O Pensamento de Michael Huemer é Responsável Epistemicamente?

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
6 min readDec 12, 2022
Michael Huemer

Este é um texto resposta ao filósofo Michael Huemer. Faz algum tempo que me deparei com seu texto intitulado “ Is Critical Thinking Epistemically Responsible?” (O Pensamento Crítico é Epistemicamente Responsável?). Enquanto professor e pedagogicamente comprometido em desenvolver o pensamento crítico em meus alunos, quis saber qual seria a resposta. Logo no início ele se posiciona: “No”. Em seguida, como é de se esperar de um filósofo, ele tenta argumentar para justificar sua negativa.

Eu conheço pouco Huemer, mas já tinha lido alguns de seus textos libertarianistas com várias observações superficiais sobre o pensamento marxista e outros tantos defendendo um certo intuicionismo ético, que propõe, em suma, que algumas verdades morais sejam inatas, ou que podem ser conhecidas sem a necessidade de inferências a partir de outras verdades reconhecidas. Mas foi seu texto sobre autoridade política que desnudou para mim certa fragilidade argumentativa nele. No texto, Huemer tenta fazer uma analogia entre um vigilante da vizinhança e o Estado para provar que a legitimidade que se dá ao Estado é da mesma natureza que daríamos a um vigilante que decidisse por conta própria agir de forma coercitiva e violenta para nos fazer pagar por proteção. A diferença é que aceitamos esta coerção do Estado, mas jamais aceitaríamos a do vigilante. Ao que me pareceu, embora eu seja um anti-estatista, Huemer não entende (ou faz uma falsa simetria) acerca da distinção entre uma instituição constitucional e uma pessoa física qualquer.

Embora esta fragilidade tenha me predisposto a olhá-lo com desconfiança, isso não pareceu ter me influenciado na análise que fiz de sua afirmação sobre a irresponsabilidade epistêmica do Pensamento Crítico.

É curioso que foi através do pensamento crítico que sua argumentação se mostrou equivocada, o que tornou necessário distorcer ou redefinir o que é pensamento crítico para que sua crítica se tornasse verdadeira. A disputa, portanto, não se dá na existência ou não de méritos em sua crítica, mas na premissa que ele constrói para embasar o que ele discorda. Ou seja, o Sr. Huemer criou um espantalho para definir pensamento crítico e elabora todo um pensamento para refutar o espantalho que criou.

Mais do que dizer que Pensamento Crítico é epistemicamente irresponsável, Huemer afirma que é também irracional pensar criticamente. Para tanto ele redefine do que se trata quando ele diz “pensamento crítico”:

“Refiro-me a uma coisa específica que os alunos são frequentemente aconselhados a fazer nas aulas de ‘pensamento crítico’: pensar nas questões por si mesmo.”

Este “pensar por si mesmo” para Huemer, necessariamente, exclui confiar em especialistas ou suspender juízos. Isso fica evidente na medida em que ele lista algumas questões e coloca 3 alternativas como abordagem: a) confiar nos especialistas do assunto, b) suspender juízo e c) pensar por você mesmo:

“Ou seja, em vez de confiar nos especialistas, você pode revisar as evidências primárias nas quais os próprios especialistas baseariam seu julgamento e formar uma crença com base em sua avaliação dessas evidências.”

Sem citar quais livros, Huemer afirma que “muitos livros” sobre pensamento crítico orientam os alunos a fazer o “c”, e que isso seria irracional, já que seria melhor fazer “a” ou “b”. Com isso, além de irresponsável criticamente, o pensamento crítico enquanto prática pedagógica é também irracional.

Não pode ser verdadeira uma diferença tão gritante entre o que é Pensamento Crítico no Brasil e nos EUA. Pelo que sei, a própria ideia veio dos EUA e foi aplicada aqui. Estudei em livros traduzidos do inglês para dar aula sobre isso. E não me parecia plausível Huemer ter inventado algo assim só para ter razão, apesar das falácias que eu já tinha lido dele em suas críticas ao sistema de ensino e universidades.

Huemer é professor de Filosofia na cidade de Boulder, na Universidade de Colorado e estava afirmando categoricamente que livros e professores estavam ensinando a seus alunos uma versão de Pensamento Crítico que privilegiava e forçava a opinião de alunos em detrimento de especialistas nas áreas dos assuntos em disputa. Era isso mesmo?

Ademais, ao que tudo indica, Huemer, além de ter criado um espantalho (seja este espantalho inventado ou fruto de generalizações irresponsáveis com base em alguma experiência empírica), estava incorrendo também em uma contradição performativa, na medida em que cometia, desavisadamente, o próprio espantalho que inventou. Com qual base ele poderia afirmar que a prática de ensino de Pensamento Crítico era o que ele afirmava? Não era o fato dele não ter argumentado demonstrando a existência dos livros e da prática que ele alega que torna seu argumento falacioso. Ele poderia não ter demonstrado e ainda estar correto. O fato é que ele não está correto e mente. Senão vejamos…

O professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual da Geórgia, EUA, George Rainbolt possui um artigo acerca do Pensamento Crítico como prática pedagógica e não poderia ser mais distante do que Huemer acredita que seja:

“Nos Estados Unidos, ‘pensamento crítico’’ refere-se a um movimento acadêmico que promove a aquisição de uma habilidade específica e também se refere a esta própria habilidade de avaliar corretamente os argumentos elaborados por outros e de construir argumentos sólidos. O compromisso com o pensamento crítico acarreta basear nossas crenças em bons argumentos”

Ou seja, ao contrário do que Huemer afirma, pensar criticamente não é ser capaz de construir o melhor argumento do mundo sozinho e por si próprio e dispensar todos os outros, mas ser capaz de avaliar as propriedades epistêmicas de diversos argumentos e decidir pelo melhor ou mais virtuoso epistemicamente, além de ser também capaz de argumentar logicamente a favor de sua escolha. Nada tem a ver com dispensar argumentos de especialistas e se imaginar de forma arrogante capaz de, sozinho, construir argumentos melhores que aqueles que já foram construídos. E Rainbolt continua:

“O movimento do pensamento crítico teve origem na insatisfação com a lógica simbólica. Em meados de 1980, a única disciplina de graduação voltada à avaliação de argumentos era o curso de lógica simbólica. (…) Ao final da mesma década, muitos professores acreditavam que as aulas de lógica simbólica não conseguiam habilitar os alunos para avaliar bem os argumentos reais. O movimento do pensamento crítico nasceu com o intuito de corrigir este problema.”

Em minhas aulas, pensamento crítico trata da avaliação de argumentos, suas propriedades, premissas e conclusões. Trata de desenvolver a habilidade de construir (aí sim, por si mesmo) bons argumentos virtuosos epistemicamente com base em evidências disponíveis. É examente isso que estou tentando fazer e, ao que parece, Huemer falha, como tentei demonstrar expondo suas falácias e equívocos.

No caso dele, claramente se vê a motivação ideológica, na medida em que a palavra ‘crítica’ pode nos remeter a pensar que se trata da Teoria Crítca da Escola de Frankfurt. Huemer, que possivelmente pouco leu sobre Adorno, Horkheimer, Marcuse ou Benjamin (seja porque são marxistas ou porque não integram a Filosofia Analítica que ele defende em detrimento da Filosofia Continental), foi movido por suas crenças e convicções prévias. Inclusive, este é um dos alertas que faço a meus alunos: a primeira crítica de um pensamento crítico sempre deve ser acerca de nossos próprios pensamentos e crenças.

Por fim, e faz parte de meu escopo pedagógico, o desdobramento prático e efetivo das aulas de pensamento crítico é a formação, em tese, de pessoas que não se entregarão ao negacionismo, às fakenews e a enganadores que vendem ideologia barata como filosofia, ainda mais com argumentos frágeis e falaciosos. Ser contra isso diz muito mais sobre quem desaprova do que sobre a prátca em si.

Obras Consultadas

HUEMER, Michael. Is Critical Thinking Epistemically Responsible? Substack Fake Nous. Out 2022. https://fakenous.substack.com/p/is-critical-thinking-epistemically — Acesso em 12/12/2022.

RAINBOLT. George. Pensamento Crítico. FUNDAMENTO V. 1, N. 1 -SET.-DEZ. 2010. https://periodicos.ufop.br/fundamento/article/view/2231/1688 — Acesso em 12/12/2022.

Originally published at https://anarquia.substack.com on December 12, 2022.

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Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM