Os desafios da educação financeira — Inclusão Financeira e a BNCC

Parte 6— História da Educação Financeira no Brasil e a perspectiva de inclusão financeira e educação financeira na infância (BNCC)

Bruno Oliveira
Educação, Finanças & Tecnologia
8 min readAug 26, 2020

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obs: Esse artigo é a 6°parte de uma série que começou falando sobre Educação Financeira no Brasil e também aborda outros conteúdos relacionados.

Educação financeira não é exclusividade apenas do ensino formal (em escolas e universidades) mas principalmente do ensino informal (ex: programas de inclusão financeira) ou não-formal (ex: orientações de instituições financeiras). No Brasil, hoje, o principal foco de ações de educação financeira [Savoia et al, 2007] vem do setor privado, dirigidos normalmente a adultos consumidores interessados em produtos do setor financeiro (e normalmente são as empresas do setor financeiro quem fornece os recursos educacionais para esse propósito).

Educação financeira sempre foi importante aos consumidores, para auxiliá-los a orçar e gerir a sua renda, a poupar e investir, e a evitar que se tornem vítimas de fraudes. No entanto, sua crescente relevância nos últimos anos vem ocorrendo em decorrência do desenvolvimento dos mercados financeiros, e das mudanças demográficas, econômicas e políticas. (OCDE, 2004)

Nesse cenário de grande incentivo do mercado, a OCDE tenta fazer uma diferenciação do que seria a educação financeira “pura” e o que seriam ações de proteção ao consumidor. Grosso modo [Cunha, 2020], proteção ao consumidor trata de oferta de informação no plano da legislação e regulação que garante padrões de atendimento e salvaguarda aos clientes dos serviços e educação financeiracomplementa esta informação com a provisão de instrução e aconselhamento”. Dentro dessa ótica [Pereira et al, 2020] a educação financeira, ao empoderar o cidadão, fortalece a autorregulamentação de mercado e, portanto, minimiza (ou mesmo dispensa) estratégias de regulamentação e proteção ao consumidor financeiro.

O Estado brasileiro passa a ser mais neoliberal e a Educação Financeira passa a ser um dos caminhos para “empoderar” os cidadãos a abraçar este tipo de incentivo [Savoia et al, 2007]

Se o setor privado acaba focando na Educação Financeira em caráter de proteção ao consumidor, numa clara ideologia neoliberal, o Estado Brasileiro tenta focar suas ações públicas na população mais vulnerável, normalmente em caráter de inclusão financeira. Nesse sentido, a preocupação com a diminuição dos sistemas de proteção social públicos, com o endividamento e a bancarização adquire mais nuances no que contém de preparação de famílias e indivíduos para entrada em um novo mercado [Cunha, 2020], também em vias de consolidação.

Nesse ponto, cabe destacar então as diferentes naturezas da educação financeira que pode ser instrumental ou transformadora.

i) Educação Financeira Instrumental: voltada a promover a eficiência e eficácia do sistema financeiro através da ação individual de cada indivíduo (visto como consumidor), com o reconhecimento de seus direitos e obrigações. O foco aqui é usar a educação financeira como ferramenta, ministrar treinamentos e melhorar capacidades específicas do indivíduo.

ii) Educação Financeira Transformadora: voltada a fortalecer as capacidades individuais, com uma abordagem mais humanitária e social (voltada a população de baixa renda e microempreendedores). O foco aqui passa a ser a inclusão social, com o empoderamento do individuo, melhoria de qualidade de vida e emancipação social.

Estratégia Nacional — Educação Financeira como política de Estado

Em 2009 o Brasil concluiu a definição de sua Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF), que tem como objetivo: “promover e fomentar a cultura de educação financeira no país, ampliar a compreensão do cidadão, para que seja capaz de fazer escolhas conscientes quanto à administração de seus recursos, e contribuir para eficiência e solidez dos mercados financeiro, de capitais, de seguros, de previdência e de capitalização”.

De acordo com portal do ENEF (Vida e Dinheiro)

A inclusão da sociedade brasileira no sistema financeiro nacional

De acordo com o Banco Central [BCB, 2015], a inclusão financeira no país pode ser vista em cinco perspectivas: (i) acesso da população ao sistema financeiro nacional; (ii)uso de serviços financeiros; (iii) qualidade da inclusão financeira; (iv) microcrédito; e (v) evolução normativa.

Em relação ao (i) acesso da população ao sistema financeiro nacional, um dos aspectos brasileiros está em relação a quantidade de pontos de atendimento de prestadores de serviços financeiros (bancários e não-bancários). Ainda que haja um aumento, a própria pesquisa indica que 1.922 municípios brasileiros não possuíam, em março de 2015, agências bancárias formais, ou seja, 34,5% do total. Ainda há grande assimetria de acesso ao sistema bancário no país — o que é uma grande variável negativo para o nível de letramento financeiro da população.

Nos últimos dez anos há um aumento significativo e capilar dos ponto de atendimentos

Em relação ao (ii) uso de serviços financeiros, mais de 130 milhões de pessoas da população adulta mantinham algum relacionamento bancário, como contas de depósitos a vista, contas de depósitos de poupança e contas-correntes de depósitos para investimento (aproximadamente 84,5%) — um crescimento médio de 3,3% ao ano, de pessoas que passam a ter algum tipo de relacionamento bancário.

Quantidade de pagamentos por instrumento financeiro (substituição de dinheiro e cheques por cartões e transferências online gera maior confiança e segurança para o setor financeiro)
Relação de canais de atendimento (canais eletrônicos passam a ser mais relevantes)
O acesso a crédito vem aumentando gradativamente (disponibilização de crédito x PIB)

Os dois tópicos acima (acesso e uso de serviços financeiros) são fundamentais para a inclusão do indivíduo numa sociedade econômica, e a tecnologia (infoinclusão) pode ter papel decisivo para o aumento desses dois itens.

Os estudos revelam também que há um contingente de milhões de brasileiros que ainda estão excluídos, porque são de baixa renda, vivem em locais com precário atendimento bancário ou que simplesmente não participam porque entendem que o sistema bancário não é transparente — EDILSON RODRIGUES Diretor de Estudos Técnicos do Sinal

Modelo conceitual de inclusão financeira

Um dos modelos de inclusão financeira proposto na literatura é o modelo 2iD adaptado a inclusão financeira [Santos e Joia, 2018]. Infraestrutura e acesso — relaciona-se com a criação de condições individuais e coletivas para a população local acessar os serviços financeiros; Educação financeira — relaciona-se com a capacitação das pessoas para uso dos serviços financeiros oferecidos, assim como para entendimento dos seus benefícios; Serviços e Produtos — envolve a oferta de produtos e serviços financeiros que levem em conta a realidade de cada comunidade local atendida; Sustentabilidade — envolve a manutenção e atualização dos produtos e serviços financeiros ofertados nas localidades, incluindo aspectos econômicos, políticos, legais e éticos.

Modelo 2iD adaptado a Inclusão Financeira [Santos e Joia, 2018]

O modelo foi aplicado na iniciativa do barco agência (isto é, uma agência bancária itinerante) que suportam comunidades ribeirinhas próxima a ilha de Marajó. E obteve os seguintes resultados e verificações de impactos (positivos ou negativos) [Santos e Joia, 2018]:

Componente de infraestrutura e acesso
Componente de Educação Financeira
Componente de Produtos
Componente Sustentabilidade

Além desses componentes estáticos de toda inclusão financeira, há alguns fatores dinâmicos que através desses quatro componentes são capazes de alavancar e justificar as ações de inclusão financeira:

Componentes dinâmicos: para o caso do barco agência, houve a percepção de aumento da conscientização e crescimento de iniciativas de educação financeira, entretanto não houve um aumento significativo na demanda por novos serviços (houve um impacto negativo nesse aspecto)

Outro modelo utilizado pela literatura é o apresentado a seguir: há uma dimensão informacional e uma dimensão de comunicação, que se relacionam através de indivíduos ou grupos sociais, e pode ter algum papel da tecnologia da informação no processo.

