Janaína trabalhava, mas seu marido, jovem, com quem ela tinha duas filhas, apesar do passado com histórico de violência. Assistir ao descaso, a irresponsabilidade e a falta de empatia dessas pessoas covardes dão o tom dos tempos atuais no Brasil…

Cada post, cada comentário impulsivo jorrando para fora todo ódio e revolta, funciona como catarse em torno dessa cultura em putrefação e rumo ao sec. XII em que vivemos. Não arrisco dizer o que nos aguarda, mas sei que toda esperança trata-se de uma decepção que ainda não foi revelada.

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Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM