Um pequeno ensaio sobre religião, vieses e falácias…

Ou como os vieses cognitivos o torna religioso.

Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra
7 min readDec 28, 2022

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Nunca tive problema com religião. Tenho plena consciência que existem pessoas que não são capazes de encarar a vida, o mundo, a realidade, sem a firme e esperançosa convicção de que haja algum sentido transcendente ou propósito existencial para além das relações cotidianas que estabelece. Se há uma necessidade psicológica ou emocional que leva a adesão numa crença que traga conforto e motivação, não tenho porque ser contra. Meu problema é outro… E é um problema sério.

A vida religiosa ou mesmo a adesão a sistemas de crenças soteriológicas (salvacionistas) constroem um tipo específico de subjetividade, desenvolvem formas de pensar e implantam cosmovisões que tornam as pessoas absolutamente suscetíveis a serem enganadas e ludibriadas, e fazem isso acionando vieses cognitivos que as levam a um autoengano voluntário e à morte de qualquer critério racional de pensamento.

Um viés cognitivo é uma falha de raciocínio (talvez até mesmo uma ausência, diriam alguns), que resulta de nosso próprio processo evolutivo histórico e, ao mesmo tempo em que economizou energia e tempo nas tomadas de decisões de nossa espécie, também causou e causa erros grosseiros com consequências potencialmente graves. Justamente porque são oriundos de nosso processo evolutivo e nos economiza tempo e energia (que, à princípio, são coisas boas), eles passam despercebidos de nossa consciência, e mesmo que soframos as consequências negativas deles, ainda insistimos em repeti-los constantemente até que passemos a observá-los e trabalhemos com afinco para perceber sua ocorrência antes de nos deixarmos levar. Se você quiser se aprofundar mais neste assunto, sugiro que leia esta tradução do trabalho de Buster Benson, que reuniu todos os verbetes da Wikipédia falando sobre Viés Cognitivo e fez um trabalho incrível classificando-os por tipo e formas de ocorrência.

Note que muitos vieses cognitivos quando usados como argumento tem como resultado o que chamamos, em Filosofia, de falácia. Ou seja, uma falácia, na maioria das vezes, é o uso de um viés como argumento para uma asserção (afirmação). Supondo que eu seja ateu, por exemplo, se eu considerar alguém errado só por ser religioso e usar isso como argumento, do tipo: “ Ah, mas você é religioso, logo o que você disse está equivocado”, eu estarei cometendo uma falácia “ ad hominen” (quando eu evoco um suposto defeito em alguém para refutar o que ele diz) com base no viés cognitivo de “ erro fundamental de atribuição “ (quando julgamos alguém por suas características e não pela situação concreta compartilhada). Portanto, quando falam que a forma como falamos e o que falamos traduz a forma e aquilo que pensamos, estão coretos.

Os sistemas religiosos em geral oferecem uma explicação para a maioria das angústias humanas cuja origem se dá pela percepção de nossa pequenez diante do universo e/ou das forças externas que constroem circunstâncias pelas quais não escolhemos, mas somos obrigados a viver. Ao perceber que o simples fato de estarmos vivos nos faz experimentar mais contrariedades que plenitude, tendemos a pensar (e principalmente querer) que esta situação seja, no fundo, um sacrifício necessário para algo maior. A religião oferece um sistema redundante de crenças que se confirmam mutuamente e tem por objetivo (em geral bem-sucedido) nos motivar a continuar lutando para permanecermos vivos. Como se já não bastasse as próprias contrariedades da vida e os sacrifícios que somos obrigados a enfrentar, a religião impõe também uma série de regras que precisam ser seguidas para termos o mérito necessário para a salvação.

O problema é que, ao longo do tempo, essa promessa começa a perder um pouco o sentido e as pessoas começam a perceber que muitas vezes quem desobedece ou não segue a cartilha salvacionista vive muito melhor do que quem obedece. Quando os “donos da religião” (sacerdotes, clérigos e gurus) se dão conta que estão perdendo o controle sobre o “rebanho”, lançam mão de outro artifício: a punição. Se a bem-aventurança não é suficiente para que se mantenham dentro das normas, a ameaça punitiva, na maioria das vezes, funciona. E na maioria das vezes não é só ameaça. Desde punições físicas (que podem envolver mortes e torturas) ao ostracismo, perda de identidade e excomunhão (expulsão da comunhão, da comunidade, da vida comunitária — que muitas vezes funcionam como uma morte simbólica), são vários os recursos utilizados para manter a pessoa cativa e submissa. Trata-se disso: cativeiro e submissão. É o custo a se pagar para sentir-se pertencente a um seleto grupo que um dia gozará as benesses de uma vida espiritual plena prometida.

Mas nada disso daria certo sem dois outros componentes fundamentais: tradição e santidade. Na cabeça dos fiéis e reforçado pelos líderes religiosos, é impossível que algo que exista há tanto tempo e é seguido por tantas pessoas esteja errado, seja mentira ou queira apenas nos enganar intencionalmente. O viés cognitivo envolvido nesta questão, de fato, ajudou a nos trazer até aqui enquanto espécie. Práticas e crenças que perduram é um sinal de que podem estar certas. Talvez essa possa ser uma boa regra a ser observada na savana africana de nossos ancestrais diante de um predador com dentes à mostra. Porém, culturalmente, se tornou universal, servindo para comportamentos dos mais diversos e perpetuando formas de ser que nos cegam para seus contraexemplos e resultados danosos. Nascemos imersos em uma cultura e é somente devido a uma localização geográfica que nascemos cristãos ao invés de muçulmanos, hinduístas, budistas ou xintoístas. Talvez fosse relativamente fácil perceber a fragilidade deste viés se não fosse o outro componente: santidade. São crenças redundantes que se auto-confirmam e se auto-afirmam na medida em que o que prova que minha tradição seja correta é sua santidade e o que prova a santidade do que creio é sua tradição. Deste viés resulta o discurso falacioso que atribui valor incontestável de verdade a tudo o que é dito no púlpito, na medida em que esta fala esteja inserida na santidade de nossa tradição.

No entanto, toda santidade tem origem numa narrativa repetida exaustivamente ao longo do tempo e iniciada, supostamente, por testemunhas diretas daquilo que a define. Se tiver sido iniciada por uma mentira (mesmo que bem-intencionada) ela se fixará também por vieses cognitivos que favorecem nossa crença quando algo que esperamos ou que seja necessário é dito que ocorreu. De memória e de maneira emblemática podemos lembrar do homem que reuniu os ‘patriotas’ que estavam em frente ao quartel para dizer que Alexandre de Moraes havia sido preso. A catarse da crença fanática tomou conta da multidão, que logo em seguida passou a orar e dar aleluias à mentira contada. A ninguém ocorreu a possibilidade de ser uma mentira, afinal, alguém entre eles (uma pessoa de bem) estava dizendo.

É bem interessante como a religião no século XX acompanhou as inovações administravas de gestão nas empresas. Qual influenciou a outra é algo a ser estudado, mas que há alguma correlação é possível perceber. Se no início do século XX prevaleceu um taylorismo com seus estudos de tempos e métodos em busca de produtividade, assistimos as igrejas se focarem na liturgia e nas regras a serem seguidas para a salvação. Se no fordismo e sua linha de montagem fragmentou a produção trazendo mais eficiência, nas igrejas recrudesceu-se a disciplina e a internalização das regras para que cada fiel fosse um exemplo na comunidade. Se no toyotismo dos anos 70 cada funcionário tornou-se não apenas um reprodutor, mas um propagador da filosofia da empresa, incorporando até em casa aquilo que era no trabalho, os fiéis passaram a ter a obrigação de converter todos em volta em todos os ambientes que frequentassem. Se na superexploração neoliberal cada trabalhador tornou-se empreendedor de si mesmo, a religião se descentralizou e cada fiel pôde ser um franqueado religioso de sua denominação abrindo um espaço próprio para conversão de seus vizinhos. Se o neoliberalismo propagou sua palavra nos quatro cantos do mundo e tem invadido o parlamento com políticos-empresários tarados por privatização e contrários a direitos trabalhistas, a religião criou sua própria bancada e disputa o poder dentro do parlamento para impor pautas de controle dos corpos e costumes que estendem um império de vieses cognitivos enganadores. Não é nada espantoso que empresários e religiosos (empresários religiosos e religiosos empresários) comunguem do mesmo discurso falacioso e levem multidões a se submeterem à exploração de suas vidas com promessas vazias e castração sistemática de suas possibilidades e potencialidades.

E vejam, não estou aqui dizendo que religiões são mentirosas, que não existe santidade e nem que tradições devam ser destruídas ou desconsideradas. Se você entendeu apenas isso até aqui, sinto que sequer deveria ter iniciado a leitura. Talvez me odiasse menos agora. Como professor eu tenho a difícil missão de fomentar o pensamento crítico em meus alunos. Pensar criticamente envolve, necessariamente, questionar as próprias crenças e mostrar que se existem bons motivos para crer, então é necessário justifica-los pelo que são e não através de vieses ou falácias. Se neste caminho haverá quem decida parar de crer, será porque descobriu que os motivos não eram bons. Mas haverá quem conseguirá reforçar honestamente os motivos que possui e passará a crer de uma maneira mais saudável, humana e socialmente responsável. Se isto acontecer me darei por satisfeito e com minha missão cumprida.

#religião #viescognitivo #falácias

Publicado originalmente em https://anarquia.substack.com Dez 28, 2022.

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Gilberto Miranda Junior
Filosofando na Penumbra

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM