Sobre o leninismo no século XXI

Janos Biro Marques Leite
Filosofia fictícia
6 min readMar 21, 2024

Esta é uma resposta ao artigo “Um leninismo para o século XXI” publicado no dia 21/01/2024 no blog da Boitempo e escrito por Valério Arcary. Arcary propõe uma releitura do leninismo à luz dos desafios contemporâneos, uma empreitada que merece ser cuidadosamente examinada à luz de sua fundamentação teórica e das realidades sociopolíticas em que se insere. Isso não é algo que eu tenho condições de fazer, mas acredito poder tecer algumas dúvidas sobre o texto.

O texto fala de um suposto “paradoxo” da falta de adeptos ao pensamento leninista na esquerda contemporânea e argumenta que, apesar das derrotas recentes, a presença de líderes leninistas é essencial para confrontar a ameaça neofascista. O texto também enfatiza a importância de um partido centralizado na condução desses processos. No entanto, creio que houve uma má apreensão das críticas mais importantes ao leninismo.

A crítica ao leninismo, historicamente, tem se centrado na preocupação com a centralização do poder e a possibilidade de formação de uma elite burocrática. De Bakunin a Mark Bray, passando por Emma Goldman, as tendências centralizadoras dentro do movimento socialista foram criticadas diretamente, inclusive por muitos autores e autoras presentes no blog da Boitempo. O principal motivo pelo qual Lenin foi abandonado parece ser que as teorias sociais atuais compreendem a importância do dissenso, da autonomia individual e da descentralização do poder para alcançar uma sociedade mais justa e igualitária.

Essa crítica parece ter sido desconsiderada no texto. Acredito que podemos elucidar o “mistério” por trás da perda de popularidade do leninismo de modo relativamente simples quando questionamos alguns dos pressupostos que o texto assume. Quem sente falta dos leninistas? O que realmente perdemos com a ausência de leninistas?

A razão pela qual Lenin não é popular não é a prevalência do pensamento reacionário nem a falta de movimentos revolucionários vitoriosos. O contrário parece muito mais provável: é justamente num contexto em que o autoritarismo ganha popularidade entre as massas, como reação à crescente desilusão com a democracia representativa, que se busca restabelecer figuras autoritárias de esquerda. Temos uma situação em que muitas pessoas que acreditam que “esquerda boa é a velha esquerda” também defendem que precisamos, literalmente, de um líder autoritário de esquerda para um enfrentamento mais duro do fascismo. É cada vez mais evidente que o avanço do fascismo produz, em boa parte da esquerda, uma sensação de que o problema é justamente a ausência de figuras de autoridade. É a ideia de que não há saída senão por meio de uma autoridade forte. É exatamente a derrota da política “democrática” que traz Lenin de volta à discussão.

Mas o leninismo como única alternativa para combater a extrema-direita é uma tese mais controversa. A própria extrema-direita colaborou com a construção de uma importância exagerada em relação a Lenin, em oposição a um desinteresse não apenas da esquerda, mas das ciências humanas como um todo.

Há uma arrogância perceptível quando se diz que ser leninista hoje “não é para os fracos”. De onde vem a ideia de que apenas leninistas conseguem derrotar os fascistas? Talvez venha de uma crença compartilhada com a extrema-direita: a crença de que Lenin é o baluarte do marxismo revolucionário, um símbolo da derrota do fascismo.

O leninismo é sinônimo de partidos de militantes. O estado, em sua versão atual, provavelmente não tem como ser gerenciado de modo efetivo por um governo que não seja autoritário. Mas isso deveria levar ao questionamento radical do estado e das políticas partidárias, e não ao retorno de políticas centralizadoras.

A debilidade das organizações leninistas é um caminho sem volta. O problema teórico-histórico premente não é da conquista de poder, mas sim da autonomia. É por isso que o movimento indígena, por exemplo, não tem muito interesse numa perspectiva leninista. E talvez seja por isso que vemos leninistas gastando energia na crítica de autores decoloniais e feministas, que acusam de ser liberais. Leninistas costumam ter um ideal bastante “peculiar” do que significa revolução.

O que sobra de leninismo sem o “erro” do partido único? Todo “acerto” dos bolcheviques dependeu em algum grau do partido único. Se responsabilizar Lenin por Stálin não é sério, tão pouco é ignorar a responsabilidade de Lenin nessa centralização. O motivo pelo qual as possibilidades mais promissoras da revolução russa foram derrotadas não pode ser reduzido a fatalidades ou erros posteriores.

O texto diz diretamente: “a premissa da aposta leninista sobre a necessidade de um partido centralizado é que, estando maduros os fatores objetivos em uma conjuntura de crise revolucionária, a lucidez e ousadia de uma organização de ativistas estruturados nos setores estratégicos da vida econômico-social pode fazer a diferença. Fazer a diferença significa abrir o caminho para a vitória na luta pelo poder. A presença militante do partido ao longo de anos e décadas, ao lado das lutas populares, permite a conquista da autoridade política que é indispensável para o triunfo da revolução”.

Todas as revoluções anticapitalistas que triunfaram tiveram a liderança de uma organização centralizada? O próprio texto relativiza essa o quão centralizada era essa organização, por exemplo, ao dizer que Lenin “esteve muitas vezes em minoria”. Onde estava centralizada a autoridade política então? Lenin era dispensável? Teria corrido tudo como correu com ou sem ele? Aparentemente é uma contradição. O legado leninista é louvado pela “clareza estratégica” que só pode existir quando há poder centralizado acumulado nas mãos de poucos indivíduos.

O texto se limita a dizer que o movimento “interviu nos sindicatos sem ceder às ilusões sindicalistas; participou de eleições com candidaturas próprias, ou fez frentes eleitorais, ou chamou ao boicote eleitoral sem ceder às ilusões eleitorais; alimentou debates teóricos, publicou livros, revistas e organizou, regularmente, escolas de formação, sem se transformar em um ‘clube’ acadêmico para intelectuais críticos”. Tem muita coisa nas entrelinhas de cada uma dessas afirmações.

O ponto central é sobre as duas críticas que são consideradas “mais importantes”: “a acusação de que ela seria responsável pela forma monolítica que assumiu a ditadura estalinista durante sete décadas; a acusação de que seria uma forma de substitucionismo burocrático da ação espontânea das massas”. Por um lado, esses não são de fato os argumentos centrais de quem critica o leninismo. Por outro, o que há de importante nesses argumentos não foi devidamente respondido.

Concordamos que a acusação de ser responsável pelo stalinismo é fraca. E por isso espanta que se considere essa como uma das duas críticas “mais importantes”. Me parece que a opinião dos críticos mais relevantes de Lenin é muito diferente. Essa crítica parece vir não de acadêmicos, mas de militantes desinformados. É muito estranho dizer que uma crítica das mais importantes é também a mais ignorante ou desonesta.

A principal crítica não é que Lenin é culpado por Stálin, e sim que ele é culpado por defender centralização da autoridade, algo que, a despeito das afirmações do autor do texto, não é consensualmente considerada como elemento fundamental de uma experiência revolucionária bem-sucedida. Aqui, o texto pede que acreditemos num determinado critério valorativo para avaliar “experiências revolucionárias”. Comparado com Stalin, Lenin realmente soa razoável. Mas não são apenas essas as opções que temos.

A resposta à segunda crítica segue a mesma estrutura argumentativa. Se desvia da crítica relevante, que não pode ser reduzida a uma acusação de que a tese leninista “defende que o partido marxista faz a revolução”. A tese leninista pode não ser ingênua, mas ela defende que há uma importância vital da centralização para combater a extrema-direita, e isso não é problematizado em momento nenhum do texto, embora seja uma crítica muito mais relevante.

O texto também exibe um nítido desmerecimento das teses insurrecionais, embora não exista uma bifurcação entre revolução e insurreição. A questão é mais complexa e envolve o processo de burocratização e institucionalização que está implicado na centralização da autoridade. Descentralização não significa simplesmente insurreição. O conceito de revolução não é discutido, e uma discussão séria sobre Lenin hoje exigiria justamente a discussão em torno do que pode ser considerado como revolucionário na contemporaneidade. Não se pode simplesmente partir do pressuposto de que há um critério unívoco para a revolução em todos os tempos e lugares.

Quando se fala de “processos de mobilização pelo poder que colocam em movimento milhões de pessoas”, isso não descreve algo necessariamente revolucionário. A discussão sobre o legado de Lenin não pode excluir outras perspectivas de esquerda. Ela precisa colocar não apenas as conclusões como também as premissas em jogo.

A quem ainda interessa disputar a liderança do chamado “processo revolucionário” por meio de representações partidárias? Quem efetivamente participa dessa disputa? A questão não é simplesmente acusar o bolchevismo de ser uma máquina ao serviço da ambição de poder de certos indivíduos, e sim de não se atualizar das críticas aos processos de centralização e burocratização da política. Evitar essa crítica e partir do pressuposto que precisamos de leninismo para combater a extrema-direita é partir da conclusão que deveria ser o ponto central de discussão e questionamento.

--

--

Janos Biro Marques Leite
Filosofia fictícia

Graduado em filosofia, escritor, tradutor e criador de jogos.