Como entender e responder o anarcocapitalismo?

Janos Biro Marques Leite
Filosofia fictícia
27 min readFeb 28, 2020

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Como Camila Jourdan e Acácio Augusto recentemente escreveram, “libertário é sinônimo de anarquista”. O anarquismo é fundamentalmente anticapitalista, pois “Estado e capitalismo estão intimamente relacionados” e a pretensão de “abolir um sem abolir o outro sempre acabará em restauração da parte supostamente abolida”. Tanto a ideia de “Estado mínimo” quanto de capitalismo sem Estado não fazem sentido no anarquismo, porque “poder econômico sempre foi e sempre será poder político”. Uma sociedade anarquista é uma sociedade CONTRA o Estado, e por isso é “incompatível com as diferenças sociais, políticas e econômicas que constituem o capitalismo”.

Por que então pessoas que se consideram libertárias pensam que o anarquismo pode ser capitalista, ou se misturar com a defesa do livre mercado ou da propriedade privada dos meios de produção?

Anarcocapitalistas (ancaps) entendem os conceitos de capitalismo e Estado um modo peculiar. Para criticar o anarcocapitalismo, é preciso compreender o pensamento de autores como Ayn Rand, Rothbard, David Friedman e Hoppe. Ao conhecer melhor esses autores, eu percebo que o fundamento filosófico do anarcocapitalismo está muito mais presente em nossa cultura do que parece. Logo, não basta dizer que é uma contradição ou algo que “não existe”. É preciso entender o que o anarcocapitalismo realmente afirma, para saber como respondê-lo.

Em primeiro lugar, o que é o anarcocapitalismo? Segundo Alexandre Porto, o anarcocapitalismo é um sistema ético e jurídico baseado na propriedade privada. Ele não reduz a finalidade da vida humana ao acúmulo de propriedade, nem reduz a totalidade da ética humana à lei da propriedade. Mas é um sistema logicamente necessário para evitar a violação da propriedade.

As premissas básicas do anarcocapitalismo são:

  1. Indivíduos existem e agem.
  2. A ação humana é o uso de meios para alcançar fins.
  3. Esses meios são escassos.

Para que o anarcocapitalismo faça sentido, essas premissas precisam ser irrefutáveis. Delas, se conclui que conflitos de interesses são inevitáveis. Uma premissa secundária seria que conflitos podem ser resolvidos de apenas dois modos: pela violência ou pela racionalidade/ética . As leis de propriedade seriam os critérios universais para evitar o uso da violência nesses conflitos, determinando como os meios podem ser usados do modo mais racional/ético possível, em qualquer situação. Sem leis de propriedade logicamente válidas em si mesmas, o que prevaleceria seria uma lei contingente, que em última instância se torna lei do mais forte, ou seja, depende do uso da violência. Vamos analisar cada uma das premissas:

Indivíduos existem?

Existem diversos argumentos que problematizam o conceito moderno de indivíduo e individualidade. Alguns autores consideram que “indivíduo” é uma invenção moderna. Outros, que é uma invenção da filosofia ocidental antiga. De todo modo, o conceito de indivíduo pode ser colocado em xeque por algumas referências antropológicas (sociedades indígenas sem conceito de indivíduo) e psicológicas (crítica ao conceito de self individual) muito pouco discutidas no meio ancap. Além disso, ao defender a existência de seres individuais, é possível que o ancap acabe reproduzindo algum discurso que na verdade é uma defesa do individualismo, que é bem diferente e bem mais controverso nas ciências sociais. Embora o individualismo metodológico possa ter alguma aplicação, ele geralmente é extrapolado ou aplicado de modo equivocado nos argumentos anarcocapitalistas. É importante notar também que anarco-individualistas compreendem o conceito de indivíduo de um modo diferente, e não defendem o capitalismo.

Existe ação individual?

Mesmo considerando que indivíduos existem, é possível questionar se existem ações individuais, ou seja, se alguém faz algo sozinho. Também há referências na anarquia e na sociologia que permitem compreender essa crítica, como o conceito de apoio mútuo e cooperação em Kropotkin.

A ação humana é o uso de meios para alcançar fins?

É possível definir a ação humana como “uso de meios para realização de fins”? Muita coisa pode estar implicada nessa premissa. Por exemplo, a teoria da ação racional, da intencionalidade da ação, da ação teleológica, da racionalidade instrumental, etc… Em geral, ao tentar explicar o que isso significa, ancaps podem recorrer à praxeologia de Mises ou à teoria da ação de Rothbard ou de Hoppe. Vou falar mais sobre elas mais adiante.

Os meios são escassos?

A premissa da escassez é central no pensamento econômico liberal, pois mesmo considerando a verdades das premissas anteriores, se os meios não fossem escassos nenhuma filosofia da propriedade privada seria necessária. Se os meios são escassos, isso significa que haverão conflitos entre duas ou mais pessoas disputando ou competindo por esses meios. E por isso precisaríamos de um princípio da não agressão e do conceito de propriedade privada como única alternativa civilizada para resolver esses conflitos.

Embora Alexandre Porto afirme que a escassez está pressuposta no próprio conceito de ação humana, pois sem recursos escassos não seria sequer preciso agir, a abundância de recursos não implica necessariamente na ausência de ação humana. Como Marshal Sahlins demonstra em sua antropologia econômica, a escassez tem uma origem histórica. Os povos mais antigos do mundo tinham uma economia de abundância, não porque tinham meios infinitos, mas porque suas necessidades eram limitadas. A escassez é uma invenção da civilização, ela multiplica as necessidades para além dos meios naturalmente disponíveis. A premissa da escassez, embora central, é uma das mais frágeis, mesmo sendo reproduzida também no pensamento econômico de esquerda.

Se os meios não são necessariamente escassos, então o anarcocapitalismo está refutado? Não exatamente. A abundância de recursos não implica na ausência de conflitos. Mesmo em sociedades sem propriedade privada dos meios de produção haviam conflitos. A resolução desses conflitos não exclui totalmente o uso da violência. O argumento ancap nesse ponto pode ser facilmente transformado num argumento contra o uso injustificado da violência (como defende Raphael Lima). Se o objetivo da ética anarcocapitalista é evitar o uso injustificado da violência, o problema pode se tornar um pouco mais complexo de entender e responder.

A propriedade privada é natural?

No texto A origem da propriedade privada e da família, Hoppe elenca alguns critérios para definir o que é humano, que estão nitidamente distantes da compreensão antropológica da maioria dos autores contemporâneos. Ele lê a ação humana pela lente da teoria econômica da escassez, que é bastante frágil. Hoppe afirma que os elementos externos que nos “limitam” devem ser colocados sobre “controle”. Ele justifica a propriedade privada com base numa lei supostamente natural: “Foi ao controlar a terra que o homem de fato começou a produzir bens ao invés de meramente consumi-los”. Aqui, diversas críticas à ideologia do progresso, da racionalidade instrumental ou da relação de domínio sobre a natureza podem servir de resposta.

Com relação à família, ao invés de falar de patriarcado, Hoppe pretende explicar a origem da família nuclear como se esta fosse uma necessidade econômica natural da humanidade. A crítica ao patriarcado parece ausente na visão de Hoppe.

É possível uma ética analítica da propriedade?

A filosofia moral do anarcocapitalismo compreende as relações de propriedade por meio de afirmações analíticas, válidas independentemente do contexto. Se a lei de propriedade não fosse universalmente válida, ela precisaria de interpretação de acordo com o contexto, o que levaria a um direito positivo, um corpo jurídico ou uma instância superior aos indivíduos para julgar os litígios (agressões), ou seja, um tipo de autoridade e de coerção social. Para anarcocapitalistas, isso implicaria na submissão dos indivíduos ao interesse coletivo, impondo uma relação de modo unilateral, não-voluntário e pelo uso da violência. Os únicos direitos aceitos pelo anticapitalismo são direitos negativos, ou seja, proibições (não roubar, por exemplo). Essa conclusão é justificada por uma visão que não pode admitir a complexidade do fenômeno humano, porque está concentrada na pureza de uma verdade analítica, que só existe num plano ideal. Não há garantia de que uma sociedade ancap seria melhor que a nossa, mas o objetivo dessa filosofia não é necessariamente “melhorar” a sociedade, e sim possibilitar que ela seja “mais ética”, ou seja, mais coerente com esse sistema ético que eles julgam como necessariamente verdadeiro.

Essa posição, porém, é extremamente controversa na filosofia. Segundo a enciclopédia de filosofia Routledge, a meta-ética ou ética analítica é distinta da ética normativa, o que significa que dela não se pode derivar um direito negativo. Ela procura entender se um julgamento moral deriva de um fato da experiência ou não. Existem basicamente dois entendimentos sobre isso, o cognitivismo e não-cognitivismo. Logo, é importante notar que apresentar a ética anarcocapitalista como “analítica” não significa que ela não pode ser criticada. Alguns ancaps pedem que ela seja refutada com fatos, o que é logicamente impossível se eles partem de uma meta-ética não cognitiva. Logo, utilizam um recurso retórico para se blindar da crítica, quando o que deveria ser colocado em questão é o próprio sentido de tratar a ética da propriedade como uma meta-ética, ao invés de uma ética normativa.

É possível abolir o Estado sem abolir o capitalismo?

O anarcocapitalismo busca a abolição do Estado porque o enxerga como a negação do direito à propriedade ao invés da instância que legitima a propriedade, na medida em que depende de coerção social e monopólio do uso da força para funcionar. Nesse ponto, diversos teóricos das ciências humanas em geral já teceram críticas aprofundadas, seja baseando-se na Teoria Geral do Estado, no materialismo histórico ou na filosofia política. A conclusão comum é que não é possível abolir o Estado sem abolir estruturas que possibilitam acúmulo de poder econômico de modo desigual.

A propriedade privada pode ser legitimada somente pela ética?

Na teoria ancap, a legitimação da propriedade ocorre basicamente de dois modos:

  1. A apropriação original, na qual algo que não tinha dono passa a ter dono, ocorre pelo primeiro uso. O uso é comprovado pela ação de “cercar socialmente” a propriedade, colocar seu nome nela, por exemplo, indicando que ela tem dono.
  2. A transferência de propriedade. Ela deve ser voluntária, podendo implicar em troca voluntária. As leis que emergem das trocas voluntárias formam o mercado.

A exemplo da questão sobre a ética analítica, esse tipo de legitimação da propriedade não leva em consideração a complexidade da realidade social. Não considera, por exemplo, todos os conflitos passíveis de ocorrer no processo de apropriação original ou na transferência de propriedade, que não podem ser resolvidos dentro da ética ancap em si. Em grupos e fóruns de ancap é comum encontrar discussões sobre o que aconteceria nesses casos. A diversidade de respostas a essas hipóteses é tão grande que sugere que não existe de fato um conjunto definido de compreensões éticas e filosóficas sobre os conflitos de propriedade no anarcocapitalismo. Nem os teóricos nem os sujeitos que se consideram “praticantes” dessa ética concordam entre si sobre o que deveria ser feito em casos que seriam extremamente comuns na sociedade que eles defendem. Mais do que isso, é muito comum que eles relativizem outros princípios éticos bastante aceitos na nossa sociedade para privilegiar seus princípios restritos e meramente lógicos. Assim, referências mais consistentes da ética podem demonstrar que a “ética ancap” é extremamente frágil e irrealista.

O princípio da não agressão diminuiria a violência?

Quando o princípio da não agressão é ferido, ocorre uma violação ou crime. O praticante da violação não pode mais ser protegido pela lei da propriedade, perdendo parcialmente ou totalmente o direito sobre sua propriedade (incluindo seu próprio corpo), o que significa que pode ser punido. Rothbard chega a propor que o criminoso pode ser escravizado ou excluído da sociedade. O professor André Guimarães Augusto afirma que anarcocapitalistas não estão propondo ausência de coerção. A coerção é justificada quando dirigida a quem procura restringir o uso da propriedade privada. Isso significa que “a coerção é para quem pode pagar”, e implica em “dominação direta de classes”. Se há dominação de classes, então há Estado.

Na perspectiva do anarcocapitalismo, o contrato social que dá origem ao Estado é fundamentalmente contraditório e injusto porque é coletivo. Contratos em si são legítimos, mas só quando estabelecidos entre indivíduos, sem uma instância superior para legitimar esse acordo. Isso inclui a ordem legal representada no poder de legislar, julgar e punir. A punição numa sociedade anarcocapitalista seria legitimada por uma lógica universal, ou seja, ela não seria regulada por uma instância formal. As pessoas que melhor pudessem cumprir esse ideal de “justiça retributiva da punição” poderiam ser contratadas para fazê-lo. Nas palavras de André Augusto, “milícias privadas” para realizar uma justiça do tipo “olho por olho, dente por dente”. Aqui, as referências que serviriam de resposta estão na teoria jurídica do abolicionismo penal, na sociologia da violência ou na filosofia política, em especial na área de biopolítica e nas discussões sobre estado de exceção e microfísica do poder.

O corpo é uma propriedade?

Um dos pontos centrais da filosofia ancap é o conceito de autopropriedade. Cada pessoa é dona do seu próprio corpo, esta é sua primeira propriedade. Como toda propriedade é adquirida com o uso de outra propriedade, toda propriedade é como uma extensão da primeira propriedade, o corpo. Roubar uma propriedade é como roubar uma parte da vida de alguém, por isso é inaceitável em qualquer situação. A violência só é aceitável como reação a uma violência que já foi iniciada. Há vários problemas filosóficos nesse ponto, incluindo o excepcionalismo humano (somente o corpo humano é tratado como autopropriedade) e a discussão sobre a dicotomia mente-corpo (o corpo não é propriedade da pessoa, a pessoa é um corpo).

Você pode ferir ou matar quem tenta roubar sua propriedade, porque ao fazer isso a pessoa nega o direito à propriedade e não pode ser defendida por esse mesmo direito, enquanto você está defendido pelo direito de autodefesa. Já falamos sobre os problemas práticos disso, já que não há critérios objetivos para definir quem está certo caso alguém decida mentir ou falsificar uma evidência de propriedade. Uma ética que identifica o direito à vida e à liberdade com o direito à propriedade vai inevitavelmente reduzir pessoas a objetos, contradizendo um princípio ético do valor intrínseco da vida humana.

Além disso, embora teoricamente as pessoas possam contratar agências de segurança privada, como evitar que a pessoa com maior poder econômico “compre sua legitimidade” ao contratar serviços de segurança privada mais “eficientes”? Uma das críticas mais comuns ao anarcocapitalismo é que ele resulta, na prática, num retorno ao feudalismo.

O mercado é oposto ao Estado?

Na lógica ancap, Estado e mercado se apresentam como forças incompatíveis e contrárias. O Estado representa uma ordem autoritária se impondo sobre indivíduos, enquanto o mercado representa as regras lógicas necessárias à sociedade organizada. A discussão sobre até que ponto o mercado é incompatível com algum grau de interferência estatal, ou até que ponto pode e deve regular a si mesmo sem nenhuma interferência externa, é o principal ponto de conflito entre as duas principais vertentes do libertarianismo: o minarquismo e o anarcocapitalismo. Vamos avaliar as diferenças teóricas entre ambos a seguir.

Primeiro, é preciso dizer que o anarcocapitalismo também possui divisões internas. Enquanto Rothbard defende um sistema universal de direitos que pode ser derivado da “lei natural”, David Friedman pretende combinar o anarcocapitalismo com a economia neoclássica, e acredita ser possível justificar o anarcocapitalismo com uma teoria da eficiência econômica ao invés de uma “lei natural”.

Minarquistas e anarquistas de mercado

Atualmente, o minarquismo é a corrente majoritária do libertarianismo. Ela defende a minimização do Estado, enquanto o anarcocapitalismo defende a abolição do Estado. Para entender a diferença, é preciso compreender outras divisões entre os liberais.

Para economistas como Hayek, a sociedade humana possui uma ordem espontânea, emergente e auto-organizada. Esta ordem emerge da combinação dos interesses de indivíduos, mesmo que estes não estejam intencionalmente tentando criar ordem. A sociedade é regida pelo conjunto de comportamentos emergentes. A economia seria complexa demais para ser socialmente planejada. A intenção de organizar uma sociedade de modo planificado implica sempre numa opressão. O controle econômico produz apenas servidão, ineficiência e irracionalidade. O anarquismo libertário tem outra visão sobre o problema do cálculo econômico, e pode defender outros critérios de eficiência e racionalidade da organização da produção, pois não acredita que o mercado seja tão espontâneo ou racional quanto os liberais afirmam.

Ludwig von Mises, professor de Hayek, foi um dos grandes defensores do liberalismo clássico. É um economista da escola austríaca, conhecido pela sua contribuição com a praxeologia. Ele influenciou Murray Rothbard, que partiu para uma teoria mais heterodoxa. Ele é considerado o principal teórico do anarcocapitalismo. Rothbard defendeu a apropriação do termo “libertário”: tirá-lo do contexto histórico do socialismo libertário e levá-lo para a direita. Ele também defendeu o revisionismo histórico como estratégia para justificação teórica do libertarianismo. Ele e Hoppe defenderam teorias jurídicas fundadas no direito de propriedade, com algumas diferenças. Foi Rothbard que afirmou que “o capitalismo é a maior expressão do anarquismo, e anarquismo é a maior expressão do capitalismo”, enquanto Hoppe se considera um anarcocapitalista paleolibertário, ou seja, ele mistura elementos do conservadorismo cultural com o libertarianismo, defendendo, por exemplo, a superioridade da monarquia sobre a democracia.

A praxeologia, um método de análise usado no libertarianismo, foi resumida por Mises da seguinte forma: “A ação é a vontade posta em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar alcançar fins e objetivos; é a significativa resposta do ego aos estímulos e às condições do seu meio ambiente; é o ajustamento consciente ao estado do universo que lhe determina a vida”. Em outras palavras, a finalidade da ação é sempre a satisfação do desejo. Seguindo essa ideia, ancaps enxergam a economia a partir da vontade individual. O efeito da junção de vontades individuais díspares é o mercado, e o capitalismo de livre mercado seria o melhor modo de evitar as forças coletivas e sociais que ameaçam a liberdade individual pois não partem da livre associação de indivíduos.

Diferenças entre as correntes liberais

No liberalismo clássico, se o volume da riqueza de um indivíduo foi totalmente adquirido sem ferir o direito de propriedade de ninguém, então houve mérito, ou seja, aquela propriedade é justa não importa o quão grande seja. Essa perspectiva econômica não julga a riqueza de alguém pelo tamanho, pela comparação, pelo efeito na sociedade ou pela natureza dessa propriedade, mas unicamente pelo modo com foi adquirida. Sendo assim, a meritocracia seria um modelo no qual o poder está concentrado nas mãos de quem o mereceu, quem acumulou esse poder jogando dentro das regras de mercado.

O liberalismo de Keynes defendia a necessidade do Estado na regulamentação do mercado como uma resposta à crise econômica dos EUA. A Escola de Chicago (economia neoclássica) criticou o keynesianismo e adotou, com limitações, ideais monetaristas no Chile, durante a década de 1970. Estes ideais posteriormente foram adotados, também com limitações, na década de 1980, por Margaret Thatcher na Inglaterra (thatcherismo) e por Ronald Reagan nos Estados Unidos (reaganomics). Alguns economistas liberais reagiram à Escola de Chicago, como James Tobin. Ele defendeu um liberalismo com uma face mais humana, sugerindo criar impostos sobre transações financeiras, como o CPMF. Joseph Stiglitz, um neokeynesiano, criticou o chamado fundamentalismo de livre-mercado e a teoria da mão invisível. Para ele, o Estado seria responsável pelo equilíbrio de mercados.

Outros exemplos de liberalismo são o Ordoliberalismo Alemão e o chamado Liberalismo Social. O economista Gunnar Myrdal, teórico inspirador do Estado do bem-estar social sueco, ironicamente, dividiu o Prêmio Nobel de Ciências Econômicas, em 1974, com seu maior rival ideológico, von Hayek, cujo livro “O Caminho da Servidão” tornou-se referência para os defensores do capitalismo laissez-faire, onde o investimento social é trocado pela livre concorrência.

Escola de Chicago e Escola Austríaca

A Escola Austríaca é uma escola de economia heterodoxa, baseada no individualismo metodológico e na teoria subjetiva do valor. Nesse sentido, o anarcocapitalismo está mais próximo da Escola Austríaca, embora a Escola de Chicago também se oponha à economia marxista.

A metodologia da Escola Austríaca é fundada no individualismo. Ela procura explicar fenômenos econômicos por meio da ação de indivíduos, não de grupos ou coletivos. Os julgamentos e escolhas são individuais, baseadas em gostos e preferências, ou seja, “avaliações subjetivas de bens e serviços determinam a demanda”. Os custos que refletem outros usos possíveis de um bem são descartados do cálculo. Isso é chamado de marginalismo: o valor é determinado pelo consumidor final, e nada mais. Mises chama isso de “soberania do consumidor”, que só pode ser alcançada evitando a interferência governamental no mercado. Isso também implica em individualismo político: a liberdade econômica leva à liberdade política e moral, minando o poder do Estado e realizando um “capitalismo de verdade”. Por causa dessa visão, muitos teóricos acreditam que mesmo países considerados como potências capitalistas, como os EUA, estariam dominados pelos princípios econômicos do socialismo.

O diferencial do anarcocapitalismo é que este possui uma teoria ética e do direito que elimina o direito positivo, ou seja, a liberdade individual depende de que ninguém seja obrigado a fazer coisa alguma. O único direito legítimo seria o direito negativo: regras sobre o que não pode ser feito. Não se trata apenas de uma lei econômica, mas de uma teoria jurídica da ação humana. Uma lei que é ética e logicamente necessária, não pode ser negada sem auto-contradição. Como já afirmado, a possibilidade de uma ética logicamente necessária para a ação humana é filosoficamente controversa, e mais ainda se ela necessariamente está relacionada aos conceitos de propriedade, indivíduo e escassez.

Críticas mutuamente excludentes?

As críticas dos minarquistas aos anarcocapitalistas, e as respostas destes a essas críticas, fazem parte de uma longa discussão, e podem ser bem contraditórias, combinando diversas vezes com a crítica da esquerda. Por exemplo, minarquistas afirmam que é preciso alguma estrutura estatal para manter uma sociedade de massas, de outro modo é simplesmente inviável sequer manter o direito à propriedade. Instituições que na prática são estatais tendem a se formar mesmo na ausência formal de Estado. Para eles, essa posição moderada não pode ser confundida com a “idolatria esquerdista ao Estado”, que supostamente pretende resolver todos os problemas sociais por meio de um Estado forte.

Anarcocapitalistas denunciam que minarquistas estão caindo numa armadilha porque todo Estado mínimo tende se tornar um Estado máximo e jamais seremos realmente livres enquanto não nos livrarmos do Estado por completo. Eles acusam anarquistas anticapitalistas de se oporem ao livre mercado por pura desinformação, uma vez que o mercado só é ruim quando dominado pelo corporativismo, ou seja, justamente por causa da interferência do Estado ou de um interesse semelhante ao do Estado.

Algumas críticas equivocadas ao anarcocapitalismo

Teoricamente, os anarcocapitalistas não necessariamente se opõem à propriedade coletiva dos meios de produção, desde que isso seja feito por consenso geral, ou seja, que todos concordem individualmente com isso. Anarcocapitalistas interpretam o voluntarismo como uma base fundamental para a vida em sociedade, o que significa que nada é obrigatório, tudo é permitido desde que voluntário e consensual.

Logo, criticar apenas a propriedade privada dos meios de produção ou o acúmulo injusto de capital não é uma crítica forte, pois embora o capitalismo atual seja fundado no acúmulo de propriedade privada dos meios de produção, o anarcocapitalismo não está fundado necessariamente no que atualmente se entende como capitalismo. Anarcocapitalistas tendem a achar que o capitalismo de verdade está quase ou totalmente ausente no mundo hoje, já que capitalismo para eles não implica em exploração da força de trabalho ou corporativismo, mas sim nas “trocas voluntárias”, “livre concorrência” e “livre associação”. A propriedade de meios que dependem da cooperação entre diversos indivíduos só seria válida se essa cooperação for voluntária, assim como o uso de uma propriedade que afeta outros indivíduos, como por exemplo uma fábrica que polui a atmosfera terrestre.

Os trabalhadores precisam concordar em trabalhar na fábrica por determinado salário, e as pessoas que pagam esse salário precisam concordar em pagá-lo. Teoricamente, não haveria nada para forçar um preço ao empregador ou ao empregado, seria tudo estabelecido por acordos entre indivíduos, o que significa que seria regulado pelas variações espontâneas do mercado.

Alguns liberais tendem a ver a liberdade como um meio para outros fins, enquanto ancaps podem entender que a liberdade é um fim em si mesmo. Além disso, liberais podem querer cortar gastos sociais com argumentos econômicos, enquanto para anarcocapitalistas se trata de uma questão de princípios. Seria um vício moral trocar sua independência por “direitos” concedidos pelo Estado. Pessoas em necessidade devem ser ajudadas voluntariamente por outras pessoas, e não por obrigação, e por isso o “bem-estar social” não faria sentido independente do benefício real que produza.

Quanto ao problema ético da distribuição de recursos, a perspectiva anarcocapitalista é que um recurso pertence a quem chegar primeiro até ele e utilizar sua propriedade para adquiri-lo. Assim como na maior parte das perspectivas liberais, anarcocapitalistas partem da premissa econômica da escassez e do “homo economicus”. Mas não é a escassez que legitima a propriedade.

A ética anarcocapitalista dita que você não é obrigado a dividir as maçãs de uma macieira que é sua, mesmo que outras pessoas famintas implorem, mesmo que seja sua mãe ou seus filhos, mesmo que elas tenham plantado e cuidado da macieira (porém não tenham estabelecido relação de propriedade). Nada pode te obrigar a compartilhar o que é seu, exclusivamente seu. Se você decidir compartilhar, é por bondade e generosidade sua. E o anarcocapitalismo não está interessado em discutir a bondade e a generosidade das pessoas, ou mesmo se essas características subjetivas possuem funções econômicas. Ela é uma filosofia que não trata de outras questões morais, apenas da justiça da propriedade. A doação não faz parte de seus problemas. Vale enfatizar, essa ética não pode admitir contradição dependendo do contexto, ela deve ser necessariamente verdadeira.

Pode parecer cruel que uma pessoa não tenha direito de roubar um pão para alimentar seus filhos em hipótese alguma, mas na perspectiva anarcocapitalista isso produz um benefício geral. Uma vez que as pessoas querem sobreviver, e precisam sobreviver apenas com o que conseguem produzir, elas precisam tomar cuidado com as decisões que fazem. O que significa que, com o passar do tempo, as pessoas que tomam decisões melhores sobrevivem, as que tomam decisões erradas morrem. E isso para eles significa um acúmulo de conhecimento, uma evolução no processo de tomada de decisões, que nos leva a aprimorar nossas capacidades. Segundo José Geraldo Gouvêa, Ayn Rand partiu do darwinismo social “para argumentar que a ‘mão invisível’ do mercado regularia o egoísmo dos indivíduos de maneira a obter o resultado ótimo para a sociedade”. Logo, o que ancaps entendem por ética pode ser bem diferente do que geralmente se encontra nos estudos sobre ética.

Na minha experiência conversando com essas pessoas, eu diria que anarcocapitalistas não são necessariamente pessoas totalmente acríticas, doutrinadas ou zumbis que sofreram lavagem cerebral de um think tank liberal. Isso quer dizer que são capazes de compreender as críticas à sua ideologia e de fazer autocrítica. A acusação de que estão sendo doutrinadas não será muito efetiva. Os princípios liberais valorizam o exemplo e são contrários à ideia de interferir na vida de outras pessoas.

Críticas relevantes ao anarcocapitalismo, segundo os liberais

Embora na internet exista uma cultura de refutação, um debate sério não pode se reduzir uma série de refutações de ideias contrárias. Já que muitos ancaps acreditam serem capazes de “vencer debates”, o ideal seria providenciar um ambiente em que um debate realmente sério possa ocorrer, e permitir que eles defendam (propositivamente) suas ideias, mostrando exemplos e a aplicabilidade da teoria ao invés de inverter o ônus da prova (quem afirma é que precisa demonstrar suas razões) e ficar apenas na retórica. Quanto mais ancaps expõem o que realmente acreditam e aproximam isso com a realidade prática, mais os problemas e fragilidades se tornarão visíveis.

O ponto central para criticar o anarcocapitalismo é a bifurcação entre Estado e mercado. Existe uma crença de que o livre mercado é a única alternativa viável ao Estado. O mercado seria não apenas primário como também totalizante na manutenção de todas as relações sociais, e isso distingue o anarcocapitalismo de outras correntes liberais ou socialistas. Outros liberais podem até mesmo considerar o anarcocapitalismo como reducionista e determinista, pois consideram o mercado como apenas um dos aspectos da sociedade. Religião, ciência, ética e tecnologia, por exemplo, seriam outros aspectos da sociedade que não podem estar totalmente subordinados ao mercado. Anarcocapitalistas entendem o mercado como uma esfera especial cuja validade é axiomática.

Teóricos do anarcocapitalismo pretendem rejeitar qualquer associação entre o Estado e o mercado, mas não enxergam problema na existência de uma pessoa excepcionalmente boa em acumular propriedades. Para eles, isso acontece naturalmente, e seria uma violência construir um sistema para impedir estas pessoas de acumularem poder ou privilégios. Para eles, o mercado é natural, e a natureza é individualista, voluntarista e competitiva. Logo, a crítica a eles precisa levar em conta também o conceito de sociedade e natureza. Não basta uma crítica ao capitalismo atual.

Algumas críticas ao libertarianismo como um todo também se aplicam ao anarcocapitalismo, com algumas ressalvas. Segundo Alex Merced, professor de um curso sobre libertarianismo, as críticas mais relevantes ao libertarianismo são:

“O livre mercado aumenta a desigualdade humana”

A esquerda geralmente argumenta que o Estado é a única proteção da população pobre contra a exploração desregulada dos ricos e donos de empresas. Na perspectiva ancap, o livre mercado não pode ser culpado pela desigualdade, pois a desigualdade é um resultado inevitável da vida social, e a intervenção do Estado apenas aumenta a desigualdade ao impedir a livre competição. Então a menor desigualdade possível é a desigualdade natural que ocorre no livre mercado. O mercado é necessário para a sociedade, e não há outro modo de distribuir recursos sem interferir na liberdade individual que não seja pelas trocas voluntárias. Qualquer outro sistema de distribuição de recursos implicaria em coerção social e produziria um totalitarismo.

Porém, ancaps não necessariamente acreditam na total ausência de regulação de mercado. Alguns podem sugerir modelos de regulação descentralizada de mercado, ou seja, regulação independente de instituições estatais. Novamente, a ideia seriam regras surgindo de modo emergente das relações, sem nenhuma coerção social. A desigualdade natural deveria ser aceita como aceitamos a agressividade natural. Qualquer tentativa de reprimi-la implicaria numa erupção de desigualdade acumulada em algum momento. A crítica mais relevante, nesse caso, seria questionar o argumento que naturaliza a estrutura desigual da sociedade, que só é possível a partir do acúmulo de excedentes.

“A ética libertariana é individualista”

A ética ancap é um pouco diferente da ética da maioria dos liberais. Liberais tendem a defender o utilitarismo de Bentham e Stuart Mill. Já a moralidade ancap seria resumida assim: o que quer que não seja obrigatório é moral. Toda ação humana é moral contanto que não agrida ou atropele outra pessoa. Não se trata de fazer recomendações sobre como se deve agir, seria apenas uma teoria sobre quando é “apropriado” usar sua força: somente em autodefesa. Nunca é apropriado iniciar força sobre outros que não fizeram nada com você. Ancaps discutem como seriam os sistemas para lidar com pessoas que quebram essa regra. O princípio de não agressão apenas indica uma moldura para a consideração ética, mas não é uma filosofia moral completa. Diversas formas de moralidade poderiam se encaixar nessa moldura e não caberia ao anarcocapitalismo definir quais seriam mais apropriadas. Essa suposta neutralidade também é um problema discutido na crítica filosófica ao utilitarismo, e portanto parte da crítica ao utilitarismo poderia atingir também a teoria anarcocapitalista, mesmo que ancaps sejam contra o utilitarismo.

“O capitalismo é ambientalmente insustentável”

Enquanto perspectivas como o ecossocialismo acusam o industrialismo e o desenvolvimentismo capitalista de causar degradação ambiental, ancaps não se sentem na responsabilidade de resolver nenhuma questão ecológica. Uma vez que o anarcocapitalismo seria a própria teoria da liberdade humana, não há porque supor que seres humanos fazendo escolhas livres vão escolher o pior para o meio ambiente. As escolhas livres são naturais, pessoas livres sempre irão escolher o curso de ação de menor custo por causa de seu interesse inerente em eficiência, logo não faz sentido cobrar que as pessoas façam algo “ecológico”. Para alguns, os problemas ambientais seriam causados justamente pela ausência de propriedade privada sobre os recursos do planeta. Segundo uma concepção controversa conhecida como “tragédia dos comuns”, quando algo não é de ninguém e a responsabilidade de cuidar é compartilhada por todos, as pessoas tendem a esperar que outras façam o trabalho, e ninguém acaba fazendo, sendo assim aquele bem coletivo se perde. A solução para o meio ambiente, para ancaps, seria a privatização de todos os recursos naturais.

A maioria dos economistas tem dificuldades de aceitar as limitações ecológicas para o crescimento econômico. Por isso tendem a reduzir essa limitação a uma questão de desenvolvimento científico e tecnológico ou reorganização social. Se existem externalidades que não podem ser resolvidas pelo próprio mercado, isso implicaria numa limitação para a legitimidade da apropriação original. Numa sociedade complexa, a única instância capaz de realizar essa limitação seria uma autoridade do tipo estatal.

É importante não confundir a teoria do limite econômico com a teoria da escassez. A escassez implica em meios limitados para fins infinitos. O anarcocapitalismo afirma ao mesmo tempo a escassez e a ausência de limite do crescimento, pois embora haja concorrência pela posse de um recurso escasso, o uso dos recursos não pode ser limitado por uma instância superior. Isso é: nem todo mundo realizará sua vontade com o mesmo meio, mas tudo que existe pode servir para realizar a vontade de alguém. Não pode existir limite para o que pode se tornar propriedade privada, exceto o que é propriedade de outra pessoa.

Segundo a perspectiva da ecologia social, a administração de externalidades negativas (efeitos negativos que afetam a sociedade como um todo, como a poluição) é inviável sem uma representação coletiva, e este tipo de conflito de interesse acabaria exigindo a criação de autoridades para evitar o abuso privado ou coletivo dos recursos naturais numa sociedade industrial.

“O anarcocapitalismo é purista ou idealista demais”

O anarcocapitalismo, mais ainda que o minarquismo, apresenta uma visão de mundo que parte de princípios irrefutáveis, axiomas ou verdades analíticas. Na prática, a realidade é muito mais complexa que o modelo teórico. A liberdade que procuram é um ideal abstrato que nunca existiu. Por isso, o anarcocapitalismo acaba se juntando a outras ideologias puristas, como o nacionalismo branco (Stefan Molyneux e Richard Spencer são dois exemplos disso). A associação voluntária de indivíduos depende de mais do que um simples pacto de não agressão. Hoppeanos chegam a defender abertamente a “ remoção física “, isso é, intolerância ativa a quem defende ideias que não combinam com o princípio ético capitalista.

Na economia, o ideal anarcocapitalista dificilmente funcionaria em economias grandes e complexas, que exigem algum grau de coordenação centralizada para funcionar de modo eficiente. Na prática, algumas empresas precisariam fazer o papel do Estado para coordenar a relação complexa entre produtores e consumidores finais.

Na esfera moral, conservadores defendem a necessidade do Estado para evitar a decadência moral e a perda da estrutura social. Anarcocapitalistas, no outro extremo, consideram que obrigações morais são eticamente inaceitáveis, porque atentam contra a liberdade humana, um valor inegociável. Na prática, porém, se a defesa de valores humanos se reduz à vontade de indivíduos, o resultado provável é a inexistência de valores comuns. A extrema relativização ou subjetivação de valores tem as mesmas consequências práticas da negação dos valores compartilhados, e nunca houve uma sociedade de massas em que valores comuns fossem mantidos sem algum tipo de autoridade socialmente estabelecida. Existe também um problema fundamental na distinção entre “obrigação” e “proibição”, que não é necessariamente objetiva ou analítica.

O que leva alguém a se tornar anarcocapitalista?

Se existem tantos argumentos contra o anarcocapitalismo, porque ele parece tão atraente e tão bem fundamentado para tantas pessoas? Há diversas formas de explicar isso, mas eu quero resumir algumas ideias anarcocapitalistas que, se tomadas separadamente, podem fazer muito sentido. Por exemplo:

“Quando você perceber que para produzir precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e pela influência, mais que pelo trabalho; que as leis não nos protegem deles mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada e a honestidade se converte em auto-sacrifício, então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada.” — Ayn Rand (1905–1982), filósofa russa-americana.

Apesar de ser criadora de uma corrente filosófica que não é reconhecida como tal pela comunidade acadêmica, e cometer diversos equívocos teóricos, Ayn Rand tinha uma capacidade retórica admirável, o que a fez atrair diversos seguidores, de modo muito parecido com Olavo de Carvalho. Com seu livro de ficção, “A revolta de Atlas”, ela conquistou a imaginação de diversas pessoas e influenciou uma geração de economistas e políticos americanos.

É possível entender que, quando esses autores falam de capitalismo e anarquismo, estão falando basicamente de um conceito de natureza humana que parte de uma distinção entre social (tudo que aquilo que é imposto de forma coercitiva ao indivíduo) e individual (tudo aquilo que é criado espontaneamente e naturalmente a partir de interações livres entre indivíduos). A sociedade só pode ser livre se os indivíduos que a formam são livres e se relacionam voluntariamente. Este apelo ao indivíduo e seus desejos pode ser bastante tentador numa era de liberação contra moralismos e imposições sociais.

Em certo sentido, a teoria ética do anarcocapitalismo é uma radicalização da teoria econômica baseada em modelos matemáticos, como a econometria. Ela guarda uma semelhança peculiar com esquemas disfuncionais/desadaptativos produzidos pelo estresse pós-traumático: supervalorização da regra em detrimento do contexto. Pessoas que sofrem traumas tendem a criar regras extremamente rígidas para evitar qualquer tipo de violação/agressão. Nesse processo, elas se isolam socialmente. Não quer dizer que ancaps em geral estão nessa situação. Mas é possível que o aprofundamento da crise da sociabilidade na modernidade, produzindo certos efeitos psicossociais, acabe também tornando as pessoas mais suscetíveis a esse tipo de abordagem ou visão de mundo.

Qual a maior dificuldade da esquerda em lidar com ancaps?

Na minha humilde opinião, o que mais dificulta a esquerda na tarefa de conter o avanço do anarcocapitalismo é não compreender o que ancaps estão realmente dizendo. A asserção de que o capitalismo é inseparável do Estado é insuficiente, pois o que eles compreendem por capitalismo e Estado vem de uma tradição teórica completamente diferente. Trata-se de princípios da ação humana, como eu pretendi demonstrar. A resposta precisa retornar ao âmago do liberalismo, questionando, por exemplo: o conceito de indivíduo, de liberdade, de direito, de propriedade, de sociedade e de escassez.

Como fazer isso? Minha sugestão é questionar o mito do “homo economicus” e compreender criticamente o paradigma econômico no qual o anarcocapitalismo, e o capitalismo como um todo, está fundado. Por exemplo, as compreensões básicas sobre a natureza das decisões racionais, ou da ação humana, e a teoria da escassez. As teorias anarcocapitalistas não conseguem explicar adequadamente as relações de interdependência entre seres humanos e o ecossistema. Uma perspectiva ecológica da economia é uma boa alternativa de crítica ao capitalismo, pois ela não pode ser imediatamente recusada com base numa crítica ao “comunismo”, que é o tipo de resposta padrão de ancaps.

A teoria anarcocapitalista também pode ser criticada pelo seu enviesamento normativo, mesmo quando tentam se esconder por detrás da “meta-ética”. Isso é, ela não explica como as coisas são, mas descreve um mundo ideal, baseado num princípio de eficiência que em geral não se encontra na natureza, e muito menos no fenômeno social humano. Aqui cabe uma crítica epistemológica, que não é fácil de compreender, porém que atinge o cerne da filosofia ancap.

Outro ponto seria o pressuposto da racionalidade da ação humana. Uma vez que o “homem econômico” é uma ficção, e que pessoas reais se comportam de modo muito diferente do que indivíduos que apenas buscam “otimizar seus ganhos”, o pressuposto praxiológico é colocado em xeque. Evidências empíricas de que o modelo liberal de escolha racional não combina com as teorias do comportamento humano mais atuais podem servir para chamar ancaps de volta à realidade social, mas infelizmente eles podem estar isolados dessa realidade por fatores psicossociais.

Apontar evidências não irá funcionar com todos, assim como evidências não convencem terraplanistas de que a terra não é plana, mas pode semear a dúvida que os levará a reconsiderar essa ideologia quando, e se, amadurecerem intelectualmente. Logo, o mais eficiente seria conversar de modo mais paciente justamente com os ancaps mais novos, e não com os mais velhos, que tem menos probabilidade de mudar de ideia. Por isso, ridicularizar ancaps pela idade deles não é uma boa estratégia. A maioria deles são garotos realmente inteligentes, porém socialmente isolados e que PODEM estar perturbados por alguma experiência traumática (embora não haja uma relação direta).

Um ponto central a ser enfatizado numa conversa com ancaps é que o ser humano não age apenas em auto-interesse. A teoria da empatia demonstra que agimos também em interesse de outros, e que é racional equilibrar o Eu e o Outro na ação humana. Embora a teoria de Ayn Rand afirme o contrário (ela defende o egoísmo virtuoso), essa teoria não é realmente aplicável e não tem relevância nas áreas que estudam o comportamento humano.

Ancaps estão entre os mais visados para serem aliciados ou recrutados por extremistas de direta (nacionalistas brancos e neofascistas), mas é bom lembrar que eles não são necessariamente fascistas. Uma mistura de empatia, possibilidade de sociabilidade real e referências teóricas menos dogmáticas (mais abertas à possibilidade de crítica e autocrítica) pode ser um diferencial para afastá-los do extremismo.

Fontes de pesquisa:

Sociedade contra o Estado: Libertário é sinônimo de anarquista

Anarcocapitalismo provado, por Alexandre Porto

A origem da propriedade privada e da família, por Hans-Hermann Hoppe

A nova direita, o “libertarianismo” e o anarcocapitalismo, por André Guimarães Augusto

Ideias Radicais, por Raphael Lima

Libertarianism 101 — Understanding Libertarians, por Alex Merced

FAQ anarcocapitalista, por Bryan Caplan

The New Right and Anarcho-capitalism, por Peter Marshall

Exclusive Interview With Murray Rothbard

Rothbardian Ethics, por Hans-Hermann Hoppe

The “Stirner Wasn’t A Capitalist You Fucking Idiot” Cheat Sheet

Classical Liberalism versus Anarchocapitalism, por Jesús Huerta de Soto

On Anarchism, entrevista com Noam Chomsky

Anarcho-capitalism dissolves into city states, por Paul Birch

Contra a praxeologia, a favor da ciência

The Property and Freedom Society

Understanding “Austrian” Economics, por Henry Hazlitt

Adam Smith to Richard Spencer: Why Libertarians turn to the Alt-Right, por Elliot Gulliver-Needham

Haverá escravidão no ancapistão?

A moralidade da remoção física hoppeana

Originally published at http://contrafatual.com on February 28, 2020.

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Janos Biro Marques Leite
Filosofia fictícia

Graduado em filosofia, escritor, tradutor e criador de jogos.