Instrucionismo vs Construcionismo

Uma parte da visão de Seymour Papert sobre a escola na era da Informática (capítulo do livro A máquina das crianças)

Bruno Oliveira
Educação, Finanças & Tecnologia
28 min readMar 24, 2023

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Neste capítulo escreverei em um estilo um pouco mais acadêmico e abstrato, de modo a permitir comparações e intercâmbio com outros pontos de vista. Ao fazê-lo, tentarei precisar e formalizar (o que não significa, necessariamente, melhorar) ideias matéticas que introduzi até agora sobretudo por meio de histórias.

Nota: Matética é a ciência da aprendizagem, 
em contrapartida à didática que é a ciência do ensino
O desafio da matética é:
"Como proporcionar maior aprendizagem a partir do mínimo de ensino?"

Minha preferência por um estilo concreto de escrever não é apenas uma tática literária para dizer o que poderia ter apresentado em uma linguagem mais abstrata. Ao contrário, é um exemplo de transformar o meio em mensagem. Um tema central da minha mensagem é que a tendência dominante a supervalorizar o abstrato é um sério obstáculo ao progresso na educação. Uma das várias formas pelas quais minha concepção de que aprender pode tornar se muito diferente é que isso poderá acontecer por uma inversão epistemológica para formas mais concretas de conhecer uma inversão da ideia tradicional de que o progresso intelectual consiste em passar do concreto para o abstrato.

Quando o autor menciona "transformar o meio em mensagem" é uma referência às
ideias de Marshall McLuhan, autor do livro "Os meios de comunicação como
extensões do homem
", publica originalmente em 1964

Aqui, a teoria é a de que o meio influencia significativamente a mensagem
que iremos receber
, sendo assim, uma mesma mensagem é percebida por um mesmo
indivíduo de formas diferentes caso ele as receba em diferentes meios.
Aprender brincando é mais eficaz (Revista Crescer)

Vejo a necessidade dessa inversão não apenas no conteúdo do que é aprendido, mas também no discurso dos educadores. Usar um modo concreto de expressão permite-me mostrar e também dizer o que quero comunicar com isso, e contribui para um senso mais rico daquilo que torna o pensamento concreto mais poderoso. Todavia, não é de surpreender que o conceito que mais necessita de uma formulação mais abstrata seja o da própria “concretude”.

No discurso da educação, a palavra concreto é empregada com frequência em seu sentido comum. Quando os professores falam em usar materiais concretos para apoiar a aprendizagem da ideia de números, entende-se logo que isso engloba métodos como usar blocos de madeira para formar padrões de números. A palavra, porém, também adquiriu sentidos mais especializados, dos quais o que se salienta com maior frequência associa-se intimamente à famosa (ou, em alguns círculos, mal afamada) teoria dos estágios de Piaget.

Estágios de desenvolvimento segundo Piaget (Verywell.com)

Infelizmente os dois tipos de uso continuam a ser confundidos: é fácil cair na armadilha de ler Piaget como se a palavra tivesse seu sentido comum, e a falácia é apoiada por muitos livros escritos para professores em um tom de superioridade, no estilo “Piaget Fácil de Entender”. De fato, Piaget faz algo mais complexo e muito mais interessante quando descreve o pensamento de crianças em idade escolar como “concreto. Isso é um termo técnico, do mesmo modo como os físicos usam a palavra força, ou os psiquiatras a palavra depressão. Em tais casos os significados serão mal compreendidos, a menos que a pessoa perceba que as palavras adquirem um sentido especial nas teorias, não sendo raro contrariar o senso comum.

O conceito piagetiano de “inteligência concreta” retira seu sentido de uma perspectiva teórica que surgiu aos poucos e nem sempre de forma consistente, no decorrer de um programa de pesquisa enormemente produtivo, que durou uma vida inteira. Teremos que desembaraçar esse revelador conceito, separando-o de certos aspectos mais problemáticos das construções teóricas de Piaget, em particular de sua noção de “estágio”. A oposição entre filosofias da educação que compõem o título deste capítulo provê um bom contexto para a apreensão do que significa “inteligência concreta” na estrutura teórica de Piaget.

O sufixo “-ismo” é indicador de algo abstrato, e sua presença no título reflete minha mudança de estilo intelectual.

Com a palavra instrucionismo, minha intenção é expressar algo bastante diferente de pedagogia, ou a arte de ensinar. Ela deve ser lida em um nível mais ideológico ou programático, expressando a crença de que o caminho para uma melhor aprendizagem deve ser o aperfeiçoamento da instrução — ora, se a Escola é menos que perfeita, então é sabido o que fazer: ensinar melhor.

O construcionismo é uma filosofia de uma família de filosofias educacionais que nega esta “verdade óbvia”. Ele não põe em dúvida o valor da instrução como tal, pois isso seria uma tolice: mesmo a afirmativa (endossada, quando não originada, por Piaget) de que cada ato de ensino priva a criança de uma oportunidade para a descoberta, não é um imperativo categórico contra ensinar, mas um lembrete expresso em uma maneira paradoxal para manter o ensino sob controle.

A atitude construcionista no ensino não é, em absoluto, dispensável por ser minimalista — a meta é ensinar de forma a produzir a maior aprendizagem a partir do mínimo de ensino. Evidentemente, não se pode atingir isso apenas reduzindo a quantidade de ensino, enquanto se deixa todo o resto inalterado. A outra mudança principal e necessária assemelha-se a um provérbio africano: se um homem tem fome, você pode dar-lhe um peixe, mas é melhor dar-lhe uma vara e ensiná-lo a pescar.

Nota: Não confundir construcionismo com construtivismo.
Construcionismo tenta passar a ideia de que indivíduos construindo de forma
coletiva, refere-se mais ao modo de ensino (criado por Papert).
Construtivismo tenta passar a ideia de indivíduos construindo suas próprias
estruturas de conhecimento, refere-se mais aos "estágios" (criado por Piaget).

A educação tradicional codifica o que pensa que os cidadãos precisam saber e parte para alimentar as crianças com esse “peixe”. O construcionismo é construído sobre a suposição de que as crianças farão melhor descobrindo (“pescando”) por si mesmas o conhecimento específico de que precisam: a educação organizada ou informal poderá ajudar mais se certificar-se de que elas estarão sendo apoiadas moral, psicológica, material e intelectualmente em seus esforços. O tipo de conhecimento que as crianças mais precisam é o que as ajudará a obter mais conhecimento. É por isso que precisamos desenvolver a matética. Evidentemente, além de conhecimento sobre pescar, é também fundamental possuir bons instrumentos de pesca — por isso precisamos de
computadores — e saber onde existem águas férteis — motivo pelo qual precisamos desenvolver uma ampla gama de atividades mateticamente ricas, ou “micro mundos”.

Consideremos a matemática novamente para observar a questão geral em sua forma mais extrema. É óbvio que, como sociedade, nós, nos Estados Unidos (e na maioria dos lugares do mundo), apresentamos baixo desempenho em matemática. Também é óbvio que a instrução em matemática é, em média, bastante fraca. Não se infere daí, porém, que a única via para melhorar o desempenho seja o aperfeiçoamento da instrução. Um outro caminho passa por oferecer às crianças micro mundos verdadeiramente interessantes onde elas possam usar matemática como Brian, ou pensar sobre ela, como Debbie, ou brincar com ela, como fez Dawn. Se as crianças realmente desejam aprender algo e têm a oportunidade de aprender com o uso, elas fazem-no mesmo quando o ensino é fraco. Por exemplo, muitos aprendem difíceis videogames sem nenhum ensino formal! Outros usam o sistema de linhas telefônicas diretas da Nintendo ou leem revistas sobre estratégias de jogos para encontrar o tipo de conselho para videogames que obteriam de um professor se isso fosse uma disciplina escolar. Além disso, já que um motivo para a má instrução é que ninguém gosta de ensinar crianças relutantes, a via construcionista tornará o ensino melhor, assim como menos necessário, extraindo, desse modo, o melhor de ambos os mundos.

Debbie proporciona um bom exemplo de um pouco da instrução certa produzindo bons resultados. Instruí-la a programar o computador e a pensar sobre como desenvolver um projeto complexo foi como ensiná-la a pescar. Com tais habilidades ela pôde construir seu software e transformar sua concepção de frações, aprendendo algo muito diferente do que lhe foi ensinado. Isso é muito diferente daquilo que se costumava chamar de aprendizagem processual. Na década de 1960, quando o movimento da Matemática Moderna atingiu seu ápice, estava na moda dizer que era mais importante ensinar “o processo do pensamento científico” do que qualquer conteúdo científico específico. A diferença significativa é que o processo científico divorciado do seu conteúdo é muito abstrato. As habilidades de programação que Debbie aprendeu foram até mesmo mais sensatas e concretas em todos os sentidos possíveis do que o conhecimento sobre frações que ela adquiriu usando-os.

O sucesso de Debbie no teste sobre conhecimento de frações contraria a ideia instrucionista de que a única forma de melhorar o conhecimento de um estudante sobre o tópico X é ensinar sobre X. Qualquer um que tenha dúvidas sobre a prevalência dessa ideia faria bem em ler “Deschooling society”, de Ivan Illich, mais uma vez no espírito de ver uma ideia em sua forma mais extrema. Illich expõe de modo eloquente sua alegação de que a principal lição que a Escola ensina é a necessidade de ser ensinado.

O ensino escolar cria uma dependência da Escola e uma devoção supersticiosa aos seus métodos. No entanto, embora a lição da Escola em causa própria tenha impregnado a cultura mundial, o mais fascinante é que todos nós temos experiências e conhecimento pessoais que depõem contra isso. Em algum nível, sabemos que, se nos envolvermos realmente com uma área de conhecimento, nós a aprenderemos — com ou sem a Escola e, de qualquer modo, sem a parafernália de currículo, testes e segregação por faixa etária que ela toma por axiomática.

Também sabemos que, se não nos envolvermos com a área de conhecimento, teremos problemas em aprendê-la com ou sem os métodos da Escola. No contexto de uma sociedade dominada pela Escola, o princípio mais importante da matética pode ser o incitamento à revolta contra a sabedoria estabelecida, pois sabemos que podemos aprender sem sermos ensinados e, com frequência, aprender melhor quando se é menos ensinado.

A matemática de cozinha aponta para a mesma moral: mostra que um
grande número de pessoas aprendeu a fazer algo matemático sem instrução — até mesmo apesar de ter sido ensinado a fazer algo diferente. De fato, pode até sugerir que, afinal, não há crise real na educação, já que as pessoas resolutas encontram um meio de aprender o que precisam!

Naturalmente, essa sugestão de conformismo não é séria. Apontar para o uso de métodos matemáticos que foram de algum modo desenvolvidos sem ser ensinados não pode justificar uma acomodação educacional: a matemática de cozinha e similares são excelentes demonstrações da capacidade matética das pessoas, mas são extremamente limitadas. A conclusão a ser tirada não é que as pessoas conseguem, de qualquer modo, e então não precisam de ajuda, mas, antes, que essa aprendizagem informal aponta para uma rica forma de aprendizagem natural que depõe contra a natureza dos métodos da Escola e requer um tipo diferente de apoio. A questão para educadores é se podemos trabalhar com esse processo de aprendizagem natural em vez de trabalhar contra ele — e, para fazer isso, precisamos saber mais sobre esse processo. Que tipo de aprendizagem encontra-se por trás do conhecimento matemático culinário e como podemos fomentá-lo e ampliá-lo?

Nota: a ideia de "matemática culinária" é um recurso do autor para trazer um
exemplo popular do uso de uma disciplina sabidamente abstrata e difícil para
o cotidiano. Na culinária é fundamental ter noções matemáticas, de proporções,
quantidade e volume. Mas não necessariamente você precisa aprender estes
conceitos formalmente numa escola, a maioria das pessoas aprendem fazendo,
de forma concreta e prática
.

Tais perguntas levam-nos ao segundo polo da expressão “instrucionismo
versus construcionismo
”. A escassa reflexão sobre a Escola é um aspecto menor daquilo que se pode observar na matemática culinária. O aspecto principal não é o fracasso da Escola, mas o sucesso das pessoas que desenvolveram seus próprios métodos para resolver tais problemas — não o que a Escola falhou em transmitir-lhes, mas o que elas construíram por si mesmas.

As metáforas “transmissão” versus “construção” são temas que permeiam um movimento educacional maior e mais diversificado dentro do qual situo o construcionismo e ressalto isso pelo jogo de palavras no nome. Para muitos educadores e para todos os psicólogos cognitivos, minha palavra evocará o termo Construtivismo, cujo uso educacional contemporâneo em geral remete à concepção de Piaget que o conhecimento simplesmente não pode ser “transmitido” ou “transferido pronto” para outra pessoa. Mesmo quando parece estarmos transmitindo com sucesso informações dizendo-as, se pudéssemos ver os processos cerebrais em funcionamento, observaríamos que nosso interlocutor está “reconstruindo” uma versão pessoal das informações que pensamos estar “transferindo.

O construcionismo também possui a conotação de “conjunto de peças para construção”, iniciando com conjuntos no sentido literal, como o Lego, e ampliando-se para incluir linguagens de programação consideradas como “conjuntos” a partir dos quais programas podem ser feitos, até cozinhas como “conjuntos” com os quais são construídas não apenas tortas, mas receitas e formas de matemática em uso.

Um dos meus princípios matéticos centrais é que a construção que ocorre “na cabeça” ocorre com frequência de modo especialmente prazeroso quando é apoiada por um tipo de construção mais pública, “no mundo” — um castelo de areia ou uma torta, uma casa Lego ou uma empresa, um programa de computador, um poema ou uma teoria do universo. Parte do que tenciono dizer com “no mundo” é que o produto pode ser mostrado, discutido, examinado, sondado e admirado. Ele está lá fora.

Assim, o construcionismo, minha reconstrução pessoal do construtivismo, apresenta como principal característica o fato de examinar mais de perto do que outros ismos educacionais a ideia da construção mental. Ele atribui especial importância ao papel das construções no mundo como um apoio para o que ocorre na cabeça, tornando-se assim uma concepção menos mentalista.

Também atribui mais importância à ideia de construir na cabeça, reconhecendo mais de um tipo de construção (algumas delas bastante longe de construções simples, como cultivar um jardim) e formulando perguntas a respeito dos métodos e materiais usados. Como pode alguém tornar-se um especialista em construir conhecimento? Que habilidades são necessárias? Essas habilidades são as mesmas para tipos diferentes de conhecimento?

Teorias de Piaget: Teoria da Equilibração + Estágios da Vida + Construtivismo

O nome matética confere a tais questões o reconhecimento necessário para serem levadas a sério. Para começar a respondê-las, examinarei e de certo modo adaptarei às finalidades presentes as ideias de dois pensadores, Jean
Piaget e Claude Lévi-Strauss
, que foram mais longe do que quaisquer outros ao identificar grandes bolsões de conhecimentos que não se aprendem no estilo da Escola e não se adaptam à ideia da Escola sobre o que é conhecimento adequado.

Meu propósito ao discutir esses dois autores é extrair deles um sentido técnico da noção de concretude, permitindo-me afirmar que a habilidade matética importante é aquela para construção de conhecimento concreto. Posteriormente, uso esse insight para uma outra formulação do que está errado com a Escola — que seu comprometimento descabido de passar tão rápido quanto possível do concreto para o abstrato resulta em dedicar um tempo mínimo para a realização do trabalho mais importante.

Em seu livro de 1966, The savage mind ( cujo título em francês, La pensée
sauvage
, deveria ser lido tendo em mente que em francês flores silvestres são chamadas defleurs sauvages), Lévi-Strauss emprega a palavra francesa intraduzível bricolagem para referir-se ao modo como as sociedades “primitivas” conduzem uma “ciência do concreto”. Ele considera isso como diferente da “ciência analítica” dos seus colegas, de um modo que se assemelha à diferença entre a matemática culinária e a matemática escolar. Esta, assim como a ideologia da ciência moderna (embora não necessariamente sua prática), baseia-se no ideal da generalidade — o único método universalmente correto que funciona para todos os problemas e para todas as pessoas.

Bricolagem é uma metáfora para os modos de ação do antigo “João faz tudo”, que batia de porta em porta oferecendo-se para consertar qualquer coisa quebrada. Face a uma tarefa, o consertador remexia em sua sacola de ferramentas heterogêneas buscando uma que se adaptasse ao problema à mão; se uma ferramenta não funcionasse para a tarefa, ele simplesmente tentava outra sem jamais se perturbar, nem mesmo de leve, pela falta de generalidade do instrumento.

Os princípios básicos da bricolagem como metodologia para a atividade intelectual são: use o que você tem, improvise, vire-se. E para o verdadeiro bricolador as ferramentas na sacola são selecionadas durante um longo tempo por meio de um processo que vai além da utilidade pragmática. Tais ferramentas mentais tornam-se gastas e confortáveis, do mesmo modo como as ferramentas físicas do consertador ambulante, transmitindo uma sensação de familiaridade, de estar à vontade consigo mesmo; elas serão o que Illich chama de “convivenciais” e, em Mindstorms chamei de “sintônicas”.

Uso o conceito de bricolagem para servir como uma fonte de ideias e modelos visando melhorar a habilidade de fazer — e consertar e melhorar — construções mentais. Reafirmo que é possível trabalhar sistematicamente para tornar-se um melhor bricolador e ofereço isso como um exemplo de desenvolvimento da habilidade matética. Percebe-se mais diretamente o espírito do verdadeiro bricolador na história da engenhosidade (e deleite) de Ricky em usar peças Lego para propósitos que jamais foram imaginados por seus fabricantes: uma roda como sapato, um motor como vibrador.

A matemática de cozinha oferece uma demonstração clara de bricolagem
em sua conexão sem emendas, integrada com uma atividade adjacente em
andamento, que provê de artifícios e ferramentas a sacola do consertador. O oposto da bricolagem seria deixar o “micro mundo da atividade de cozinhar” por um “mundo da matemática” para trabalhar o problema de frações usando uma calculadora ou, mais provavelmente, nesse caso, a aritmética mental.

No entanto, o praticante da matemática de cozinha, como um bom bricolador, não para de cozinhar para voltar-se à matemática; ao contrário, para um observador externo, as manipulações matemáticas dos ingredientes seriam indistinguíveis das manipulações culinárias. Assim, a matemática de cozinha apresenta qualidade de encadeamento e continuidade que apresentei várias vezes como poderosamente condutora da aprendizagem.

Essa integração esclarece muito bem o relacionamento entre a questão matética do instrucionismo versus construcionismo e a questão epistemológica da ciência analítica versus bricolagem. Princípios analíticos como multiplicar 1 e 1/2 por 2/3 são rotineiramente ensinados via instrução direta em matemática. No entanto, a íntima associação da matemática de cozinha com a cozinha sugere que tal instrução não é natural, mesmo que seja possível, “ensinar” bricolagem matemática (ou qualquer outro tipo de bricolagem) como uma disciplina separada. O contexto natural para aprender seria pela participação em outras atividades e não pela matemática em si.

Uma comparação entre Debbie e a matemática de cozinha deixa claro o papel especial do computador para se fazer isso. Não tenho dúvida de que maior habilidade e autoconfiança resultariam para muitas pessoas se elas se engajassem em conversas mais sérias e reflexivas sobre seus próprios processos de aprendizagem em culinária, jardinagem, tarefas domésticas, jogos e participação em esportes como jogadores ou espectadores. Nada disso requer de modo algum computadores. O que vemos em experiências como as de Debbie, Maria ou Brian é como o computador, de um modo simples, porém muito significativo, amplia a gama de oportunidades para o engajamento como bricolador ou bricoladora em atividades com conteúdo científico e matemático.

As fases da experiência de Debbie mostram uma medida em expansão do engajamento e competência por intermédio de um tipo de apropriação com características de bricolagem. Na primeira fase a vemos engajada em uma atividade familiar minimamente transformada por ser feita no computador. Ela escreve poemas usando o computador como pouco mais do que um processador de textos. Em seguida enfeita seus poemas de um modo semelhante àquele de decorar uma página de papel. Somente depois de sentir-se plenamente confortável é que começa a realizar algo interessante com frações. Então a vemos engajada em atividades relacionadas às frações. No entanto, do mesmo modo como a matemática de cozinha não está separada do cozinhar, suas atividades não são distinguíveis, em forma, do trabalho de poesia. E é precisamente essa continuidade do familiar para o novo que provoca seu grande avanço quando conecta frações com “tudo”.

Esse louvor do concreto não deve ser percebido com uma estratégia de usá-lo como trampolim para o abstrato. Isso deixaria o abstrato plantado imóvel como a forma mais elevada de conhecer. Quero externar algo mais controverso e mais sutil na tentativa de demover o pensamento abstrato do lugar de “recheio verdadeiro” do funcionamento da mente. Com maior frequência (quando não sempre), em última análise o pensamento concreto é mais merecedor dessa descrição, e os princípios abstratos assumem o papel de ferramentas que servem, como muitas outras, para intensificar o pensamento concreto. Para o bricolador convicto, os métodos formais estão à mão, não no topo. Na cozinha, a multiplicação formal de 1 e 1/2 por 2/3 é um método perfeitamente aceitável, nem pior nem melhor do que improvisações com espátulas e xícaras de medição.

Afirmativas como essa provocaram contra mim acusações de “agressão à lógica”. A questão, porém, é realmente de equilíbrio. Sou um matemático e conheço em primeira mão as maravilhas do raciocínio abstrato — seus prazeres como também seu poder. Também sei quão ineficaz ele pode ser quando utilizado de forma indiscriminada. Nossa cultura intelectual tradicionalmente tem sido tão dominada pela identificação do bom pensamento com o pensamento abstrato que a conquista de equilíbrio requer constantemente estarmos atentos a formas de reavaliar o concreto, poder-se-ia dizer, como um equivalente epistemológico do favorecimento de minorias discriminadas. Isso também requer estar atento a formas traiçoeiras de abstração que podem não ser reconhecidas como tal pelos que as usam. Por exemplo, estilos de programação que, com frequência, são impostos como se fossem simplesmente “a maneira certa” expressam um forte julgamento de valor entre os modos abstrato e concreto de fazer coisas.

No livro The second self, Sherry Turkle descreve estilos de programação
utilizados por crianças que tiveram acesso suficiente a computadores e um
suficiente sentimento de liberdade para desenvolver um estilo pessoal:

Jeff é o autor de um dos primeiros programas para representar um ônibus 
espacial. Ele o elabora, como faz com a maioria das outras coisas, fazendo
um plano. Fará um foguete, propulsores, uma viagem pelas estrelas, uma
aterrissagem. Ele concebe o programa globalmente e depois o fragmenta em
pedaços manejáveis: "Eu escrevi as partes por extenso em um grande pedaço de
cartolina. Em uma noite eu vi a coisa inteira na minha mente e mal podia
esperar para vir à escola e fazê-lo funcionar
".

Os cientistas de computação reconhecerão essa estratégia "de cima para baixo",
"divida e domine" como um "bom estilo de programação".

E todos nós reconhecemos em Jeff alguém que se adapta ao nosso estereótipo de
uma "pessoa de informática" ou um engenheiro - alguém que é bom em máquinas,
bom em ciências, alguém organizado que aborda o mundo das coisas com segurança
e propósito firme, com a determinação de fazê-las funcionar.

Kevin é um tipo de criança muito diferente. Enquanto Jeff é meticuloso em
todas as suas ações, Kevin é sonhador e impressionista
. Naquilo em que Jeff
tende a impor suas idéias para outras crianças, a cordialidade de Kevin, sua
natureza dócil e interesse nos outros o tornam popular. Os encontros com Kevin
com frequência foram interrompidos por chamados para ensaiar uma peça da
escola.

A peça era Cinderela, e ele recebera o papel de Príncipe Encantado …

Kevin também está fazendo uma cena de espaço, porém o modo como ele trabalha
não é, de forma alguma, a abordagem de Jeff, que não se importa muito com o
detalhe da forma do foguete espacial; o importante é fazer um sistema
complexo funcionar como um todo. Kevin, porém, importa-se mais com a estética
dos desenhos e dedica bastante tempo à forma do foguete
. Ele abandona sua
ideia original, mas continua a "garatujar", criando novas formas. Ele
trabalha com um plano, experimentando, jogando diferentes formas na tela.

Com frequência, afasta-se para ver melhor seu trabalho, observando-o de
diferentes ângulos, finalmente se decidindo por uma forma em vermelho contra
uma noite escura - um design aerodinâmico, futurístico. Kevin entusiasma-se
e chama dois amigos; um admira o vermelho sobre o preto; o outro diz que a
forma vermelha "parece com fogo". Jeff por acaso passa pela máquina de Kevin
a caminho do recreio e automaticamente confere a tela, já que está sempre
procurando novos artifícios para acrescentar ao seu kit de ferramentas para
construir programas
. Ele dá de ombros: "Isso já foi feito". Não há nada novo
ali, nada tecnicamente diferente, apenas uma bolha vermelha.

No dia seguinte, Kevin tem um foguete com uma chama vermelha na parte inferior:
"Agora eu acho que deveria fazê-lo mover-se … movimento e asas … ele deveria
ter movimento e asas
". As asas saem fáceis, apenas mais alguma experimentação
com o desenho. No entanto, ele está menos confiante quanto ao modo de obter o
movimento correto. Kevin sabe programar, mas seus programas surgem, ele não
está interessado em impor sua vontade sobre a máquina
. Ele interessa-se
principalmente em criar efeitos visuais empolgantes e permite-se ser levado
pelos efeitos que produz.

A supervalorização do abstrato bloqueia o progresso na educação, sob formas que se reforçam mutuamente na prática e na teoria. Na prática da educação, a ênfase no conhecimento formal e abstrato é um impedimento direto à aprendizagem — e já que algumas crianças, por motivos relacionados à personalidade, cultura, gênero e política, são prejudicadas mais do que outras, é também uma fonte de séria discriminação, quando não de opressão direta.

Mitch Resnick: Vamos ensinar crianças a escrever códigos

Kevin tem a sorte de estar em um ambiente onde lhe é permitido trabalhar em seu próprio estilo. Em muitas escolas, ele estaria sob pressão para fazer as coisas “direito”, e, mesmo que sua maneira de trabalhar fosse tolerada, poderia haver um senso malicioso de que isso é porque ele é “artista”, dito em um tom insinuando que ele não é um aluno sério. Por exemplo, em entrevistas relatadas em um artigo escrito comigo, uma aluna externou a Sherry Turkle que a pressão para seguir o tipo de estilo “duro” de Jeff era tão forte e tão contrária ao seu senso de identidade que ela “decidiu tornar-se outra pessoa” a fim de sobreviver a um modo de ação obrigatório. Outros, em situação semelhante, simplesmente desistiram.

Além disso, a supervalorização do pensamento abstrato vicia a discussão de questões educacionais. O motivo é que os educadores que defendem impor aos estudantes estilos abstratos de pensar quase sempre praticam o que pregam — como tentei fazer adotando um estilo concreto de escrever — porém com resultados muito diferentes.

Um exemplo simples pode ser visto na formulação de perguntas de pesquisa. Na minha frente encontra-se uma pilha de artigos eruditos repletos de números, tabelas e fórmulas estatísticas, com títulos como “Uma avaliação do efeito do computador na aprendizagem”. Seus autores ficariam indignados com a sugestão de que o trabalho é “abstrato”.

Certamente diriam que estou enganado, pois eles produziram “dados numéricos concretos” em nítido contraste com meu “filosofar anedótico abstrato”. Contudo, por mais concretos que sejam seus dados, qualquer questão estatística sobre “o efeito” do “computador” é irremediavelmente abstrata. Isso se deve ao fato de todas essas questões dependerem do uso do que é comumente chamado de “método científico”, na forma de experiências destinadas a estudar o efeito de um fator que é variado enquanto se realiza um esforço meticuloso de manter todo o resto igual.

O método pode ser perfeitamente adequado para determinar o efeito de uma droga sobre uma doença. Quando pesquisadores tentam comparar pacientes que receberam a droga com os que não a receberam, eles se esforçam muito para ter certeza de que nada mais seja diferente.

Entretanto, nada poderia ser mais absurdo do que uma experiência na qual os computadores são colocados em uma sala de aula onde nada mais é modificado. A principal questão dos exemplos que dei é que os computadores cumprem ao máximo sua função quando possibilitam que tudo mude.

A questão do pensamento abstrato é isolar dos detalhes de uma realidade concreta — abstrair — um fator essencial na sua forma pura. Em algumas ciências, isso foi feito com resultados formidáveis. Por exemplo, Sir Isaac Newton conseguiu entender os movimentos da ferra e da lua ao redor do sol representando cada um desses complexos corpos por meio de uma “abstração” concretamente ilógica — tratando cada corpo como uma partícula com toda sua massa concentrada em um ponto, ele pôde aplicar suas equações de movimento.

Embora tenha sido o sonho de muitos psicólogos ter uma ciência da aprendizagem semelhante, até o momento nada desse tipo foi produzido. Creio que tal fato ocorre porque a ideia de uma “ciência” nesse sentido simplesmente não se aplica aqui. Contudo, mesmo que eu esteja errado, enquanto esperamos pelo nascimento do Newton da educação, são necessários diferentes modos de compreensão. Especificamente, a meu ver, precisamos de uma metodologia que nos possibilite permanecer próximos a situações concretas.

Não faz muito tempo, essa sugestão teria sido vista como inconsistente com a própria ideia do método científico. Contudo, nas últimas décadas, os
antropólogos foram mais diligentes do que Lévi-Strauss, examinando o comportamento real de cientistas em seus laboratórios com o mesmo rigor que ele aplicou ao estudo dos estilos de vida em aldeias distantes.

Bruno Latour, uma das figuras centrais desse movimento, considera que a linha teórica entre a ciência do concreto e a ciência analítica é tênue e, não raro, é transgredida por modos de pensar e agir mais próximos daquilo que Lévi-Strauss descreve como pensée sauvage do que da “ciência analítica”. O conceito que nos ensinaram na escola, de um método científico muito rigoroso e formal, é realmente uma ideologia proclamada nos livros, ensinada nas escolas e discutida pelos filósofos, porém amplamente ignorada na prática real da ciência. Para Latour, “a ‘grandiosa dicotomia’ de Lévi-Strauss, com sua certeza inabalável, deveria ser substituída por muitas linhas divisórias incertas e inesperadas”.

Comentários críticos como esse vieram de muitas outras fontes — inclusive de feministas acadêmicas, que demonstraram que a ciência tradicional é fortemente androcêntrica, e por Sherry Turkle e eu, que observamos que alguns dos melhores programadores profissionais trabalham em um estilo mais semelhante ao de Kevin do que ao de Jeff. Esses dados devem ser levados a sério pelos educadores, pois apresentam várias implicações para se pensar sobre a Escola.

A observação mais simples e mais imediata, de um ponto de vista instrucionista, é a necessidade de oferecer às crianças uma imagem mais moderna da natureza da ciência. A questão aqui discutida não é apenas atualizar o conteúdo da ciência escolar, o que está sendo feito, mesmo de modo muito lento, mas sim dar às crianças uma melhor noção da natureza da atividade científica, uma meta que não se encaixa com facilidade na Escola, sendo portanto quase inteiramente negligenciada. É importante promover essas mudanças na educação científica tanto pelo motivo louvável de respeito à verdade em educação quanto, especialmente, pela simples razão de que a imagem tradicionalmente apresentada afasta aqueles alunos que seriam atraídos para a atividade científica se apenas soubessem como ela realmente é, e para o pensamento científico, se eles realmente soubessem quanto tal modo de pensar é parecido com o deles.

De um ponto de vista construcionista, há uma implicação mais profunda, que introduzo reabrindo a discussão de algumas importantes observações de crianças feitas por Jean Piaget e colaboradores.

Essencialmente, Piaget fez a mesma observação que Lévi-Strauss, exceto que, enquanto o antropólogo observou la pensée sauvage em sociedades distantes, Piaget observou la pensée sauvage perto de casa, nas crianças. O que ambos viram foi um pensamento que diferia das “nossas” normas e ainda assim apresentava um grau de coerência interna que tornava impossível descartá-lo como apenas errôneo. Ambos viram seus achados como uma importante descoberta de uma forma até então desconhecida de pensar e deram um nome ao que viram, cada qual usando a palavra concreto — em um caso “a ciência do concreto” e no outro “o estágio de operações concretas”.

Ambos começaram a investigar os mecanismos do pensamento concreto confrontando-os com a investigação das leis do pensamento abstrato que tinha sido estudado desse a Antiguidade grega. Ambos nos proporcionaram valiosos insights sobre os mecanismos de uma forma não abstrata de pensar, e ambos apresentaram o mesmo ponto cego: eles falharam em reconhecer que o pensamento concreto que descobriram não estava confinado aos subdesenvolvidos — nem às sociedades “primitivas” de Lévi-Strauss, nem à criança ainda “não desenvolvida” de Piaget. As crianças utilizam-no, as pessoas em aldeias no Pacífico e na África também e, igualmente, as pessoas mais sofisticadas em Paris ou Genebra.

Além do mais, e isso é o mais importante, os sofisticados não recorrem ao “pensamento concreto” apenas em seus tateios preliminares quando tentam resolver um problema ou quando estão funcionando como novatos fora de suas áreas de especialização. Conforme observei ao citar Latour, características do que Lévi-Strauss e Piaget identificaram como “concreto” estão presentes no âmago de importantes e sofisticados empreendimentos intelectuais.

É difícil dar exemplos sem uma digressão muito ampla na discussão técnica de uma ciência em particular.

As intelectuais feministas que desejam enfatizar um ponto semelhante, sustentando que a supervalorização do abstrato é androcêntrica, gostam de citar a biografia de Evelyn Fox Keller sobre Barbara McClintock, bióloga ganhadora do prêmio Nobel. O relato de Keller confere um papel importante a um incidente que é facilmente citável em linguagem não técnica: McClintock tornou-se mais famosa por dizer que estudou as plantas ao conhecê-las como indivíduos e as células por entrar nelas do que pelas importantes descobertas genéticas que fez.

A imagem de McClintock encolhendo-se para entrar em uma célula é de tal clareza que transmite uma sensação de abordagem anti abstrata, mas, para apreciar o ponto em uma forma além do superficial, é necessário ler o livro de Keller ou procurar por novos acréscimos à área em pleno desenvolvimento da crítica à epistemologia tradicional.

Poderia ser mais acurado descrever o ponto cego que atribui a Piaget e a Lévi-Strauss como exemplos de “resistência,” no sentido utilizado por Freud, explicando a relutância em aceitar suas teorias como uma manifestação do que a teoria prevê — uma repressão dos conteúdos agressivo e sexual inaceitáveis do inconsciente. No caso de Piaget, o inaceitável é a possibilidade de que o bom pensamento poderia não se adaptar aos padrões que foram estabelecidos por gerações de epistemologistas.

A repressão consiste em aceitar a existência e a eficácia de tal pensamento, mas relegá-lo às crianças. Os leitores que já se defrontaram com a obra de Piaget poderiam até mesmo dar um passo adiante comigo, especulando que ele está protegendo a si mesmo do reconhecimento de que o seu próprio pensamento possui mais do bricolador do que dos padrões formais e analíticos da epistemologia dominante. Seja qual for o motivo final, o fato é que Piaget ocultou o mérito de sua melhor descoberta sob o abrigo da teoria dos estágios.

Em linhas gerais, a teoria de Piaget apresenta o desenvolvimento intelectual como dividido em três grandes períodos, os quais (por coincidência ou não) coincidem aproximadamente com os três períodos principais na agenda da vida conforme vista pela Escola.

O primeiro período, chamado “estágio sensório motor”, corresponde aproximadamente ao período pré-escolar. É um período de pré lógica no qual as crianças respondem a sua situação imediata.

O segundo período, que Piaget chama de estágio de “operações concretas”, corresponde aproximadamente aos anos da escola de ensino fundamental. Esse é um período de lógica concreta no qual o pensamento vai muito além da situação imediata, mas ainda não trabalha por meio da operação de princípios universais. Ao contrário, seus métodos estão ainda ligados a situações específicas, como as de um especialista em matemática de cozinha que é incapaz de lidar com uma prova de papel e lápis sobre frações.

E, finalmente, há o “estágio formal”, que engloba o ensino médio — e o resto da vida. Nessa etapa, finalmente, o pensamento é dirigido e disciplinado por princípios de lógica, dedução, indução e pelo princípio de desenvolvimento de teorias por meio de teste de verificação e refutação empírica.

Esse nítido quadro de estágios sucessivos suscitou reações positivas e negativas tão fortes que os debates subsequentes obscureceram a contribuição realmente importante de Piaget. Sua descrição das diferentes formas de conhecer é muito mais importante do que criar caso sobre se elas seguem perfeitamente uma à outra em termos cronológicos. E o que é especialmente significativo é a descrição da natureza e desenvolvimento do estágio intermediário das operações concretas. Essa tarefa à qual ele dedicou a maior parte de sua vida madura é o tópico dos mais de cem livros que escreveu (com exceção de alguns) sobre como as crianças pensam em uma surpreendente gama de domínios, incluindo lógica, números, espaço, tempo, movimento, vida, causalidade, máquinas, jogos e sonhos.

As descrições de Piaget de milhares de conversas com crianças encaixam-se bem na imagem do bricolador feita por Lévi-Strauss. Em termos de lógica, a criança trará para uma determinada situação um modo de pensamento que poderá ser muito diferente do modo usual de pensar um problema equivalente. Onde Piaget tem algo muito diferente a acrescentar é em seu foco sobre a mudança ao longo de períodos de anos. Por exemplo, ele conversou com crianças até mesmo de 4 anos a respeito de situações envolvendo números.

Os exemplos mais conhecidos são as chamadas experiências de conservação. Em uma destas, a crianças cujas idades variam de 4 a 7 anos é mostrada uma fileira de suportes de ovos cada um contendo um ovo e a elas faz-se a pergunta se há mais ovos ou mais suportes. A resposta típica em todas as idades é “não” ou “o mesmo”. Os ovos são então retirados dos suportes e espalhados em uma fila espaçada, enquanto os suportes são reunidos em um aglomerado compacto, tudo feito à vista da criança. A mesma pergunta é colocada.

Isso foi feito em frequência e condições suficientemente variadas para ser afirmado com segurança que virtualmente todas as crianças de 4 ou 5 anos dirão “mais ovos”. Elas defenderão essa posição sob detalhado interrogatório e até mesmo quando são pressionadas a mudar de opinião, como por exemplo sendo informadas de que três outras crianças disseram não haver mais ovos ou pedindo-lhes para contar os ovos e os suportes. A maioria das crianças resistirá a alinhar-se com as outras (uma delas comentou claramente após contar: “É o mesmo número, mas tem mais ovos”).

A primeira observação extraordinária dessa experiência é que as crianças parecem manter uma visão contrária a algo que é absolutamente óbvio para qualquer adulto — de fato, tão óbvio que ninguém parece ter percebido antes de Piaget que as crianças não compartilham da nossa verdade auto-evidente. O ponto não é simplesmente que as crianças não conhecem a resposta adulta à pergunta e confundem-se pela ignorância; a questão é que, firme e consistentemente, elas dão uma outra resposta.

Uma objeção simples que esclarece o que está realmente sendo aprendido é que as crianças tendem mais a ter entendido mal a pergunta do que a manter a opinião esquisita “não conservativa”: elas pensam que estão sendo indagadas sobre o espaço ocupado e não sobre o número. Em certo sentido, tal objeção deve ser verdadeira. Se as crianças realmente entendessem a pergunta como nós, elas responderiam como nós. Todavia, em vez de banalizar, aprofunda a experiência de Piaget. Pode haver de fato um mal-entendido, mas não um “mero não entendimento verbal”. Isso reflete algo profundo com relação ao mundo mental das crianças.

Se suspeitássemos que um adulto apresentasse essa incompreensão, diríamos: “Não, refiro-me ao número, não ao espaço”. No entanto, dizer isso para uma criança de 4 anos não servirá de nada, pois ela não sabe como fazer a distinção. Número é o que você vê (no programa de televisão) no “Vila Sésamo”, e espaço é onde você se senta. Nenhum dos dois é relevante para a distinção sobre ovos e suportes de ovos.

A possibilidade do não entendimento revela o estado do desenvolvimento dessa área do conhecimento de uma criança. O trabalho sendo realizado no período concreto é o de desenvolver gradualmente as entidades mentais relevantes e dar-lhes conexões para que as distinções tornem-se significativas.

Quando você ou eu vemos seis ovos, o “caráter seis” faz tanto parte do que vemos quanto a brancura ou as formas dos objetos individuais. Como para Debbie, para nós os números (como as frações) são algo que “colocamos sobre” tudo. Devemos, porém, “tê-los” antes que possamos fazer isso, e tudo indica que para uma criança sensório motora ou pré-operatória isso não é possível ou, como nas primeiras frações de Debbie, está ancorado com demasiada rigidez para ser manipulado.

Seguindo esse pensamento, vejo fenômenos que Piaget atribui ao estágio de operações concretas como modelos para compreendermos como as frações desenvolveram-se para Debbie ou como o “caráter flor” e o “caráter família” (no sentido botânico) desenvolveram-se para mim.

Adotando essa concepção, as implicações educacionais das ideias de Piaget estão invertidas. A maioria dos seus seguidores na educação parte para acelerar (ou pelo menos consolidar) a passagem da criança para além das operações concretas. Minha estratégia é fortalecer e perpetuar o processo concreto típico até mesmo na minha idade. Em vez de pressionar as crianças a pensarem como adultos, faríamos melhor nos lembrando de que elas são grandes aprendizes e tentando seriamente nos tornar mais parecidos com elas. Enquanto o ensino formal pode ser capaz de fazer grande parte daquilo que ultrapassa o escopo dos métodos concretos, os processos concretos têm seu próprio poder.

É impossível não se sentir frustrado ao pensar sobre a natureza do conhecimento concreto considerando as vantagens desfrutadas pela epistemologia tradicional. Sua unidade de conhecimento é uma entidade claramente demarcada — uma proposição-, e há uma linguagem bem desenvolvida e amplamente aceita para se falar sobre isso. Parte da lacuna que encontramos para desenvolver qualquer epistemologia alternativa é o resultado do tempo: iniciando de novo, estamos essencialmente em desvantagem. Parte da lacuna tende provavelmente a ser permanente, pois uma epistemologia baseada em pluralismo e conexão entre domínios está fadada a ser menos definida, mais complexa.

Um terceiro tipo de lacuna, de natureza mais sutil, é o relacionamento do conhecimento com os meios (media). A epistemologia tradicional baseia-se na proposição, intimamente ligada à mídia do texto escrito e especialmente do impresso. Bricolagem e pensamento concreto sempre existiram, mas foram marginalizados em contextos eruditos pela posição privilegiada do texto. À medida que passamos para a era da informática e que meios novos e mais dinâmicos forem surgindo, isso mudará.

Rethinking Learning in the Digital Age — Mitchel Resnick

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Bruno Oliveira
Educação, Finanças & Tecnologia

Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.