Emancipação e o Cinismo

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
8 min readMar 29, 2016

Ou outros aspectos do Binarismo e da Falsa Simetria.

Em meu texto “Binarismo e Falsa Simetria” quis problematizar brevemente o recrudescimento da intolerância e do proto-fascismo nos dias atuais, mas além de ter sido muito breve, fiz algumas observações que mereciam ser mais bem aprofundadas.

A partir do momento em que adentramos uma época a ser quase chamada de pós-ideológica, a emancipação humana precisa ser repensada ou, no mínimo, recolocada historicamente. O que prevalece, ao que tudo indica, é um cinismo compulsório que emerge da consciência de que a exploração é dado inescapável inerente à existência humana. Sendo assim, toda luta contra a exploração é vista como uma luta para mudanças de lado na exploração. A emancipação como conceito está caindo em desuso e é preciso revitalizá-la.

Do fato de não mais contarmos com meta-narrativas filosóficas nem tampouco metafísico-teológicas, não se segue que isso se deu especificamente para o mascaramento e/ou naturalização da dominação, nem tampouco da legitimação das instituições sociais a serviço da hegemonia ideológica funcional do sistema. As coisas, pelo que podemos apreender, dá-se de maneira complexa e não-linear, o que equivale a dizer que se tratam de fenômenos correlacionados, mas não necessariamente com uma ligação causal estrita.

Talvez seja esse o problema de setores da esquerda em aceitar a pós-modernidade, o multiculturalismo e a luta identitária, quase fazendo ecos com a direita nostálgica do absolutismo ideológico aristocrático. Penso que se trata de uma associação causal indevida, ao menos até onde se possa demonstrar alguma causalidade nesses fenômenos contíguos. Talvez, ainda, seja porque o ceticismo sobre a relação de causalidade entre eventos contíguos tenha vindo de um liberal confesso, David Hume (amigo pessoal de Adam Smith).

A questão, penso, centra-se no fato de que hoje não precisamos de uma nova utopia para querer nos emancipar. A emancipação não precisa ser “para alguma coisa”. Ela seria a própria “coisa” a ser realizada. O que virá depois dela será construção multicultural para além da mera tolerância à diversidade, mas fruto da própria diversidade. Sem ser assim, cairemos na tutela de partidos, messias ou agremiações suspeitas, mas nunca na construção histórica de nossa própria autonomia.

Outras questões que se abrem a partir disso são: o ser humano quer emancipar-se? E o que significaria emancipar-se? Por que seria necessária a emancipação? Quais as condições para que a emancipação se volte como benefício à vida humana e não como mais um dever-ser que, em algum momento, servirá só a alguns em detrimento de todos? Por que, afinal, a emancipação de um grupo é vista, invariavelmente, como uma inversão da dominação e não pelo que é, de fato, superação do binarismo hierárquico?

Obviamente essas questões não serão respondidas nesse texto, mas podemos fazer algumas reflexões e provocações nesse sentido para que os leitores reflitam e o debate se amplie.

O que vem a ser, efetivamente, emancipação? Mais uma vez, não se trata aqui de nenhum tipo de messianismo ou teoria escatológica de salvação, mas, sobretudo, permitir ao homem a prerrogativa de se responsabilizar por sua construção na história, ou seja, seu pleno exercício da cidadania. Antes disso, talvez, seja necessário trazer ao homem a possibilidade dessa construção histórica. Mas essa questão não será resolvida simplesmente descrevendo um dever-ser, mas, sobretudo, inquirindo sobre o ser do homem dentro de uma analítica existencial que envolva uma ontologia, uma gnosiologia e sua inserção na história enquanto antropologia.

Esses são os problemas teóricos que poderão dar suporte a uma práxis emancipatória e que precisam ser enfrentados por aqueles que vislumbram o esgotamento de uma sociabilidade construída para a realização da plena liberdade de uns em detrimento de todos os outros que lhes servem como meios. Não é possível falar em emancipação se não se problematiza a emancipação da própria humanidade. Emancipar algum grupo identitário pode funcionar como efeito cascata, mas não emancipará a humanidade.

Mas… O homem quer emancipar-se? Não há dúvidas que o processo civilizatório obrigou o homem a alienar-se a favor da convivência coletiva. Algum grau de submissão de sua vontade deve ser tributada à possibilidade de uma vida comum. Porém, tanto mais saudável será essa alienação, quanto for factível o benefício advindo dela. Dentro da necessidade civilizatória de submeter-se ao bem estar coletivo, alguns valores foram estabelecidos de forma a constituir uma harmonia das relações sociais. Porém não parece que em algum momento houve algum tipo de pacto social como sempre quiseram entender os contratualistas. Em todos os momentos da história sempre aquele que deteve em mãos o controle dos meios de produção é quem deu as cartas, até porque para ter esse controle, invariavelmente, valeu-se da força.

Hoje a manutenção do controle dos meios de produção na iniciativa privada, mascarado pelo ideário de propriedade privada e livre iniciativa, tem no Estado Nacional sua mais alta expressão, alicerçado nas forças repressivas a seu encargo e no aparelho coercitivo e jurídico que estabelecem a estabilidade numa situação de desequilíbrio social compulsório. Logo, toda a estrutura que organiza e dá sentido à sociedade ocidental tem como princípios os valores das classes que, ao prevalecerem por força de seu poderio, submeteram a totalidade social a seus valores em benefício próprio. Portanto, por mais que fragmentemos as frentes de dominação que caracterizam a forma como nossa sociedade foi organizada, sempre estaremos falando de um sistema de dominação e controle dentro de uma totalidade social.

Se hoje, a sociedade burguesa discute o tamanho do Estado Nacional na defesa de seus interesses (os Desenvolvimentistas defendem Estado maiores e os Liberais defendem Estados mínimos), a esquerda deveria se alijar dessa discussão e problematizar a superação do Estado Burguês e seu aparato coercitivo jurídico que tira a liberdade de escolha em uma sociedade livre, emancipada, cuja exploração do trabalho social para benefício privado seja abolida. Ao mesmo tempo em que a esquerda, via pragmatismo, esquece-se do conceito de superação e assiste a adesão das lutas identitárias diminuir. Sem autocrítica, lança mão de ataques derrogatórios muitas vezes covardes contra elas por se focarem nas relações de domínio imediatas que sofrem. Isso acaba ajudando a criar e a manter a estapafúrdia ideia de que a própria esquerda faça parte de um polo oposto e simétrico à direita.

Mas, obviamente, o problema é a versão da direita sobre tudo isso. É dela a origem da ideia de que não existe superação e que qualquer ideia emancipatória se reduz a uma troca de dominação. Seja por uma interpretação enviesada do conceito de lutas de classe, seja porque, de fato, a direita parte da ideia da naturalização praxeológica das condições em que a sociedade se organiza, não faz sentido para ela a ideia de superação. O mundo, para a direita, funciona e tem sua condição de possibilidade a partir de seus interesses e qualquer ideia que vá, a princípio, contra esses interesses, ela é rival, jamais de superação, mas de inversão de valores. Sempre que há uma situação em que se propõe uma perspectiva de ultrapassamento de um padrão ou status, em geral, criamos uma falsa dicotomia. Essa falsa dicotomia cria equívocos que fazem perder toda a funcionalidade ou efetividade da perspectiva trazida. Não raro, obviamente, essa falsa dicotomia é intencional e tem como principal função um espantalho bem ao gosto dos pseudo-argumentos da direita.

É preciso mais do que nunca recolocar a emancipação como valor para além da lógica de dominação. Para isso, abaixo, faço algumas considerações no que entendo se constituir no Binarismo e Falsa Simetria que mencionei de passagem no texto referenciado:

1) Machismo x Feminismo: o machismo é um sentimento e uma prática estrutural que se dá através de um binarismo de gênero que hierarquiza um gênero em relação ao outro. Sua existência, portanto, cria uma dicotomia. O feminismo, por sua vez é uma reação ao machismo e a toda estrutura que o possibilita. Ou seja, é a superação do binarismo e, consequentemente, da dicotomia que a hierarquização de gêneros cria. No entanto o machismo, como é algo estrutural, tradicional e perfaz o padrão de nossa sociedade, encara o feminismo como um oposto equivalente e não como sua superação. Isso faz com que o feminismo nunca se realize plenamente, mesmo sendo um ultrapassamento. É criada uma falsa dicotomia e criado equívocos intransponíveis que se reproduzem independente da vontade das pessoas. O feminismo nunca foi um equivalente oposto ao machismo. Ele não quer o contrário do que o machismo é. Ele se propõe a superar o machismo e, mais especificamente, revogar as dicotomias de gêneros.

2) Racismo Reverso: assim como o machismo, o racismo é um sentimento e uma prática estrutural que se dá através da polarização de raças e a prevalência social de uma etnia sobre a outra. Quando o negro reage, seja individualmente ou através dos coletivos negros, assistimos muitos brancos reclamarem que estão sofrendo racismo reverso. A luta contra o racismo não é a luta pela inversão de uma raça de dominada para dominante, é a superação do binarismo hierárquico que ele cria. Nenhuma reação de um oprimido pode ser vista como uma opressão, pois a opressão não é de um sujeito contra outro, mas de uma estrutura social que privilegia um tipo de sujeito e penaliza compulsoriamente outro tipo de sujeito.

3) Esquerda x Direita: assim como o feminismo e a luta contra o racismo, a esquerda é um espectro político-ideológico que não é o equivalente oposto da direita. A direita cria ideologicamente essa dicotomia usando recursos retóricos e, por exemplo, aqui no Brasil, reduzindo toda a esquerda ao PT. Ou seja, ela transforma a polarização partidária numa falsa dicotomia entre Esquerda x Direita. A Direita vive na afirmação compulsória do binarismo hierárquico entre aqueles que detêm os bens de produção e aqueles que só possuem sua força de trabalho (burguesia x proletário). A esquerda não quer a inversão entre burgueses e trabalhadores, mas a superação dessa dicotomia e a eliminação das classes. Não irei entrar nos méritos se ela conseguiu isso historicamente ou se as soluções que conseguiu dar foram satisfatórias (para mim não foram).

A questão aqui é entendermos que toda vez que um padrão majoritário enfrenta uma proposta de superação das dicotomias que cria, a proposta é dicotomizada falsamente com e pelo padrão, vitimizando falsamente o status quo. É uma forma de esvaziar o conteúdo efetivo de transformação e, em geral dá certo. Por isso, sob um recrudescimento da luta emancipatória acontecem dois fenômenos emblemáticos: o proto-fascimo se instala nas camadas médias da população e cresce, exponencialmente, os defensores da neutralidade passiva.

Penso que, mais do que nunca, esquerda e movimentos identitários precisem se unir, melhorarem-se mutuamente, pois há um inimigo comum que se beneficia em muito das falsas simetrias e binarismo que cria. Mas não se trata de confronto, fato que só reforçaria a própria falsa simetria, mas de esclarecimento, diálogo e manifestações que estejam acima desse ódio polarizado e insano que o proto-fascismo protagoniza atualmente nas ruas e possa, indefectivelmente, esclarecer essa massa amorfa de neutros insípidos que, desavisadamente, reforça a opressão que ele próprio gostaria de se livrar.

Emancipar-se não é para os fracos e temerosos, nem neutros e passivos. Esses, sempre lutarão para a manutenção do falso conforto de serem dominados aguardando instruções, por mais desumanizador que isso seja.

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Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM