SOBRE OS ATOS TERRORISTAS EM BRASILIA E A REALIDADE BRASILEIRA

O que esperar a partir de uma visão mais ampliada dos fatos?

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
8 min readJan 10, 2023

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É importante salientar que não é somente naquilo que tipifica o terrorismo legalmente que se define um terrorista. Há elementos essenciais que distinguem o terrorista de um criminoso comum. O criminoso comum, podemos dizer, transgride o ordenamento legal visando benefício imediato pessoal e está totalmente ciente de que por trás há um cálculo de custo-benefício, tendo, por sua vez, chegado à conclusão de que vale o risco das consequências diante dos benefícios.

O terrorista trabalha em outra lógica. Suas motivações envolvem um profundo senso de justiçamento fora do ordenamento, onde na cabeça dele é o momento do tudo ou nada, independente das consequências; fato que o torna engajado a cometer qualquer atrocidade para chegar a seus fins. Ele está indo contra àquilo que crê atentar contra sua própria existência; é um ato desesperado que o torna disposto a colocar em jogo sua própria vida. E é isso que o torna tão perigoso: ele acredita totalmente que possui todas as razões éticas e justas para cometer quaisquer atos em nome do que crê.

As pessoas que chegam neste nível, em geral, foram manipuladas ou se convenceram radicalmente que o alvo do atentado deva ser destruído e a própria ordem social vigente precisa ser revogada a qualquer custo, pois é a sua concepção de mundo que deve prevalecer a todos. Mesmo que ele creia que esteja fazendo o bem ou que busque honestamente aquilo que ele acredita ser o bem para todos, o fato é que ele está substituindo a consciência e a vontade de todos por suas próprias crenças e jamais aceitará, a partir do passo que tomou em direção ao terror, que suas crenças possam estar erradas ou que possa haver outros caminhos para o que anseia.

Não escrevo isto sem pesar o fato de que em meu campo foram feitas muitas coisas com as mesmas características, mas cujas motivações eu estava e ainda estou alinhado. Talvez seja a hora de pensarmos bem em muitas coisas diante do ocorrido em Brasília e também no Capitólio nos EUA. É totalmente legítima toda manifestação humana contra um estado atual de coisas e a reivindicação de outro estado, inclusive via ruptura institucional. Mas é preciso discutir em quais condições se verificam a legitimidade ético-política desejada, porque sem esta reflexão estaremos, possivelmente, validando movimentos que vão contra toda noção ético-política defensável.

Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que inspirou a atual Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, feita no contexto da Revolução Francesa, em seu 2° artigo, é garantido a inviolabilidade dos direitos naturais de forma imprescritível a todos os seres humanos, a saber: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão. No entanto, não define nenhum destes itens, já que em cada cultura poderá haver nuances e limites distintos para cada categoria de direito previsto.

É notório que os atuais terroristas ligados à ideologia encabeçada no Brasil por Jair Bolsonaro e que invadiram as instituições da República no Brasil creem que alguns de seus direitos básicos teriam sido violados. É preciso, durante o processo de indiciamento, estabelecer quais, em que termos e porquê foram ou não foram. A questão é que para ter validade moral, o acusador não pode ser a própria vítima, a saber, o Estado.

Eis a importância de um Ministério Público independente e formado de maneira ampla pelos próprios cidadãos habilitados e/ou qualificados para tal. Infelizmente nosso MP é um órgão de Estado e formado em sua maioria por uma elite socioeconômica que, quase invariavelmente, defende a seus próprios interesses de classe. Este fato nos indica alguns desdobramentos possíveis com base no que já ocorreu: a absolvição ou afrouxamento das penas de grande parte dos protagonistas do atentado em Brasília e a continuidade das prisões e condenações indiscriminadas de pobres e periféricos, como Rafael Braga, preso no contexto dos protestos de 2013 por portar um detergente e condenado a cinco anos de prisão.

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Günter Jacobs, pensador e jurista alemão e principal doutrinador do direito daquilo que veio a ser chamado de Funcionalismo Sistêmico, a partir de uma base contratualista, descreve o Direito Penal como aquele que visa, primordialmente, o próprio funcionamento do sistema em detrimento da proteção dos indivíduos. Portanto, o inimigo será todo e qualquer cidadão que colocar em risco a eficácia do sistema social e normativo, ou seja, toda pessoa que com seus atos atrapalhe o contrato social implícito o qual garante controle e gestão da coesão social. A partir desta definição ele estabelece dois tipos de direitos penais: o Direito Penal do Inimigo e o Direito Penal do Cidadão.

Para delitos de caráter menos graves e que não coloquem a ordem vigente em risco, os cidadãos processados preservam seus direitos constitucionais e são julgados com base nele. Nos casos em que o delito seja considerado como nocivo ou potencialmente ameaçador às bases institucionais do sistema, o cidadão muda de status social, passando a ser considerado inimigo do Estado, deixando de possuir os direitos garantidos na constituição e destituído de seu status de pessoa plena de direitos.

Aqui se desdobram duas questões. Em um país como o Brasil em que, claramente, pobres, negros e periféricos já possuem tratamentos distintos diante da justiça, onde execuções sumárias e chacinas são praticadas sem a indignação, repulsa ou ação do Estado (em grande parte cometidas pelo próprio Estado), é de se concluir que o racismo estrutural e institucional, estando nas entranhas de nossa formação social, faça parte estrutural da prática de proteção ao sistema de ordenamento normativo. Portanto, no Brasil, o Direito Penal do Inimigo vige formal e informalmente e é aplicado diuturnamente. Por sua vez, o Direito Penal do Cidadão não se direciona a tipos específicos de crime, mas às classes dominantes e seus apoiadores, lacaios e garantidores, que gozam não apenas da melhor defesa que o dinheiro pode comprar, como contam com a aquiescência benevolente da própria justiça.

Apesar de todo o protesto de caráter terrorista que a horda bolsonarista está fazendo, este fenômeno pode ser claramente entendido como um sintoma de eventos bem maiores que suas mesquinharias anti-democráticas. Nenhum item de sua pauta golpista põe em risco o sistema em sua estrutura essencial. Ao contrário, eles são os últimos bastiões, porque lacaios, da continuidade de um sistema em declínio. Este sistema terá de ser revisto em algum momento da história futura, já que o nível de acumulação e concentração de riquezas a que os super-ricos estão acostumados está gerando não apenas miséria generalizada como nos levando ao limite do ponto em que a natureza não será mais capaz de se regenerar e manter a vida no planeta.

Ser bolsonarista, para além da dimensão do delírio religioso que os caracterizam, é estar alinhado à sanha privatista, ao entreguismo internacional, à ilusão de liberdade na lógica capitalista, à efusiva admiração da classe empresarial e ao desprezo aos pobres, trabalhadores e minorias étnicas e sexuais; itens que caracterizam tudo o que Jair Bolsonaro representa e prega em seus mais de 30 anos de vida pública. Em nada estas características colocam em risco o sistema, ao contrário, reforça-o e lhe dá sobrevida, imunizando-o contra as críticas e movimentos que podem, efetivamente, conscientizar a classe trabalhadora e desestabilizá-lo. Afinal, historicamente, todo fascismo se pôs como uma alternativa liberal para não colocar em risco a riqueza privada acumulada pela exploração capitalista. É pouco provável que nos restem dúvidas nestas questões ao lembrarmos do recorrente desejo de ordem, disciplina e efusiva admiração às forças armadas que essa horda de gente sem noção demonstrou.

O Partido dos Trabalhadores, por sua vez, não está no governo para revogar o sistema ou protagonizar, pelo Brasil, um movimento cuja crítica e práxis nos levem em direção à revogação da catástrofe civilizacional anunciada em que vivemos. No máximo, a patota de Lula nos oferece uma gestão minimamente mais humanizada dentro da agonia capitalista, e jamais colocará em risco o funcionamento estrutural das bases que alimentam a manutenção de tudo o que está aí. Sequer é possível imaginar de pronto como poderia ser diferente disso.

No mais, as ameaças e os atos que potencialmente colocaram em risco as instituições democráticas de nossa república não atentam diretamente contra o sistema que nos governa de fato, embora o sistema use destas instituições para prevalecer. O Estado nada mais é que a estrutura pela qual o capitalismo pode ter garantido sua manutenção e continuidade, seja ele um estado democrático liberal, autoritário ou mesmo totalitário. Na configuração atual do mundo, o capitalismo, representado nas figuras de seus mais poderosos defensores e beneficiários, fará de tudo para que o Estado se mantenha e dê sobrevida à sua lógica, seja lá qual for o sistema político que dê base a ele. Definitivamente, o bolsonarismo não oferece qualquer ameaça contra isto.

Todo este texto teve por objetivo alertar qualquer desavisado para não se espantar com os desdobramentos possíveis dos atos em Brasília. Não será novidade a sensação de injustiça sentida por todos os lados em sua conclusão, se é que terá conclusão.

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Originally published at https://anarquia.substack.com on January 10, 2023.

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Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM