Linda, porém comunista?

Resposta a Paulo Ghiraldelli sobre Manuela D’Ávila

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
10 min readJun 29, 2018

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Foto: Marcelo Bertani/Assembleia do RS

No último dia 27/06/2018 o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr publicou em sua página um texto acerca da Manuela D’Ávila intitulado: Manuela D’Ávila, linda porém comunista (clique no título para abri-lo). Ao ver o título, antes de torcer o nariz, imaginei que se tratava apenas de um título sensacionalista para chamar a atenção. Ghiraldelli, não raro, faz isso. Faz uma provocação no título e depois desconstrói trazendo argumentos que ora o explica, ora o refuta. É um recurso interessante, mas não sei até que ponto é eficiente, já que na internet as pessoas leem o título e já saem com opinião formada sem sequer saber o conteúdo. Ser contrário e problematizar o título do texto era o que eu esperava. Aliás, como foi logo após uma interação que tivemos em uma publicação minha com um agradecimento à Manuela (pela recusa heroica dela ser silenciada pela bancada machista do Roda Viva) imaginei que o texto fosse problematizar este episódio lamentável. Mas não.

O fardo e as mulheres…

Logo de início Paulo argumenta que as mulheres adquiriram uma aptidão fantástica para o sofrimento. Obviamente que, sendo verdade, trata-se de uma questão histórica e fruto da mesma estrutura que possibilitou a covardia que vimos no programa. Pareceu-me que Paulo quase cedera a uma espécie de essencialismo, já que ponderou que essa predisposição talvez tenha vindo por conta das dores do parto. Paulo não diz, exatamente, que ter filhos é um fardo, mas coloca o parto como responsável pela resiliência feminina a todo tipo de fardo. É possível porém admitir que ele tenha certa razão quando diz: “O fato é que se há um fardo a ser carregado, seja ele qual for, não espere que um homem o assuma se há uma mulher por perto. É um tipo de lei da gravitação universal” (G. Jr., PAULO. 2018). Este é um fato empírico, presente nas médias populacionais, e sua origem parece ser, majoritariamente sócio-cultural, embora carregue também questões biológicas inescapáveis, o que não cria nenhum tipo de determinismo.

Nada indica, a não ser um juízo apodítico não autorizado, que as dores no parto tenham dotado as mulheres dessa aptidão para o sofrimento. Aliás, o sistema patriarcal que grassa em nossa história desde a revolução neolítica, notabiliza-se pelo controle dos corpos através de juízos apodíticos e coerções violentas. Parece-me haver uma clara e irrefletida inversão causal nessa afirmação, desprezando tanto os homens capazes do martírio quanto mulheres que lutam por emancipação de todos os apoditismos sobre sua existência. Não passou pelo raciocínio do Professor Ghiraldelli, por exemplo, que pelo uso da força e por ter prevalecido entre poucos homens, o egoísmo, o individualismo e a capacidade de subjugo do outro tenham sido forçados para que as mulheres aguentassem os piores sofrimentos em troca da permissão de existir. Sinceramente, perto do que sofre a mulher pelo simples fato de ser mulher, com o aparato hormonal que a possibilita ser mãe, a dor do parto é um de seus menores problemas.

Mesmo que se queira alegar a questão biológica no comportamento atribuído aos gêneros, há uma falácia determinista que despreza um fato fundamental: fosse a biologia determinista e sabendo que quem procria são heterossexuais, como ainda nasceriam homossexuais no mundo? A natureza está pouco se lixando para o dogmatismo. Ela produz diversidade mesmo que o contexto nos seduza a enxergar o mundo de maneira determinística. Os moralistas verão a diversidade como um erro, um desvio. Os realistas (como Paulo se reivindica) deveriam ver como é: fatos da realidade, mulheres diversas e não corpos adaptados (adestrados seria melhor) para sofrer e carregar fardos. Mas não veem. Se recusam e se seduzem a determinar as coisas por uma causalidade linear estrita e limitada que sempre desemboca em alguma espécie de moralização disfarçada.

A natureza não está nem aí com médias e incidências estatísticas. Mesmo sabendo que as configurações médias genéticas, epigenéticas e cerebrais dotam os gêneros de certas preferências, não há determinismo que obrigue mulheres, por exemplo, a reconhecer melhor rostos ou escolher profissões que privilegiem a interação humana. Da mesma forma o contrário: não há determinismo que obrigue homens, por exemplo, a se atrair mais por mecanismos e objetos ou escolher profissões que privilegiem cálculos e manuseio. Há comprovada relevância estatística nessas características, detectadas em bebês antes mesmo de suas socializações, mas sempre haverão as meninas que serão engenheiras e meninos que serão enfermeiros. A política social da Noruega, pródiga em promover a igualdade de gênero através de cotas, percebeu que destinar 50% das vagas de engenharia para as mulheres e 50% das vagas de enfermagem para os homens não promoveu a igualdade desejada. Pode não ser apenas uma questão de aprendizado as mulheres (no geral — leia-se: aquelas dentro de uma média estatística) inclinarem-se mais às atividades que promovam interação com pessoas. Mas reduzi-las a isso é cercear, determinar, definir (dar fim, funcionalidade ou finalidade) àquelas que podem ser engenheiras melhores do que qualquer homem. Acusam a esquerda de fazer “engenharia social”. Não há engenharia mais absurda e despótica que os papéis de gênero impostos pela religião e pelo patriarcado conservador que, dissimuladamente, vemos nas mentes mais progressistas dos homens.

É notório que quanto mais a educação e a socialização das crianças não se filiem a estereótipos de gênero de fundo religioso ou moralista, tanto mais teremos igualdade também nas preferências entre homens e mulheres, por mais que alguma inclinação prevaleça nas médias. Concomitante, com certeza, teremos menos frustrações, depressões e suicídios por inadequações inaceitáveis. Ou seja, menos fardos a serem assumidos por quem quer que seja. Infelizmente, para a maioria, vivemos ainda sob o domínio do modelo e não do fenômeno: a desgraça do apoditismo não autorizado.

Paulo considera o comunismo um fardo e como mulheres possuem naturalmente aptidão por carregar fardos, logo, o PC do B tornou-se um partido de mulheres.

Embora repleto de ressalvas, cheguei a imaginar que o argumento de Ghiraldelli, ainda assim, seria usado para parabenizar Manuela por sua resistência e equilíbrio diante das provocações e interrupções constantes dos homens presentes, mas no segundo parágrafo do texto revelou-se sua intenção; inclusive fornecendo um dado que a corroborasse. Em suma: Paulo considera o comunismo um fardo e como mulheres possuem naturalmente aptidão por carregar fardos, logo, o PC do B tornou-se um partido de mulheres. Antes, porém, de tentar entender porque, para Paulo, o comunismo teria se tornado um fardo, fui olhar melhor o fato concreto referido na conclusão do raciocínio. O PC do B não é um partido só de mulheres. Aliás, tem menos mulheres, tanto numericamente quanto percentualmente, pasmem, do que o MDB e em igual proporção ao PSDB.

Fonte: Nexo Jornal — Gráfico do dia 02/04/2018

Segundo o TSE, as 35 legendas que fazem parte da estrutura partidária do país abrigam 16 milhões de filiados, sendo 55,6% (8,9 milhões) homens e 44,4% (7,1 milhões) mulheres. Somente dois partidos se enquadram no que Ghiraldelli afirmou: o PMB e o PRB.

Segundo o TSE, em maio de 2018, o PC do B possuía 396.974 filiados, sendo 1.159 (0,3%) sem identificação de gênero, 177.525 (44,7%) do sexo feminino e 218.290 (55%) do sexo masculino. Ou seja, ligeiramente abaixo da média, mas longe de concordar com a premissa de Paulo.

PSDB tem em seus quadros 649 mil mulheres, o que representa 44,6% o total de filiados. O MDB, por sua vez, cujo ministério de Temer representou, indefectivelmente, homens, brancos, velhos e heterossexuais (ao menos declarados) possuía 1 milhão de mulheres em maio de 2.018, que representavam 45% do total de filiados, ou seja, mais que PC do B e PSDB juntos.

Se a conclusão a que Ghiraldelli chegou não corresponde à realidade, suas premissas (ou alguma delas) estão erradas. Ou as mulheres não possuem aptidão para carregar fardos ou o comunismo não é um fardo. Quero crer que tenha demonstrado não fazer sentido a ideia de que carregar fardo seja uma aptidão feminina, embora elas sejam obrigadas a carregar. Resta-nos ponderar acerca do fardo que seria ser comunista segundo Ghiraldelli.

O fardo nosso de cada dia…

Para entender melhor o fardo que Ghiraldelli atribui ao comunismo (ou ao comunista no Brasil ou no mundo), é preciso deixar explícito que no Brasil (quiça no mundo) há um irrevogável fardo em sermos negros, mulheres, LGBTs e pobres. Quando essas quatro categorias sociais se juntam em uma única criatura (mulher negra pobre lésbica — Marielle Presente!) o fardo se torna quase que inimaginável; em que pese o fato que para além do fardo direto, ainda são obrigadas, recorrentemente, a enterrar seus filhos executados pelo genocídio higienista diário que a periferia das cidades sofrem pelo Estado. Entrando nos meandros das causas mais profundas desse fardo horrendo, percebemos que estava lá, o tempo todo, o raciocínio apodítico moralista que subalternalizou historicamente pobres, mulheres, LGBTs e negros. A desapropriação das terras camponesas que o Estado inglês perpetrou para a criação da Indústria Têxtil na Revolução Industrial — criando um exército de despossuídos invadindo a cidade e condenados a uma pobreza endêmica que garantisse a aceitação de qualquer coisa para obter um trabalho — fez torcer o nariz da burguesia nascente e culpá-los por sua própria situação. A utilização sui generis de mão de obra negra escrava com o aval da Igreja, que determinava negros como sub-humanos, garantiu em grande medida a ausência de incentivo, direitos e acesso de forma compulsória a negros e pardos. Antes de tudo isso, a decretada incapacidade e submissão necessária das mulheres, seja pela falsa exaltação de suas características fabricadas pela necessidade do homem, seja para a condenação sumária contra todas as rebeldes, soma-se o fato da criminalização da homossexualidade ou sua proscrição e invisibilidade social. Ou seja, um ideário que culpa o pobre pela pobreza, decreta o negro como indesejável, invisibiliza homossexuais e incapacita as mulheres, formou desde sempre as condições pelas quais mulheres, negros, gays e pobres (tanto mais se for mulher negra pobre e gay) vivem hoje.

Portanto, o fardo que essas categorias sociais carregam até hoje não tem a ver com aptidão, vocação ou mesmo qualquer aspecto negativo que os façam merecer tais condições. Simplesmente um ideário constitutivo de nossa sociedade os relegaram a um plano do qual suas vidas e as lutas por qualquer dignidade seja um fardo.

O fardo comunista…

E o que comunistas ou o comunismo tem a ver com isso?” — devem estar perguntando alguns e o próprio Paulo Ghiraldelli, caso tenham chegado até aqui. Ora, quanto desse ódio ao comunismo ou a clara ojeriza pela qual Ghiraldelli olha para ele, tem como motivo uma desinformação estratégica direcionada, sistemática e massificada desde o início do século XX e constituiu o ideário de parte da sociedade? O quanto ser comunista não se constitui hoje o mesmo fardo que ser mulher, negro, homossexual e pobre dentro do padrão heteronormativo patriarcal e capitalista de nossa sociedade?

Porém, Paulo Ghiraldelli sabe que nunca houve comunismo no mundo. Sabe que, se tanto, houve estratégias socialistas para se chegar ao comunismo e que, das que existiram, simplesmente prevaleceu a truculência e domínio dos vitoriosos que as implantaram. Não faltaram modelos socialistas distintos cujos proponentes, críticos ao modelo histórico, foram derrotados (Rosa Luxemburgo) ou até mortos (Trotsky). É de uma desonestidade intelectual flagrante assumir as distorções do senso comum em assuntos tão graves dos quais um professor universitário teria a obrigação de esclarecer.

Paulo finge não saber que o próprio capitalismo foi desenvolvido sob várias estratégias que trouxeram genocídios tanto quanto as estratégias socialistas para desenvolver o comunismo. Embora a desinformação compulsória que uma direita xucra promove tente colocar os fascismos e o nazismo como formas de socialismo, Ghiraldelli deveria se fiar na academia (que é seu meio) para desconstruir essa distorção, pois tratam-se, indefectivelmente, de regimes que compuseram a estratégia do capitalismo de se tornar hegemônico no mundo, seja ele de viés nacionalista ou globalista. Se hoje o capitalismo pretende se definir pelo difuso e etéreo “Livre Mercado” (em que pese o fato que nenhum mercado é livre — se fosse, ainda estaríamos empregando crianças de 10 anos para trabalhar 12 horas por dia em fábricas sem nenhum pudor), não há porque não conceder a franca possibilidade de existir socialismos democráticos e até de economia mista.

Se hoje, como afirma Ghiraldelli, “a ordem capitalista trouxe suavização da vida” não foi por outros motivos que pelas lutas socialistas que nos legaram o Estado de Bem Estar Social nas democracias europeias, embora estejam sendo engolidas pelo capitalismo financeiro, esse sim “livre” como querem os ideólogos do Estado Mínimo. O que é preciso ser dito é que o mundo não está mais leve por causa do capitalismo, mas está mais leve APESAR do capitalismo. Da mesma forma que “só um maluco masoquista iria querer assumir o passado do comunismo — com genocídios, totalitarismos de todo tipo, perda de liberdade e poder de consumo, avanço da corrupção em burocracias” — somente um maluco sádico iria querer assumir um mercado absolutamente livre sem Estado ou um Estado Totalitário que controlasse e submetesse seu povo para garantir os ganhos de um capitalismo de compadrio como aqueles que querem intervenção militar no Brasil de agora.

Esse outro lado, desafortunadamente, não existe para Ghiraldelli. E não existe simplesmente porque ele precisa dar razão à sua tese inicial que liga, de maneira um tanto criativa e preconceituosa, uma suposta necessidade da mulher sofrer a um reducionismo frívolo do conceito de comunismo que ele assume dos ideólogos conspiracionistas da direita xucra mundial.

O que fez da Manuela vítima de moleques imbecis no Roda Viva não foi outra coisa que a combinação perfeita daquilo que excluiu, marginalizou e transformou em fardo ser mulher, negro, pobre, gay ou comunista nesse país. Nada de muito novo, ao menos desde Hitler, que só não odiava mais comunistas do que judeus.

Paulo termina seu texto tentando reforçar sua tese de premissas frágeis e equivocadas, esquecendo Flávio Dino, excelente atual Governador do Maranhão, para dizer que há algo na mulher que “agora é o único ser no planeta que ainda é comunista”, citando velhos comunistas homens já mortos. Por fim, desfila um sexismo desnecessário obrigando-se a falar da beleza e dos dotes sexuais das mulheres comunistas, apesar de serem ‘apenas’ mulheres que gostam de sofrer.

De fato, sofrível…

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Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM