Sociedade de Risco e Singularidade Tecnocientífica

Ulrich Beck antecipa o Neoreacionarismo Hi-Tech

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
10 min readDec 22, 2022

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É um tanto curioso que a melhor definição de Filosofia que já li foi dada por um sociólogo. Em seu livro Sociedade de Risco, Ulrich Beck, sociólogo alemão, faz uma afirmação acerca do que seria a pretensão de seu livro: “(…) a despeito de um passado ainda vigente, tornar visível o futuro que já se anuncia no presente“. Quase tudo o que me agrada em Filosofia insere-se conceitualmente nesta sentença. Sei que muitos pensamentos filosóficos com pretensões atemporais ou fora da história foram produzidos, mas os considero mais ‘doutrinas’ do que filosofia, mesmo reconhecendo suas valiosas reflexões.

Tornar visível o que já se anuncia no presente a despeito do passado ainda vigente pode ser uma motivação para diversas ciências, não só a Filosofia. Mas nela, essa motivação se torna algo muito especial. A especificidade do fazer filosófico atua de uma forma, digamos, promíscua. Equivale a dizer que faz parte do filosofar esta transdisciplinaridade tão decantada quanto incompreendida. Alguém até poderia entender que a Filosofia não tenha objeto de estudo. Tem sim: e é TUDO. Podemos dizer que Filosofia seja uma “Tudologia” com rigor lógico e responsabilidade epistêmica. Mas mais do que isso: ela vai perscrutar o saber científico acerca dos fundamentos e consequências de suas asserções enquanto produz suas próprias asserções.

Há rupturas no interior dos processos históricos que só a Filosofia enquanto reflexão prospectiva e transdisciplinar é capaz de lidar. Não de resolver, decerto, mas de investigar, questionar, propor. Ou seja, fazer as perguntas certas, neste e em outros casos, é mais importante do que pretender ter todas as respostas. Portanto, desde os alertas de Beck sobre nossa atual sociedade de risco, até à singularidade tecnocientífica que está por vir, tudo precisa ser objeto da reflexão filosófica na tentativa de desvelar o porvir, mesmo que seu anúncio no presente não esteja claro, como no caso da ruptura que representa a tal singularidade (falaremos disso em outro artigo que estou escrevendo).

É compreensível as preocupações de Ulrich Beck. Vivemos um ‘atordoamento do espírito’, onde estamos a caminho do ápice da modernidade enquanto o obscurantismo conservador não apenas resiste, mas luta com as armas mais despóticas contra tudo e todos em busca de uma segurança idealizada. Não que a busca por segurança seja desnecessária. Ela é necessária e sabemos. Mas tudo o que vivemos é pura consequência daquilo que os próprios conservadores querem que volte. Ao mesmo tempo em que a modernidade surge para anular as injustas e indecentes limitações sociais e propor uma estrutura em que nossa posição se construa em razão de escolhas e esforços, seu desenvolvimento se dá no sentido oposto; criando um Estado Nacional patrocinador do automatismo do progresso, da distinção de classes, do princípio do desempenho e do ostracismo social da maioria da população do mundo. O atordoamento do espírito congela a reflexão e clama pelos instintos mais básicos; por isso são seduzidos e manipulados.

O que muda hoje, em vias da singularidade tecnocientífica, é que as categorias marxianas de proletariado ou lumpen-proletariado (onde se previa ainda um aproveitamento potencial no processo de trabalho) transformaram-se numa turba em luta escarnecida pelo direito de serem explorados em um mundo que os tornaram desnecessários, obsoletos e elimináveis. Tentei falar disso em um vídeo do Canal Gambiarra MiniDoc há 1 ano: “A Nova Ordem Capitalista — Exclusão” — assistam abaixo:

Há muito mais gente do que os super-ricos precisam tolerar para multiplicar sua riqueza e poder. Nunca antes foi assim, ou pelo menos, nunca esta constatação se estendeu para além dos rincões do Sahel africano. Hoje, em grande parte do mundo globalizado, os próprios nacionais se tornam cada vez mais obsoletos em um mercado cada vez mais “tecnocentrado”. Enquanto o Norte Global resiste (desesperados com a imigração), países da América Latina conseguem ainda manter uma classe média gestora formada para administrar e comandar a produção (em geral descendentes de colonizadores), enquanto nas periferias o direito penal do inimigo, o estado de exceção e a necropolítica se tornaram modus operandis do Estado à serviço da ‘segurança’ das elites e de sua classe gestora.

Ulrich Beck logra com grande propriedade realizar o que pretendia. De fato, ele consegue enxergar o que se anuncia no presente e descrever o que está acontecendo hoje. Em 1986, quando Sociedade de Risco foi publicado, praticamente, se iniciava a implementação das premissas neoliberais que iriam ser recrudescidas nas décadas de 90 e 2000. Ao morrer com 70 anos em 2015, Beck não assistiu a singularidade tecnológica, mas previu algo assustador que muitos de nós presenciarão, talvez, antes da metade do milênio: a subpolítica da modernidade. Como disse, estou escrevendo um texto sobre esse tema, mas é importante refletir sobre um pensamento que o antecipou antes mesmo que seus teóricos começassem a formular novos arranjos sociais despolitizados e pregar um aceleracionismo tal que o domínio tecnológico privatizasse a vida social e até países 1.

Beck esboçou quatro teses acerca das mudanças sistêmicas políticas nos termos do agravamento das situações de risco:

Primeira Tese Beckiana: O cidadão dividido. Segundo Beck, no projeto da sociedade industrial há uma relação entre controle político e mudança social em que as pessoas, por um lado, usufruem na arena de formação de vontade política seus direitos democráticos como cidadão ( citoyen), e por outro lado, defendem seus interesses privados nos campos do trabalho e da economia como burgueses ( bourgeois). A essa divisão do cidadão segue-se a divisão sistêmica: de um lado se desenvolveu um sistema político-administrativo dentro da esfera da participação democrática representativa partidária e parlamentar e, de outro lado, se desenvolveu o progresso técnico e controle produtivo na esfera técnico-econômica. Essa segunda esfera, segundo Beck:

(…) escapa à legitimação política, chegando mesmo a possuir — ainda mais em comparação com procedimentos democráticos-administrativos e percursos de implementação — um poder de realização pura e simplesmente imune à crítica. O progresso substitui o escrutínio. E mais: o progresso é um substituto para questionamentos, uma espécie de consentimento prévio em relação a metas e resultados que continuam sendo desconhecidos e inominados. (…) Apenas uma parte das competências decisórias socialmente definidoras é inserida no sistema político e submetido aos princípios da democracia parlamentar. Uma outra parte escapa às regras de controle público e justificação e é delegada à liberdade de investimento das empresas e liberdade de pesquisa. (BECK, 2010, p. 275 e 276)

Segunda Tese Beckiana: Fragilização das fronteiras entre a política e a não-política. Antes deste permanente processo de inovação contínua da modernidade, apesar da cisão provocada pela modernidade industrial, as fronteiras entre política e não política eram definidas pela naturalização das desigualdades sociais (dando impulso à criação do Estado de Bem-Estar Social ocidental) e o estágio de desenvolvimento das forças produtivas que necessitava, para funcionar, do emprego da força de trabalho. A ideia de progresso passou a ser integrada com a ideia de transformação social e bem-estar, mantendo as esferas independentes, embora interferentes. A liberação das forças tecnocientíficas de caráter econômico acumulativo invade o sistema político, cria o desencanto político dentro da própria política, mina seu poder transformador ou reparador (reformista) e, sob a égide da não política, transforma toda a política em inepta.

Terceira Tese Beckiana: Emergência de novas políticas não-institucionais e o aceleracionismo. A dissolução das fronteiras entre o político e o não-político possuem um duplo aspecto: de um lado novas culturas políticas fora da política institucional como “iniciativas da sociedade civil, movimentos sociais” (BECK, 2010, p. 278), e por outro lado a impossibilidade de criação estatal de freios ao processo de modernização:

Quando os contornos de uma outra sociedade possível já não são esperados a partir dos debates no parlamento ou das decisões do executivo, e sim a partir da aplicação da microeletrônica, da tecnologia de reatores e da genética humana, ruem as construções que até então haviam neutralizado politicamente o processo de modernização. Ao mesmo tempo a criação técnico-econômica continua imunizada, no que concerne à sua constituição, contra as exigências de legitimação parlamentar. (BECK, 2010, p. 278 e 279)

Beck irá nos dizer que a esfera do desenvolvimento técnico-econômico irá formar um terceiro polo que não é nem político e nem não-político, é subpolítico.

Quarta Tese Beckiana: Instituições Políticas como gestoras do subpolítico:

No projeto de Estado Social, a política pôde desenvolver e assegurar, por força da intervenção política no mercado, uma relativa autonomia diante do sistema técnico-econômico. (…) As instituições políticas converteram-se em gerenciadoras de um processo que elas nem planejaram e nem definiram, mas pelo qual elas têm de responder. Por outro lado, as decisões na economia e na ciência são carregadas com o teor efetivamente político, para o qual seus atores correspondentes não dispõem de qualquer legitimação. As decisões que transformam a sociedade não dispõem de qualquer lugar onde possam emergir, tornando-se mudas e anônimas. (BECK, 2010, p. 279 e 280)

Beck argumenta que é fantasmagórico esse jogo trocado entre política e não-política. O mais impressionante destas constatações é o que foi gestado desde o final dos anos 90 e início dos anos 2000 com base no conceito de aceleracionismo e sob a ideologia neorreacionária que inspira tanto ultraliberais do Vale do Silício quanto paleoconservadores do Tea Party. O chamado Iluminismo Sombrio ou Iluminismo das Trevas (ou ainda: Dark Enlightenment, como é conhecido) é o corpo teórico do movimento também conhecido como Neo-reação ou, simplesmente, NRx, e tem por base não só a divisão apontada por Ulrich Beck, mas sua ultrapassagem e a invasão completa da esfera tecnoeconômica na esfera política. Eles anseiam pela Singularidade (momento em que a Inteligência Artificial atingirá ou ultrapassará o estágio limite que a torna ilimitada e geometricamente progressiva, na medida em que ela irá aprender a aprender e achará em tempo recordes as soluções para tudo) e, mais do que isso, pela obsolescência de qualquer resquício democrático, chegando a propor um novo cameralismo, onde grandes corporações dirigidas por um CEO totalitário irá comandar cidades-estados altamente eficientes e privatizadas 2. Se em um sistema democrático-parlamentar toda e qualquer transformação social necessita, minimamente (e com muitos problemas — lobby, corrupção, etc.), passar por informação, discussão, escrutínio e consentimento, em um sistema tecnocientífico-econômico todas estas etapas são dispensáveis e indesejáveis, na medida em que uma IA pensará muito melhor do que todos nós.

Se em Beck, a sociedade industrial criou uma dupla esfera de poder interpenetrantes onde, de um lado tem-se a produção da democracia político-parlamentar e de outro a produção de uma transformação social apolítica e anti-democrática, no NRx só existirá uma: o tecnocientíficismo econômico. Só falta eliminar a política de uma vez por todas. Para os NRxs é uma questão de tempo, senão necessário e urgente. O que ainda resta eliminar está atrasando a singularidade revolucionária tão esperada. Para Beck, apesar de nos apontar que está em pleno curso, a política ainda resiste capenga, ferida e moribunda.

Enquanto os NRxs esperneiam pela demora e interferência política na inevitável chegada da singularidade, vemos a olhos nus o desmantelamento e a descredibilização sistemática de todo sistema político liberal burguês. Esse sistema subpolítico não é cego. Apesar de ser uma força incontrolável e quase autônoma, ele tem sua essência diretamente ligada aos interesses de quem os financia. O problema é mais sobre controle sobre quem financia (ou, no caso, reverter esse controle que já se tem dos financiadores no sistema político-parlamentar ocidental), do que controlar o progresso tecno-científico. O aceleracionismo de esquerda quer a socialização das forças tecno-científicas, quase que parafraseando Marx em seu espanto sobre o progresso das forças produtivas do capital. Para Marx e Engels, o capitalismo deveria seguir seu curso para ser expropriado para quem realmente produz, já que suas contradições dentro de seu mecanismo explorador, o levaria ao colapso:

O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas em seu seio. E de que maneira consegue a burguesia vencer essas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que leva a isso? Ao preparo de crises mais extensas e mais destruidoras e à diminuição dos meios de evita-las. (MARX e ENGELS, 2005, p. 45)

É quase possível ler Marx admirado, em um primeiro momento, com o caráter revolucionário burguês, sua incrível capacidade de criar maravilhas “maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas” (p. 43), contrariando os reacionários e universalizando as relações, mesmo que através da exploração e das forças incontroláveis da reprodução capitalista:

A sociedade burguesa, com suas relações de produção e troca (…) assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as modernas relações de produção, contra as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio. (MARX e ENGELS, 2005, p. 45)

É possível entender que, para Marx, e é este o argumento aceleracionista de esquerda, ao invés da velha luta revolucionária que hoje nos invade com melancolia, medo do futuro e uma resistência ineficaz e resignada (SANTAELLA GONÇALVES e XIMENES MARQUES , 2021, p. 372), é necessário partir para a luta pelo apoderamento das transformações em curso enquanto sujeitos coletivos. Se seremos capazes disso ou não, cabe a nós mesmos provocarmos essa discussão em nossos coletivos e grupos. Não podemos mais deixar a história nos levar de roldão protagonizada por forças irracionais e instrumentalizadas na criação de um abismo intransponível entre nós.

Estamos em risco. A única proteção é forjar a volta da política em uma democracia radical e horizontalizada que proporcione uma inclusão distinta da mera gestão das forças capitalistas.

Referências

BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.

SANTAELLA GONÇALVES, Rodrigo; XIMENES MARQUES , Victor. Por uma política orientada ao futuro: a provocação filosófica e estratégica do “aceleracionismo de esquerda”. Das Questões, S.L., v. 12, n. 1, p. 371–412, Junho 2021. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/dasquestoes/article/view/34941. Acesso em: 20 Dez 2022.

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Publicação original em https://anarquia.substack.com em Dezembro 22, 2022.

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Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM