De um post do Whatsapp

A desinformação como arma ideológica

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
6 min readMar 21, 2017

--

Post enviado para o grupo de Whatsapp “Arena Ideológica”

Aquilo que costumo chamar de “Desinformação Estratégica” com fins ideológicos está se propagando em uma velocidade e volume alarmantes por todos os cantos do cyber-espaço. Esse fenômeno acontece bem ao gosto de pensamentos autoritários dissimulados em libertários, já que o uso de propaganda desinformativa maciça se constitui em um aviltamento à liberdade, apesar de ser difundida como exercício da mesma. O que mais incomoda, no entanto, é a quantidade estrondosa de afirmações irresponsáveis ditas com ar de autoridade por gente que sequer sabe o quão raso é seu próprio raciocínio. Por isso apenas seguem gurus e fazem propaganda. Não conseguem articular um pensamento a partir de uma análise lógica do que o outro diz ou dos fatos do cotidiano. Sequer consegue o mínimo de autocrítica sobre o que ele próprio diz. Triste… para dizer o mínimo.

O texto em destaque, de português sofrível (o que não influencia no conteúdo, diga-se), começa fazendo uma acusação de que o governo petista teria declarado que as carnes abatidas e armazenadas em estruturas familiares não eram boas e que deveríamos consumir dos “grandes”. Esquece, porém, que a legislação que regulamenta a inspeção industrial e sanitária de produtos de origem animal data da década de 50, na era Getúlio Vargas, que em seu art. 12 dispõe:

Art. 12. A inspeção industrial e sanitária de produtos de origem animal, a cargo da D.I.P.O.A, abrange:

1 — a higiene geral dos estabelecimentos registrados ou relacionados;

2 — a captação, canalização, depósito, tratamento e distribuição da água de abastecimento bem como a captação, distribuição e escoamento das águas residuais;

3 — o funcionamento dos estabelecimentos;

4 — o exame “ante e post-mortem” dos animais de açougue;

5 — as fases de recebimento, elaboração, manipulação, preparo, acondicionamento, conservação, transporte e depósito, de todos os produtos e subprodutos de origem animal e suas matérias primas, adicionadas ou não de vegetais;

6 — a embalagem e rotulagem de produtos e subprodutos;

7 — a classificação de produtos e subprodutos, de acordo com os tipos e padrões previstos neste Regulamento, em atos complementares e em fórmulas registradas; (Redação dada pelo Decreto nº 8.681 de 2016) (Vigência)

8 — os exames tecnológicos, microbiológicos, histológicos e quimicos das matérias primas e produtos, quando fôr o caso;

9 — os produtos e subprodutos existentes nos mercados de consumo, para efeito de verificação do cumprimento de medidas estabelecidas no presente Regulamento;

10 — as matérias primas nas fontes produtoras e intermediárias, bem como em trânsito nos portos marítimos e fluviais e nos postos de fronteira;

11 — os meios de transporte de animais vivos e produtos derivados e suas matérias primas, destinados à alimentação humana.

E no art. 13: “Só podem realizar comércio internacional os estabelecimentos que funcionam sob inspeção federal.”

Acontece que estados e municípios nunca tiveram interesse pela gestão e, principalmente, pelos custos envolvidos na inspeção sanitária. Com a centralização da mesma em torno do Ministério da Agricultura desde a era Vargas até final da década de 80, o Brasil se transformou em um player internacional de exportação de carne bovina, suína e aves, ganhando projeção internacional e a fama de possuir uma das mais modernas indústrias de matadouros e frigoríficos do mundo.

Ao final do governo Sarney, no finalzinho da década de 80, uma Medida Provisória revogou a Lei Federal de Fiscalização e transferiu essa obrigação para estados e municípios que continuaram a se recusar a assumir essa responsabilidade com seriedade e orçamento condizentes.

Devido a casos de contaminação que prejudicaram a posição da indústria de carne brasileira internacionalmente, com embargos sucessivos do Canadá, México, EUA e países da Europa, o governo FHC criou a lei que vigora até hoje, regulamentada pelo governo Lula em 2006 e cuja última modificação foi feita em 2010 pelo Decreto 7.216, dando origem à instrução Normativa MAPA nº 36/2011.

A novidade dessa Lei, que, friso, é de FHC embora regulamentada por Lula, é justamente procurar estimular estabelecimentos agroindustriais de pequeno porte, familiar, individual ou coletivo (em cooperativa), proporcionando competitividade e dinamismo na indústria de processamento de produtos de origem animal e beneficiando o fornecimento interno.

Do papel à realidade, porém, há um caminho a ser percorrido. A implantação de um sistema que prevê a chancela oficial de “inspecionado” para estabelecimento agroindustrial de pequeno porte leva décadas para ser implantado. Porém, embora ambicioso, é um plano que dará equivalência a estabelecimentos para uma competitividade sadia como manda a cartilha liberal. Sem isso, somente as indústrias consolidadas serão competitivas, promovendo uma oligopolização do mercado por suas exigências técnicas, estruturais e poder de fogo financeiro.

É preciso, antes de desfilar achismos pela internet, saber do que se fala. É preciso entender que um oligopólio não se forma apenas com corporativismo entre Estado e Iniciativa privada dentro do capitalismo. Aliás, vale frisar sempre o quanto o Estado é importante juridicamente e economicamente para o vigor do sistema, embora os neoliberais (libertarianistas e anarcaps) adorem negar e colocar sempre o Estado como vilão diante da inefável e bem aventurada iniciativa privada, apesar de predatória e anti-ética.

O que caracteriza um Oligopólio, em primeiro lugar, é a interdependência entre produtores que fabricam produtos semelhantes, concorrentes e, em especial, em um mercado com certa ineslasticidade de demanda. Antes até de formalizar algum tipo de cartelização, já se considera oligopólio certo alinhamento informal de preços que, de um lado, garante a maximização dos ganhos de quem está dentro e, de outro lado, impede a entrada de novos concorrentes devido aos altos custos de investimentos necessários. Nada disso acontece, necessariamente, com a interferência do Estado, mas é fruto na maioria dos casos, da própria concorrência tão defendida pelos liberalóides, apesar de terem um bug mental quando acontece.

Para esses neogurus da nova ordem moral espontânea, da superioridade moral cataláxica, tudo o que provier do mercado (definido como o encontro de interesses privados numa livre concorrência idealizada) define indefectivelmente a própria moralidade pela qual a sociedade deva se pautar, não havendo espaço para erros. Para eles, o mercado tratará de expurgar os desonestos que deixarão de vender e obter lucro. Essa fé no discernimento de uma entidade abstrata (o mercado), baseado na ideia de que os interesses do consumidores são racionais e criteriosos, pauta a maioria das considerações desses neogurus: algo totalmente desprendido do que podemos observar da realidade vivida e que, não raro, os pega de surpresa obrigando-os uma peregrinação na senda da negação compulsiva.

Não importa ao autor do post, por exemplo, o quanto o capitalismo gera de déficit para acumular lucro e capital para seus protagonistas. Eles não entendem (mesmo que se desenhe) que a acumulação de lucro e a concentração de renda é diretamente proporcional à dívida pública dos Estados Nacionais. Para os neogurus da praxeologia, a empiria é falha e suas verdades são sempre apodíticas. Para essa visão provinciana de senso comum, é maravilhoso que não exportemos mais carne. Para eles o preço irá cair e isso beneficiará os consumidores. É uma verdade apodítica e praxeológica. Talvez eles não saibam ou possuam memória seletiva acerca das toneladas de café queimadas na década de 30 no Brasil ou das toneladas de tomates apodrecendo devido ao excesso da safra ha poucos anos atrás. Se o custo da circulação for superior ao lucro obtido com os preços em declínio, o “bondoso mercado” escolherá, irresistivelmente, destruir as mercadorias. Quando não, preferem demitir, enxugar a estrutura e adulterar a carne com hormônios e outros venenos para ganhar mais. O consumidor? Sabe de nada… ele é um componente desse jogo que só tem um ganhador: o interesse privado e a sede insaciável de ganho.

O desprezo que algumas figuras ligadas aos movimentos libertarianistas tem do sistema de ensino universal talvez explique a autoestima exacerbada. Quando não se tem dimensão da própria ignorância, costumamos a nos supervalorizar perigosamente, achando que qualquer pensamento que nos acomete possui valor de verdade insofismável. É inegável que a epistemologia de fundo, sendo a praxeologia miseana, garante que se dispense toda evidência empírica a favor do subjetivismo, tornando o quadro ainda mais bizarro e inexpugnável…

Mas claro… é sempre tudo culpa do Estado Malvadão, ainda mais quando é rotulado (com critérios para lá de duvidosos) como esquerda.

Gilberto Miranda Junior participa do Círculo de Polinização do RAIZ Movimento Cidadanista, é editor do Zine Filosofando na Penumbra e Revista Krinos. Escreve para as revistas Maquiavel, TrendR e Portal Literativo.

--

--

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM