O intuitivo, o contra-intuitivo e a naturalização do capitalismo

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
6 min readApr 15, 2016
Bolsa de Valores de Nova York

A Filosofia se apresenta sob vários aspectos como um desencantamento sistemático do mundo, o que equivale a dizer que muitas vezes precisamos nos esforçar para sermos contra-intuitivos ao observarmos um fenômeno, ou seja, procurar sistematicamente separar o fato observado dos valores atribuídos a ele. Isso não significa, no entanto, instrumentalizar os fatos como a ciência foi pródiga em fazer sob o paradigma capitalista. Para a ciência moderna, instrumentalizada pelos interesses do sistema, esse desencantamento não significa a busca da articulação de enunciados acima de valores para descrever um fato, mas sim a descrição dos fatos de forma a garantir sua reprodutibilidade, seu domínio, controle e, sobretudo, sua manipulação a favor do interesse econômico e do mercado. Diferente de, heuristicamente, tentar extrair o fato do emaranhado de valores em que ele se dá enquanto fenômeno, a ciência já direciona a observação sob um determinado valor; seja ele seu próprio método ou seja o retorno previsto em seu potencial tecnológico e comercial.

Nossa intuição, na maioria das vezes, está alinhada com os valores pelos quais enxergamos o mundo. Por isso já dissemos, por exemplo, que a Terra era plana, que a Terra era o centro do Universo ou até que o Sol “nasce” todos os dias girando em torno da Terra. Foi necessário o desencantamento do familiar, como nos ensina Merleau-Ponty, para que pudéssemos direcionar um olhar contra-intuitivo e descobrir novos olhares, novos fatos, e, também, construir novos valores.

Fiz essa introdução para afirmar e assumir que a concepção que naturaliza o capitalismo é algo intuitivo, familiar, mas que não é por isso que deva ser considerada correta, ao menos não por cidadãos que mereçam esse nome e, muito menos por postulantes a Filósofos. Três pontos parecem-me, necessitam ser levados em consideração quando assumimos como nosso esse discurso intuitivo e, desculpe-me, ingênuo:

1º Ponto: Trata-se de um contrassenso considerar como “natural” algo que surge e passa a determinar em feed-back a mentalidade e valores daqueles cuja existência constitui a essência de um fenômeno. Não me consta que o surgimento natural de algo passe a determinar o organismo/espécie que foi origem de seu surgimento. No limite, o fenômeno especializa, modifica e molda sua origem transformando-se em meio, mas não elimina ou transforma em deletéria toda a riqueza e diversidade constituinte do organismo ou espécie em que surgiu, constituindo-se em um fim em si mesmo e direcionando toda a existência da espécie em sua própria função. Pois é isso que o Capitalismo faz: ele recrudesce certas características humanas, dentre as diversas existentes, e o faz em função de si mesmo. É nesse âmbito que entra a Crítica Social da Escola de Frankfurt, que explica a partir desse mesmo ponto os motivos que levaram o projeto Iluminista a fracassar e aprisionar, ao invés de libertar a humanidade;

2º Ponto: É altamente temerário quando fazemos uma extensão de sentido em um conceito de uma área científica natural para explicar a sociedade ou algum fenômeno cultural. Herbert Spencer tentou fazer isso com a Teoria da Seleção Natural de Darwin e inspirou o ideário nazifascista de Hitler em direção a uma doentia “purificação” da raça ariana. O mecanismo que explica o recrudescimento de uma característica em uma espécie que leva ao fenômeno da especiação (surgimento de outra espécie) acontece numa relação complexa entre mudanças filogenéticas passíveis de hereditariedade e pressão ambiental. Não há correlação alguma entre esse fato natural explicado pela Teoria da Evolução das Espécies e o surgimento do sistema de produção capitalista. A única correlação possível é considerar o sistema capitalista como o ambiente cuja pressão esteja selecionando certas características humanas bem semelhantes às características da psicopatia, e criando assim, uma raça de psicopatas individualistas sem o mínimo de empatia e que considera o outro ser humano mero instrumento de uso para o que, ideologicamente, foi determinado como objetivo da espécie: aferir lucro através da competição desenfreada para a venda de mercadorias;

3º Ponto: A competição é o valor eleito pelo ideário capitalista para definir as relações humanas, tanto no âmbito pessoal como profissional, portanto abarcando a totalidade da vida social das pessoas (mesmo que cinicamente tenha incorporado em seu discurso a cooperatividade e o trabalho em equipe). Fazer uma extensão de sentido entre o fato de existir competição no mundo natural e a existência da competição na sociedade é negar a necessidade da própria civilização humana que, para todos os efeitos, obteve sucesso porque foi capaz de se unir e cooperar, amparando-se mutuamente. Em termos usados na Escola de Frankfurt, principalmente por Adorno, podemos considerar esse ideário competitivo como uma Ideologia. Adorno define ideologia como um processo de formação da consciência social e não apenas um conjunto de ideais e representações falsas da realidade como queria Bacon em sua teoria dos ídolos ou os próprios iluministas dedicados a erradicar toda falsa consciência em busca de uma razão neutra e pura:

“A crítica da ideologia totalitária não se reduz a refutar teses que não pretendem, absolutamente, ou que só pretendem como ficções do pensamento, possuir uma autonomia e consistência internas. Será preferível analisar a que configurações psicológicas querem se referir, para servirem-se delas; que disposições desejam incutir nos homens com suas especulações, que são inteiramente distintas do que se apresenta nas declamações oficiais. (…) As modificações antropológicas a que a ideologia totalitária quer corresponder são consequências de transformações na estrutura da sociedade e nisso — e não nos seus enunciados — encontramos a realidade substancial dessas ideologias.” (Adorno e Horkheimer. Temas Básicos de Sociologia. São Paulo, Cultrix, 1973. Pag 192)

As questões centrais, nesse ponto, são: por que na civilização ocidental burguesa a competição se tornou dominante e normativa? Por que, apesar dela estar contida no mundo natural interespécie ou entre espécies, não foi criado valor para a cooperação, para o altruísmo e/ou ajuda mútua, se essas características também fazem parte do mundo natural tanto quanto a competição?

Faz parte da ideologização a naturalização dos produtos espirituais, segundo Adorno, o que fica patente diante do fato de que qualquer outro valor poderia se tornar normativo bastasse uma vontade política ou a manifestação de quem era de interesse. Mas o que ficou foi o valor criado pelos que detinham o poder e a devida justificativa, para seu próprio interesse, a necessidade ideológica da competição como valor normativo social.

Portanto dizer que o capitalismo, enquanto sistema de produção é uma consequência natural da existência humana (ou pior, dizer que sua essência está nessa existência) é, no limite, reduzir o ser humano àqueles que ditaram as regras e formaram a ideologia que domina todo o restante da humanidade. E isso, sem dúvida, parece-me que está totalmente alinhado com a própria ideologia criada para fazer com que o sistema nos torne seus instrumentos de manutenção a-críticos e autômatos.

Gilberto Miranda Junior é licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano, estudou Ciências Econômicas na Universidade Guarulhos (UnG) e é membro pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia (CEFIL), registrado no CNPQ e ligado à Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Participa do Círculo de Polinização do RAIZ Movimento Cidadanista e é editor do Blog Filosofando na Penumbra.

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Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM