Reforma política e problemas à esquerda

Por que a esquerda não se une?

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
5 min readJun 10, 2018

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É importante que, mesmo brevemente, seja traçado um panorama da forma de atuar e das motivações que compõem os espectros político-ideológico que atuam em nosso cenário político antes de falarmos da reforma e de como ela afeta a esquerda. Para tanto teremos que recorrer a velha questão da esquerda e direita. Por mais que digam que essa dicotomia esteja superada, a patética polarização que persiste em nossa sociedade tem uma razão de ser.

O chamado Liberalismo e suas vertentes (Libertarianismo, Anarcocapitalismo, etc…) desde seus princípios básicos, cometem o que chamamos de contradição performativa. A liberdade que tanto bradam, além de basear sua possibilidade de expressão em desigualdades e em iniquidades naturalizadas, tem como pilar a ideia de que é eticamente não só aceitável, como recomendável, que cada agente social aja em prol de seu interesse privado e pessoal. A ideia metafísica por trás dessa máxima é que a somatória de cada força remando para si faça emergir uma somatória boa para todos, na medida em que para vencer a concorrência, necessariamente, o agente deve ser o melhor.

Embora seja costume separar o liberalismo em econômico, político e cultural, podendo dentro do espectro à direita modular para o conservadorismo, essa modulação, segundo os liberais, só ocorreria à nível cultural, sem afetar as outras esferas. Em termos bem gerais, culturalmente, o conservador acredita em uma ordem que reflete a desigualdade e a iniquidade da esfera econômica, ao passo que o liberal acredita que essa ordem inexiste, pois refletiria a crença estapafúrdia de que na esfera econômica existam trocas voluntárias entre capital e trabalho. Nesse aspecto, devo concordar que conservadores são mais coerentes, mas isso vale outro texto.

Na esfera política, embora sejam responsáveis por grandes avanços com base no delírio de que não há iniquidade na esfera econômica, os liberais compõem uma constelação interessante junto com os conservadores. Há exceções que, de fato, se preocupam socialmente com alguns avanços de direitos, mas em geral, a mesma lógica da esfera econômica é utilizada na esfera política: os interesses pessoais são o grande motivador para toda ação política, seja ela executiva, legislativa ou judiciária.

Destarte, sabendo que a partir das vantagens que já possui, todo liberal no poder irá lutar para reproduzir a lógica do sistema que o beneficia. O Estado, enquanto abstração, irá institucionalmente reproduzir essa lógica e salvaguardá-la jurídica e legalmente. Quando não o faz (como no Welfare State ou na Social Democracia), logo se nega sua utilidade e razão de existir.

O grande dilema da esquerda sempre foi decidir como atuar em busca de seus ideais com relação a ordem estabelecida liberal: se devem romper revolucionariamente com a estrutura que mantem e reproduz a iniquidade social, ou se promove desde dentro as mudanças necessárias para que, um dia, essa lógica se rompa dentro do próprio movimento dialético histórico. Essas perspectivas distintas promoveram a cisão da esquerda entre revolucionários e reformistas, com acusações, desdém e ojerizas mútuas.

Confesso, até aqui, que fiz identificações bem grosseiras e gerais sobre as ramificações dentro de cada espectro político-ideológico. Mas parece-me consenso que os revolucionários são obrigados a conviver com o fantasma do autoritarismo dos regimes denominados socialistas, ao passo que os reformistas são obrigados a conviver com o fantasma dos golpes, da frouxidão ética para negociar com o fisiologismo político e com a necessidade de políticas conciliatórias de classe que tiram a prioridade da tão esperada reforma profunda que todos almejamos.

Hoje no Brasil, diante da necessidade incontestável de uma reforma política, obviamente a partir do caráter liberal conservador de nosso legislativo, assistimos uma proposta capitaneada pelo PSDB que tem sido denunciada pela esquerda pelo potencial de desarticulação dos partidos à esquerda, na medida em que partidos de menor expressão em nível nacional, mesmo que fortes em algum estado da federação, perderiam sua representatividade no Congresso. Por outro lado, fortaleceria partidos de direita, que é a maioria, que se articulam e se capilarizam em nível nacional. Talvez sobrasse apenas, com essa reforma, o PT, se é que hoje ele pode ser chamado de partido de esquerda e se é que hoje ele possa ser chamado de grande partido.

No entanto, é possível enxergar por outros ângulos essa questão. Tem me incomodado demais a desunião da esquerda, os ataques mútuos, as picuinhas, o distanciamento dos movimentos de base, sejam de classe ou identitários, etc… tudo isso enquanto a ideologia liberal e a direita conservadora e reacionária cresce a olhos vistos.

Infelizmente não tenho expressão alguma no que publico e no que me expresso para propor uma reunificação da esquerda em torno de um projeto nacional de reconquista do poder e de abertura democrática que realmente represente os menos assistidos e despossuídos criados pelo sistema. No entanto, dentro do que me cabe, reflito essa necessidade e procuro dar razões suficientes para isso.

Uma coisa que as esquerdas parecem ter perdido é o sentido da Utopia. Embora eu possa dizer sem medo de errar que nenhuma corrente à esquerda tenha perdido a utopia em um mundo melhor, mais igualitário, justo e solidário, posso com pesar afirmar que o sentido mesmo da utopia tenha se perdido entre nós. Isso equivale a dizer que utopia não se refere a um lugar para se chegar de fato, um sistema novo, fechado a substituir o atual. Utopia refere-se a um caminho, a uma esperança que se reporta ao agora, a atos presentes, a um caminhar, um devir. Se utopia for vista como ponto de chegada e não como forma no devir, então mudamos o sentido de utopia e começamos a nos fragmentar.

Os ideais de igualdade, solidariedade e liberdade que sempre moveram as esquerdas não podem ser vistos como algo a ser atingido de uma determinada maneira. Não são planos ou objetivos, mas sim formas de agir. Estão no devir, não no ser. São construções, caminhos e não destinos, chegadas. Não cabe à esquerda, a meu ver, substituir as relações de poder com base na mudança da infraestrutura econômica. Caberia, sim, abrir o caminho para isso, protagonizar radicalmente a população nessa direção e cumprir um papel histórico de tornar isso possível, com ações e lutas movidas pela utopia vivida no presente.

Com mais esse golpe agora no sistema partidário com claras intenções em prol de interesses pessoais, podemos adquirir um poder muito mais efetivo do que fragmentados em partidos brigões… Será possível? O movimento social é o caminho da esquerda. Talvez seja providencial sua desarticulação institucional.

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Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM