Sobre a Neutralidade

Apókrisis
Filosofia Geral
Published in
6 min readFeb 16, 2018

Das mais antigas atividades humanas provenientes do intelecto e das quais geralmente tiramos o maior proveito possível, a dialética certamente dispara à frente. O termo pode parecer um tanto intimidador quando não estamos familiarizados com seu significado, mas “dialética” quer dizer nada mais do que um diálogo direcionado, travado por duas consciências em direção a um ponto superior da investigação da realidade.

Como já foi exposto em nosso artigo Filosofia e Ideologia, a nossa capacidade de comunicação nos permite criar inúmeras formas de transmissão de fatos, valores, opiniões e etc. através dos diversos idiomas espalhados pelo globo. Ora, que seria da dialética se não houvesse possibilidade de comunicação e vice-versa? Nossa investigação da realidade nos faz querer compartilhar as impressões coletadas com todos ao nosso redor e expor nossa compreensão do investigado. De maneira ordinária, isto basta para que trilhemos uma vida inteira sem nos preocupar com mais do que apenas uma boa conversa com o vizinho. Entretanto, sem retirar o mérito da boa conversa, entendemos que as implicações geradas pela dialética carecem de muito cuidado e é sobre este cuidado que iremos nos debruçar hoje.

Em um ponto mais ou menos determinado da história da humanidade, alguns homens se cansaram de aguardar a mera benevolência divina para que a vida seguisse seu curso e decidiram afastar-se ligeiramente desta mercê para tentar proporcionar uma segunda opinião acerca da realidade e da vida humana. Estes homens foram chamados de físicos e filósofos, pois eram amantes da sabedoria e investigavam a natureza enquanto realidade total e universal.

A partir do surgimento dos primeiros filósofos fez-se necessária uma minúcia cada vez maior em relação à investigação da realidade e esta minúcia deu conta do cuidado que mencionamos anteriormente. Era preciso ter extremo cuidado ao falar sobre a realidade, pois as opiniões pessoais podiam muito bem estar completamente erradas e os próprios filósofos já sabiam disso de antemão.

Dessa minúcia surgiram as ciências empíricas, com seus olhos voltados para o físico, e a filosofia propriamente dita, voltada para o metafísico, ou seja, para aquilo que está além do que podemos perceber com nossos sentidos: o ser enquanto ser, sem nenhuma determinação, sem nada que o diferencie dos outros que não seja sua própria natureza.

A ciência seguiu um caminho brilhante ao longo da história, trazendo respostas suficientes para determinadas dúvidas e a filosofia seguiu também, trazendo dúvidas suficientes para todas as respostas dadas. Este é o papel de cada uma.

Ora, desde a ágora grega, berço do milagre, o mundo presencia embates titânicos entre filósofos e sofistas, entre filósofos e cientistas e principalmente entre filósofos e filósofos, e isso é extremamente prazeroso para todos nós, pois nos assegura que provavelmente nada passará em branco na investigação da realidade.

Fiquemos um instante no debate entre filósofos e cientistas, de maneira geral. O debate em si não nos diz muito (pois sua forma pode variar e isso não interessa senão àqueles que debatem), mas sim os argumentos levantados no decorrer dele. É fato completamente aferível que a Ciência (todas as ciências) possui seus vieses de investigação e intentam provar determinado ponto de vista devido a interesses quaisquer. Não nos deteremos nisto aqui, mas sim no motivo disto. Observe que estamos trabalhando com o conceito geral e genérico de ciência, justamente porque o ponto de vista a ser analisado não é este. Prossigamos.

A medicina, ciência que investiga a fisiologia humana (por mais que possa não estar limitada a isto), quer provar suas teses e aplicar seus conhecimentos neste campo. Quer entender como surgem as enfermidades e quer produzir insumos capazes de extirpá-las para garantir a preservação da espécie humana. Quem de nós irá renegar por completo a medicina apenas por esta intenção? Creio que ninguém. Assim o é com praticamente todas as ciências.

Em seu aspecto geral, as diversas ciências desejam investigar a realidade sobre um determinado ponto de concentração e trazer soluções para o que foi investigado. O Direito quer trazer soluções jurídicas, a Sociologia quer trazer soluções sociais e a Psicologia quer trazer soluções psicológicas. Todas estas ciências juntas formam aquilo que é necessário para que a humanidade siga trilhando seu caminho sobre a face da Terra e isto nos tem servido bem até o momento. É feliz a expressão de que as ciências enxergam a realidade através de seus próprios “óculos”, ou seja, que elas buscam soluções específicas para situações específicas.

Mas se a Ciência se preocupa com as partes, onde entra a Filosofia aqui? Qual é a sua função? Ora, com o perdão do imenso clichê, o todo é a mera somatória das partes? Pois é precisamente com isto que a Filosofia se preocupa: com o todo.

Novamente recorrendo ao nosso artigo Filosofia e Ideologia, percebemos lá mais ou menos exposta esta preocupação. Conforme foi dito, os cientistas são os apostadores e as ciências são os cavalos. Os cientistas jurídicos apostam no cavalo “Direito”, os cientistas médicos apostam no cavalo “Medicina” e assim por diante, e isso inclusive não os impede de apostar e torcer por cavalos “aliados”. Ora, todos os cavalos são “Ciência” e isto só beneficia aos que dependem dela.

Ainda de acordo com o artigo, imagine-se numa arquibancada de um jóquei, assistindo a esta corrida de cavalos que acabamos de ilustrar. Para qual (ou quais) cavalo (s) você torce? Se você torce por um ou outro, por mais de um ou por todos: Parabéns! Você é um cientista! Esta é uma atitude bastante louvável da sua parte. Entretanto, se você não torce por nenhum e está ali apenas para observar: Parabéns! Você é um filósofo! Esta é uma atitude bastante louvável da sua parte.

É neste aspecto que tentamos construir este raciocínio. Em nosso artigo Contra os Acadêmicos, afirmamos que não há possibilidade de imparcialidade ou neutralidade científica. Porém, afirmamos também que a Filosofia nasce neutra por excelência, ou seja, pelo simples fato de ser Filosofia, conforme foi exposto no exemplo do jóquei.

Ora, se o filósofo não torce por nenhum cavalo, ele está a cuidar do todo. Ele observa os cientistas, os cavalos, a areia da arena, a temperatura do dia, o concreto da arquibancada, o valor das apostas, as sensações causadas nos cientistas pelas diferenças no páreo e ainda observa a si mesmo e inúmeras outras coisas. Após observar este todo, ele inicia o processo de dúvida. Ele duvida de tudo isto que foi dito e principia a dialogar com tudo aquilo que observava para que a realidade comece a desvelar-se diante dele. Ele “dialetiza” com os cientistas para que estes o ajudem a compreender melhor a realidade e também para ajudá-los em sua função. Volta e meia, ele sugere determinada solução, mas não se agarra a ela. Pode abandoná-la, caso surja outra melhor. Porém, para que esta “outra melhor” tome o lugar da anterior, é necessário que ela preencha mais requisitos do que esta. Diante disso, nos lembramos da figura de Sócrates (469–399 a.C.), ao passar todas as suas opiniões por um rigoroso crivo, para que elas fossem o mais próximas da realidade possível, ou seja, para que elas não fossem relativas, mas sim absolutas.

Sócrates (469–399 a.C.)

Com base no exposto, percebemos que estas duas figuras singulares na existência, o filósofo e o cientista, são distintas em suas atividades, apesar de rumarem para um mesmo fim: a compreensão da realidade.

Não estamos dizendo aqui que um seja melhor que o outro nem nada parecido. Estamos apenas expondo que não é exigido da Ciência que ela seja imparcial ou neutra e que, por outro lado, é impossível que a Filosofia seja parcial ou não-neutra. O verdadeiro filósofo é aquele que, apesar de duvidar de todos os aspectos da realidade, propõe diversos caminhos para que ela seja acessada, até que eles não sejam mais plausíveis e sejam substituídos por outros melhores. O fato de nunca termos acessado a Verdade Absoluta não significa que ela não exista, significa apenas que ainda não a acessamos. O verdadeiro filósofo compreende isto e tenta cada vez mais fazê-lo, ou sua função estaria esgotada, ele seria inútil e poderíamos dar por vencida toda a Filosofia. Ora, se tudo é relativo e não existe Verdade Absoluta, poderíamos mandar os filósofos às favas e teríamos vencido a realidade. Quem fosse embora por último, apagaria a luz. Porém, sabemos que não é assim que funciona.

Sócrates era uma amante da dialética. Os filósofos em geral o são. Porém, ele se utilizava de uma ferramenta extremamente poderosa para fundamentar suas intuições, a mesma que utilizamos para produzir esta nossa intuição: a Lógica. Sem Lógica, é impossível que a dialética ascenda e que a investigação da realidade frutifique, e é sobre ela que trataremos no próximo artigo.

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