Ceticismo e Ideologia

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
6 min readMar 21, 2016
Print do Vídeo “Think”

Eu me considero indefectivelmente um cético. Meu ceticismo, assumo, é muito mais pirrônico do que, metafisicamente, materialista ou naturalista, digamos assim. Isso não me coloca entre teístas ou qualquer tipo de pensador que espera encontrar algum tipo de teleologia na natureza. Meu ceticismo, digamos, tem como principal característica o que Pirro legou ao pensamento humano e definiu sob o nome de Epokhé. Talvez seja por isso que, além de cético, situo-me também na Fenomenologia.

É preciso pontuar, no entanto, que mesmo enquanto cético pirrônico ou fenomenólogo, o que está em jogo não é uma filiação, nem tampouco uma visão metafísica do mundo, mas, sobretudo, uma heurística que penso ser virtuosa epistemicamente e me possibilita potencialmente uma crítica radical muito mais efetiva do que tenho tido a oportunidade de presenciar. Portanto, heuristicamente, não me preocupa a verdade, embora o nome do que exerço ao escrever denote “amor à verdade” (Filosofia). E talvez, a maior prova de amor à verdade seja deixá-la revelar-se ao apartar de nós o que é, evidentemente, mentira ou falsidade. Digamos que, além de pirrônico, eu seja um tanto popperiano nessa minha maneira de pensar ao trocar uma falsa segurança absoluta pelo critério de verossimilhança.

Logo, a meu ver, todo método que pretende chegar a uma verdade deva ser colocado em suspeição. Esse tipo de ceticismo é distinto do ceticismo que procura avidamente uma verdade e se preocupa com a correção absoluta de um método capaz disso. Este último tem resquícios na Academia platônica e é levado a cabo na dúvida metódica de Descartes, enquanto aquele que professo tem foco mais na crítica epistemológica e leva em conta todas as movimentações humanas em torno de como construímos nossas seguranças naquilo que dizemos sobre o mundo. Portanto, embora me apoie fundamentalmente em Pirro, meu pensamento passa por Hume e pelo criticismo kantiano, abarcando também o anti-realismo que, diga-se, não nega a realidade, mas suspende juízo sobre a efetividade da crença de que teríamos acesso imediato e compreensível da realidade.

Em termos de crítica e da busca de uma verossimilhança que explique a realidade, essas distinções fazem total diferença, tanto na forma como no resultado.

Estou dizendo tudo isso porque como frequentador de grupos céticos de discussão e estudo, compartilharam comigo o vídeo que mostro abaixo… Vamos assisti-lo:

Fica claro que esse vídeo visa a uma crítica social que nos indica pelo menos dois aspectos fundamentais em sua mensagem:

1 — É um mal para o ser humano e para coletividade fiar-se à palavra de líderes ou discursos em que esteja em jogo somente sua autoridade e não a reflexão de um sujeito preocupado em entender a realidade;

2 — Abrir mão de sua autonomia para fiar-se heteronomicamente a uma ideologia qualquer traz como consequencia inelutável a destruição mútua das pessoas, seja em termos físicos como psicosociais.

São duas verdades aparentes insofismáveis, confesso. Mas superficiais. Vamos a outro vídeo que no mesmo post foi compartilhado e que se aprofunda mais na ideia que esse primeiro vídeo apresenta:

Neste vídeo chamado “Think” (Pense), a mensagem centra-se na ideia de que a realidade encontra-se em um local específico e que todos os caminhos discursivos que pressupõe que abramos mão de pensar e questionar não nos levariam a esse local. Os caminhos apresentados são o religioso, o autoritarismo e o político. Nenhum deles, embora se dissessem aptos ou detentores do ‘método’ para entrar na realidade logrou entrar. Ao parar de procurar caminhos heteronômicos e se prestar a pensar por si mesmo, a personagem da animação percebe como entrar e o consegue, abrindo-se um novo mundo mais colorido, organizado, etc…

Ambos os vídeos e a campanha em geral que as comunidades céticas tem feito trazem como mote os princípios iluministas de autonomia do sujeito em relação a emancipação humana de toda e qualquer autoridade que afirme e imponha caminhos que levem a uma percepção da realidade. Muito legal, mas qual o problema?

O primeiro problema é que subjacente à ideia de autonomia de nossa razão, há uma antropologia e uma metafísica que pressupõe que nossa capacidade racional nos habilite não só a uma percepção privilegiada da realidade concreta em si mesma, sem mediação, como também que o processo racional que nos leva a essa percepção e conhecimento é uma espécie de holograma de uma ratio universal. Ou seja, nossa mente não sõ age e funciona dentro de uma lógica similar ao próprio universo, como tem autoconsciência disso e pode arbitrar e deliberar a favor de nossas intenções.

O segundo problema é que as asserções que subjazem à ideia de autonomia de nossa razão é algo irracional, um artigo de fé, que insistimos em não enfrentar tomando-a como um axioma.

O terceiro problema é que ao afirmar a existência dos dois primeiros problemas logo concorrem a nos acusar de defendermos estados totalitários, políticas enviesadas e/ou a religião, em uma clara falácia de espatalho para não enfrentarem os problemas colocados.

Não irei aqui oferecer respostas a esses problemas. Como eu disse, meu ceticismo é crítico, pirrônico e femonenolígico, e não positivista. Ao suspender meu juízo sobre os problemas que aponto, desobrigo-me de propor uma solução, até porque seria contraditório desacreditar nessa capacidade de autonomia propagada e usar de sua suposição para logo fazer o mesmo.

No entanto, essas crenças metafísicas por trás desse ceticismo naturalista tem como principal problema, justamente, a naturalização de uma situação presente e a recusa de entender as condições históricas pelas quais ela se deu. Ao menos como condição históricas e não irresistivelmente naturais. Esse tipo de coisa não só congela o presente como um dado também metafísico que condiciona a realidade superficial e mediada que vivemos, como também desconsidera que ele se fez por forças naturais que não cabem a nós, seres também naturais, questionarmos.

Assistindo aos vídeos, fica claro que todo problema da realidade se reduz à razão e ao desprezo à ideologia. Mas vai falar para um cético naturalista que essa prevalência da razão e a crença na autonomia do sujeito do conhecimento é uma construção histórica sujeita a interesses heteronômicos que ele, desavisadamente, não considera como variáveis que compõem todo o contexto que ele analisa?

Esse, talvez, de todos os problemas que enumerei, é o mais complexo. Não está no ceticismo naturalista sua solução, mas em algo que é rejeitado sumariamente por ele: a cultura e a dimensão social e histórica que compõe, inclusive, a visão cética naturalista.

Pois se fosse eu a fazer os filmes que assistimos, o subjetivismo autonomista iluminista estaria ao mesmo pé da religião, do político e do poder estatal, mascarando a realidade ao mesmo tempo que promete nosso acesso privilegiado a ela. Desesperador? Decerto…

É inescapável que, para entender os motivos de todas essas coisas estarem no mesmo patamar, seja preciso compreender de que forma nossa subjetividade é construída socialmente a partir das relações metabólicas e existenciais que estabelecemos no e com o mundo a partir de nosso sistema de produção e estilo de vida. Aí está a origem da grande Aletheia que determina a própria tecitura do real, a forma como validamos nosso conhecimento sobre ela e de que forma nos definimos antropologicamente. Porém, para isso, uma pitada de anti-realismo é condição sine qua non, o que nos leva à hermenêutica e não ao naturalismo.

Palavras de Habermas:

“A realidade constitui-se ma moldura de uma forma vital exercitada por grupos que se comunicam e organizada nos termos da linguagem ordinária. Nesse sentido é real aquilo que pode ser experimentado de acordo com a interpretação de uma simbólica vigente. Nessa medida podemos conceber a realidade sob o ponto de vista da manipulação técnica possível, e apreender a experiência operacional correspondente como sendo um caso limite.” (HABERMAS, J. Conhecimento e Interesse. Zahar Editora. Rio de Janeiro, 1982. p. 214)

Há de se cultivar o ceticismo quanto a necessidade de perda de alguns vícios filosóficos que alimentamos: o idealismo.

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Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM