Bela, recatada e ‘do lar’… U-hum, tá!

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
5 min readApr 20, 2016
Casal Michel e Marcela Temer na posse do 2º mandato de Dilma | Imagem: O Dia — IG

Não, você não acordou em 1950. Acordou em abril de 2016 e recebeu em sua casa um veículo de grande circulação nacional, formador de opinião, fazendo apologia às características da mulher feliz, fútil, submissa, jovem, discreta, linda e ciente de suas obrigações de cuidadora do lar, da caverna. O capital político angariado nessa fábrica de perfil nos coloca diretamente ao contraponto que requer um bravo, firme e viril homem buscando conquistar territórios, nações e derrubar inimigos a favor do bem, da justiça e da virtude.

“Marcela Temer é uma mulher de sorte. Michel Temer, seu marido há treze anos, continua a lhe dar provas de que a paixão não arrefeceu com o tempo nem com a convulsão política que vive o país — e em cujo epicentro ele mesmo se encontra. (Veja, 18/04/2016).

A que serve tudo isso? Ao machismo? Com certeza. Mas antes disso, o machismo serve à manutenção e a reprodução de uma ordem que vem sendo questionada já há um bom tempo e luta desesperadamente para se restabelecer, capitaneada por um hibridismo que vai desde o recrudescimento de princípios fundamentalistas religiosos até a apologia ao período mais negro de nossa história: a ditadura militar.

Alinhado com o espetáculo dantesco da votação do último dia 17/04, Temer sabe que 10 entre 10 parlamentares do baixo clero citou a família como motivação principal para seu voto. Mesmo que seja algo extremamente hipócrita e que indica muito mais o caráter personalista de fazer política do que seu caráter social (principalmente para aqueles que respondem algum tipo de processo — cerca de 40%), ao menos no discurso é importante que seja construída uma confiança sobre o futuro comandante da nação brasileira.

Mas, assim como para boa parte dos deputados a usurpação dos recursos públicos é feita pensando em sua família e em Deus, ao invés de, pensando no bem de todas as famílias, lutarem para a formulação de Leis que beneficiem a sociedade brasileira, é importante que eles se vejam identificados com o futuro mandatário do Executivo e o apoiem.

Como diz a filósofa Marcia Tiburi o que está em jogo é ‘parecer ser’ e não ‘ser’. O que importa é que uma mulher pareça honesta, mesmo que não o seja. Ao homem é permitido que ele cometa excessos em nome de um ‘bem maior’, em nome de ‘seus princípios’ (que, obviamente, sempre está alinhado a princípios universais). Aos homens é permitido ser um assassino torturador desde que seus atos sejam justificados pelo delírio de impedir um mal maior à nação por ocasião da guerrilha urbana proposta por movimentos contra a ditadura. Mas à mulher não é possível aceitar nenhum deslize. Ela não pode pensar por si mesma e também interpretar a história e se posicionar diante dela com base em princípios que lhe direcionem as ações. Seu erro jamais será seguir um homem que tenha errado, mas sim ser ela mesma, pensar por si mesma e tomar as decisões que melhor lhe convir. Por isso o “tchau querida” e o “viva Ustra” convivendo tão simbioticamente em nosso parlamento. Emblemático e triste. À mulher, resta-lhe parecer honesta. Não por ela. Mas pelo homem cuja reputação é construída no potencial social que a mulher representa para ele. Afinal é sua função e deve se submeter a ela sem grande alarde, discreta, recatada, bela, submissa e feliz.

Estamos diante de um momento muito delicado no país e arrisco a dizer no mundo, apesar de Bernie Sanders nos EUA. A crise irá se aprofundar porque o sistema está em iminente colapso. Não há naqueles inseridos em sua reprodução e manutenção a mínima noção de que o sistema, por si só, decreta sua própria destruição a partir de sua lógica e mecanismo de funcionamento. Para esses o mal é sempre externo, sempre diabólico e o que se acena para a reversão dessa situação é a busca por formas anteriores que o fizeram prosperar. Essas formas nos remetem a um passado histórico onde a ordenação social controlava efetivamente os corpos e modos de ser para a reprodução do sistema. Por isso os discursos, mesmo que hipócritas (em sua maioria), voltam-se à religião questionando a igualdade enquanto princípio fundamental e tem-se os ideais conservadores cada vez mais em voga, apesar de estarem sendo propagados, principalmente, por liberais.

Diante desse cenário urge que o patriarcalismo seja constantemente denunciado em sua podridão intrínseca, retirando liberdades, revogando direitos, controlando corpos e construindo subjetividades autoritárias e condescendentes com a barbárie. Como explicar as publicações recorrentes desqualificando Dilma, sua sanidade, atribuindo-lhe histeria e até falta de sexo, e, ao mesmo tempo, a exaltação da vice-primeira dama para aumentar o capital político de Temer através de uma imagem de recato, passiva, serena? Fala-se sempre sobre as mulheres dos homens, enquanto uma mulher, nela mesma, é sempre a louca, a histérica, a emocional, a desequilibrada.

Li recentemente um ótimo texto de Pedro Doria que questiona a palavra Golpe para o que está ocorrendo. No entanto, podemos olhar esse termo fora de seu caráter estritamente político e analisá-lo sob seu aspecto cultural ou social. O Golpe está ocorrendo enquanto uma falcatrua, engodo, enganação, encobrimento, farsa; uma dissimulação com base na fabricação de verdades que favorecem uma certa classe que comanda o país e precisa ter em mãos,mais uma vez, os destinos da nação. Como disse Pedro, tudo dentro da legalidade, mas ainda assim um Golpe.

O Golpe não foi dado dia 17/04/2016. Ele vem sendo sucessivamente desferido e praticado há um bom tempo e continua em pleno curso. Enquanto nos perdemos em polarização partidárias, ele está sendo dado, com direito a ‘malvados favoritos’ como Cunha, Temer, Bolsonaro e et caterva.

Gilberto Miranda Junior é licenciado em filosofia pelo Centro Universitário Claretiano, estudou ciências econômicas na Universidade Guarulhos (UnG) e é membro pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia (CEFIL), ligado à Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

Participa do Círculo de Polinização do RAIZ Movimento Cidadanista, é editor do Zine Filosofando na Penumbra e escreve para as revista Maquiavel, TrendR e Portal Literativo.

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Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM