Já vai tarde, otário!

Janos Biro Marques Leite
Filosofia fictícia
5 min readApr 25, 2024

Por que fazemos piadas sobre a morte de Olavo de Carvalho, mas condenamos o desrespeito à memória de Marielle Franco? Há uma contradição nisso?

Marielle Franco foi assassinada a tiros em 2018, aos 38 anos de idade, junto com seu motorista, Anderson Pedro Mathias Gomes. Ela era vereadora pelo PSOL, ativista dos direitos humanos, formada em sociologia e havia feito múltiplas denúncias de abuso de autoridade por parte de policiais contra moradores de comunidades do Rio de Janeiro. Era uma mulher negra bisexual.

Embora sua morte tivesse todos os indícios de ter sido encomendada por motivos políticos, imediatamente surgiram narrativas nas quais ela teria morrido por envolvimento com traficantes. Ela foi prontamente acusada, e logo toda manifestação de protesto contra a morte dela foi interpretada como “defender bandido”, o que culminou numa exibição pública de desrespeito ao seu nome, quando dois deputados do PSL, Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, rasgaram uma placa que homenageava a vereadora. Esse ato permaneceu tão significativo no imaginário político que Rodrigo chegou a emoldurar a placa, como um símbolo de um feito memorável.

A normalização deste desrespeito foi em grande parte consequência de um discurso anticomunista que foi propagado no Brasil por pessoas como Olavo de Carvalho. Ele traduziu as teorias da conspiração usadas nos EUA, que por sua vez foram copiadas dos fascistas italianos e alemães, para criar um novo tipo de polarização política, que continua se fortalecendo até hoje: a ideia de que os opositores políticos não estão simplesmente defendendo más ideias: eles são más pessoas e não merecem a mínima consideração. Eles são equivalentes a nazistas, o que justifica desumaniza-los. Em outras palavras, trata-se de diminuir o valor da vida dessas pessoas.

É com base nesse discurso que Bolsonaro construiu uma campanha baseada no ódio aos petistas e à esquerda como um todo. A consequência prática das teorias da conspiração anticomunistas é justificar a violência contra pessoas marginalizadas, incluindo a violência policial e a exclusão social e econômica.

Então, não é surpreendente que a reação à morte de Olavo de Carvalho não tenha sido nem um pouco respeitosa. Olavo de Carvalho aderiu ao negacionismo científico em várias ocasiões, defendendo a validade do movimento antivacina. Isso teve uma influência significativa nas opiniões de Bolsonaro, levando-o a fazer piada com as vítimas da pandemia. Ironicamente, Olavo de Carvalho havia sido diagnosticado com Covid oito dias antes de morrer, em 2022, aos 74 anos. As piadas com seu cadáver ainda são populares na internet.

Então, quão problemático é normalizar essas piadas? Sabemos que para ser zoado depois de morrer é preciso ser desumanizado. Sabemos que a desumanização de Marielle Franco é uma violência. Sabemos que Olavo, embora tenha espalhado discursos racistas e preconceituosos, não foi diretamente responsável pela morte de pessoas. Então, existe uma justificação para esse tipo de chacota, ou estaríamos relativizando nossos critérios éticos somente para atacar nossos oponentes políticos?

Uma interpretação possível é que o desrespeito a Olavo seria justificado pelo valor das vidas que ele prejudicou com seu discurso. Além de propagar teorias da conspiração como “marxismo cultural” e atacar as instituições democráticas do Brasil, ele promoveu discursos de ódio e intolerância contra grupos minoritários, a comunidade LGBTQ+, imigrantes e povos indígenas. Espalhou desinformação sobre fatos científicos e questões de saúde pública, como o negacionismo climático. Ele estava numa posição de influenciar muitas pessoas e fez uso irresponsável desse poder.

Eu me lembro de uma animação interativa feita em Flash, muito tempo atrás, em que éramos convidados a torturar e matar Hitler enquanto este chorava e implorava por piedade. Quando ele finalmente morria, uma frase aparecia na tela: “Parabéns, você se tornou como ele”. Será que nos tornamos como os deputados do PSL ao desrespeitar o nome de Olavo de Carvalho?

Acredito que essa é uma falsa equivalência. Não há sentido na ideia de que estaríamos justificados porque “eles fazem o mesmo” ou “eles são muito piores”. Não é possível justificar um erro com outro erro. Mas Marielle e Olavo não são equivalentes e não são simplesmente representações dos dois lados do espectro político.

Com o fortalecimento do fascismo, surge uma perspectiva pessimista quanto à possibilidade de vencer o inimigo de modo “limpo” e uma tendência a acreditar que tudo é válido para combatê-lo. Mas o desrespeito a uma pessoa que morreu defendendo minorias é diferente do desrespeito a uma pessoa que viveu atacando essas mesmas minorias. O primeiro se baseia em ódio às minorias, e o segundo, em respeito a elas.

Marielle Franco não estava propagando teorias da conspiração nem promovendo discurso de ódio contra a polícia ou contra seus oponentes políticos. A hipótese atual, depois da delação de Lessa, é que ela foi morta por Domingos e Chiquinho Brazão, que apoiaram a campanha de reeleição de Bolsonaro em 2022. A investigação foi prejudicada porque a polícia civil estava envolvida. Houve uma tentativa de diminuir a importância política da morte de Marielle e transformá-la em um crime comum. Ao mesmo tempo, tentaram transformar Olavo numa pessoa sábia, tentando elevá-lo ao status de intelectual e filósofo relevante no Brasil.

É possível argumentar que ofender um cadáver não é taticamente vantajoso. Porém, na era informacional, o alcance de um ataque pessoal é potencializado, enquanto o alcance de um argumento racional é diminuído. O próprio Olavo se aproveitou disso. O que o tornou famoso não foram seus argumentos, mas seu modo peculiar de usar linguagem pejorativa enquanto falava. O modo como a internet e os algoritmos intermediam nossa comunicação impõe valores diferentes daqueles que foram construídos para a interação presencial e outras formas de comunicação. Antes da internet, a velocidade do fluxo da informação era mais lenta, o que permitia que argumentos pudessem ser analisados. Bons argumentos eram mais eficientes que frases de efeito ou xingamentos. A aceleração do fluxo de informação muda essa condição. Isso significa que a estrutura tecnológica pode influenciar o modo como reagimos à morte das pessoas.

Devemos questionar a naturalização do desrespeito aos mortos como uma forma válida de ação política. A instrumentalização da morte como ferramenta de confronto ideológico revela uma tendência perigosa de desumanização do outro, que enfraquece os alicerces éticos da convivência e do respeito mútuo. Precisamos do exercício legítimo da crítica e da preservação da dignidade humana.

Mas isso não significa que Olavo de Carvalho não deva ser lembrado pelo que foi: um racista, um teórico da conspiração, um propagador do ódio e da exclusão. Não foi um ser totalmente maligno e indigno de qualquer consideração, mas está longe de ser o grande intelectual que alguns acham que foi. Ele pode ter cruzado uma linha que, talvez, esteja cada vez mais estreita. Não estamos mais dispostos a perdoar racistas e xenófobos tão facilmente. Além disso, nós não fomos os responsáveis pela morte de Olavo. Marielle foi assassinada por inimigos políticos, enquanto Olavo sucumbiu por sua própria intolerância, sua incapacidade de ver valor nos argumentos daqueles que considerava “idiotas”.

As piadas direcionadas a ele podem ser entendidas como uma manifestação de solidariedade às pessoas que ele atacou e um modo de impedir que seu discurso se alastre ainda mais. Elas também podem ser apenas uma vingança pelo simples prazer de bater em vez de apanhar. Mesmo nesse caso, os lados não são equalizados. Zoar Olavo não coloca as vidas de seus seguidores em risco. Pelo contrário, levar Olavo a sério é muito mais perigoso. Então, em respeito à vida humana, nós dizemos: Já vai tarde, otário!

Revisão: Christian Stadler.

Publicado originalmente em http://contrafatual.com em 25 de abril de 2024.

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Janos Biro Marques Leite
Filosofia fictícia

Graduado em filosofia, escritor, tradutor e criador de jogos.