Liberdade: entre Spencer e Bakunin

Janos Biro Marques Leite
Filosofia fictícia
3 min readMay 2, 2023

“Minha liberdade termina onde começa a do outro” é uma das frases mais repetidas sobre a liberdade. Pouca gente sabe que ela se baseou no pensamento de Herbert Spencer, um intelectual do século XIX que influenciou o conservadorismo, o neoliberalismo e o liberalismo econômico.

Um dos principais slogans usados por Margaret Thatcher, “There is no alternative” (Não há alternativa) vem de uma frase de Spencer, em seu “Social Statics”, de 1851. Ele defendia que a economia de mercado é o único sistema possível no mundo moderno, e esta é provavelmente a crença mais popular sobre o capitalismo até hoje. Foi em resposta a essa frase que Susan George cunhou o slogan “Outro mundo é possível” em 2001 durante o movimento antiglobalização.

Spencer é mais conhecido por ser o pai do darwinismo social, a ideia de que as diferenças sociais podem ser explicadas por diferenças biológicas ou ambientais. O darwinismo social foi usado para justificar o imperialismo, o racismo, a eugenia e a desigualdade econômica. Apesar de refutada, várias versões dela continuam sendo defendidas por políticos e intelectuais até hoje.

Spencer tornou-se influente na Inglaterra e na Europa devido à “herança intelectual” de sua família. Ele foi educado por seu pai, que por sua vez era professor em uma escola criada por seu avô com base nos ideais progressistas da reforma educacional de Johann Pestalozzi. Eventualmente, Spencer substituiu seu pai como diretor da escola. A família de Spencer também tinha laços com a Derby Philosophical Society, fundada por Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin. Spencer usou sua influência para “difundir” o darwinismo, cunhando a expressão “sobrevivência do mais apto”, que é uma distorção grosseira do conceito de seleção natural.

A frase “Minha liberdade termina onde começa a do outro” foi criada a partir de uma frase utilizada por Spencer em sua obra “Os princípios da ética” onde apresenta a “lei da igual liberdade”. Uma das citações mais famosas atribuídas a Bakunin responde a essa ideia. O contexto da frase ajuda a entender em que sentido o conceito de liberdade em Bakunin difere de Spencer. Diz Bakunin:

“Só sou verdadeiramente livre quando todos os seres humanos, homens e mulheres, são igualmente livres. A liberdade dos outros homens, longe de negar ou limitar a minha liberdade, é, ao contrário, sua premissa e confirmação necessárias. É a escravidão de outros homens que põe uma barreira à minha liberdade (…) Para a minha dignidade de homem, o meu direito humano que consiste em recusar obedecer a qualquer outro homem e determinar os meus próprios atos de acordo com as minhas convicções, é refletido pela consciência igualmente livre de todos e confirmado pelo consentimento de toda a humanidade. Minha liberdade pessoal, confirmada pela liberdade de todos, se estende ao infinito.”

Enquanto Spencer via a liberdade de um indivíduo como uma limitação da liberdade de outro indivíduo, Bakunin via a liberdade de outros indivíduos como uma condição da própria liberdade. É a falta de liberdade do outro que limita a sua liberdade. Enquanto houver pessoas na prisão, não é possível ser verdadeiramente livre. Cada pessoa cuja liberdade é reduzida ao se tornar um escravo reduz o poder cooperativo da sociedade para o bem comum.

A equivalência entre liberdade e igualdade é um tema central do anarquismo. Quando alguém repete o clichê de Spencer sobre liberdade, cria uma oportunidade para se falar de anarquia: minha liberdade não termina onde começa a de outra pessoa. É aí que ela começa. Não somos adversários, não estamos competindo por uma liberdade escassa. Na sociedade libertária, uma sociedade contra o estado e o capital, a liberdade é abundante, e quanto mais livres os outros são, mais livre eu sou.

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Janos Biro Marques Leite
Filosofia fictícia

Graduado em filosofia, escritor, tradutor e criador de jogos.