Framework de Inclusão Financeira [Birochi e Pozzeibon, 2016]
Dimensão Informacional [Birochi e Pozzebon, 2016]
Dimensão de Comunicação [Birochi e Pozzebon, 2016]

Educação Financeira Formal — educando na infância

Hoje a aplicação de educação financeira nas escolas resume-se a algumas aulas de matemática financeira (isto é, matemática aplicado a conceitos que envolvam tempo/prazos — principalmente na área financeira). Rosetti e Schimiguel [2011] relatam ter analisado nove livros didáticos do Ensino Médio. Como resultado, concluem que o foco dos livros está na resolução de problemas semirreais (inventados com base em situações do cotidiano, mas não um problema real, de fato) com aplicação direta das fórmulas apresentadas, sem discussão dos significados financeiros a eles relacionados, resultado semelhante ao do estudo de Barroso e Kistemann [2013]. O problema de se utilizar apenas problemas semirreais, é que se exige do aluno apenas a aplicação direta de fórmulas matemáticas e não uma discussão sobre o contexto financeiro do problema. A forma que o ensino é conduzido, de forma que o exercício normalmente possui apenas uma resposta correta também esta distante da realidade mais complexa.

As dimensões espaciais e temporais da Educação Financeira são fundamentais para o letramento financeiro e estão contempladas na ENEF

Em pesquisa C6/Ibope sobre Finanças Pessoais na Infância, foi verificado que 8 em cada 10 adultos não tiveram nenhum tipo de instrução sobre educação financeira na infância (isso considerando apenas as classes A, B e C — as classes D e E provavelmente apresentarão resultados ainda piores).

A Educação Financeira Escolar constitui-se de um conjunto de informações através do qual os estudantes são introduzidos no universo do dinheiro e estimulados a produzir uma compreensão sobre finanças e economia, através de um processo de ensino, que os torne aptos a analisar, fazer julgamentos fundamentados, tomar decisões e ter posições críticas sobre questões financeiras que envolvam sua vida pessoal, familiar e da sociedade em que vivem.

Mas a tendência é que isso mude. O Ministério da Educação, através da inclusão da competência relacionada ao letramento financeiro na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), fará com que todas as escolas brasileiras ofereçam educação financeira como parte do currículo básico, o prazo para implementação seria esse ano, e a partir de 2021 a educação financeira deveria ser abordada de forma transversal nas disciplinas do currículo básico (e não apenas como Matemática Financeira).

REFERÊNCIAS

BCB. Relatório de inclusão financeira n. 3. Brasília, 2015. Disponível em: <Disponível em: http://www.bcb.gov.br/Nor/relincfin/RIF2015.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2015.

BARROSO, D. F.; KISTEMANN JR, M. A. Uma proposta de curso de serviço para a disciplina Matemática Financeira. Educação Matemática Pesquisa, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 465–485, 2013.

SAVOIA, J.R.F. et al. Paradigmas da educação financeira no Brasil. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 41, n. 6, p. 1121–41, 2007.

BIROCHI, Renê and POZZEBON, Marlei. IMPROVING FINANCIAL INCLUSION: TOWARDS A CRITICAL FINANCIAL EDUCATION FRAMEWORK. Rev. adm. empres. [online]. 2016, vol.56, n.3 [cited 2020–08–26], pp.266–287. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-75902016000300266&lng=en&nrm=iso>. ISSN 2178–938X. https://doi.org/10.1590/S0034-759020160302.

CUNHA, Márcia Pereira. O MERCADO FINANCEIRO CHEGA À SALA DE AULA: EDUCAÇÃO FINANCEIRA COMO POLÍTICA PÚBLICA NO BRASIL. Educação e Sociedade. 2020

PEREIRA, Fernando; Anderson Cavalcante; Marco Crocco. Um plano nacional de capacitação financeira: o caso brasileiro. Economia e Sociedade, 2020

ROSETTI JR, H.; SCHIMIGUEL, J. Estudo de modelos de Matemática Financeira em bibliografia básica. In: CONFERÊNCIA INTERAMERICANA DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA, 13., 2011, Recife. Anais… Recife: UFPE. 2011. p. 1–6.

SANTOS, Ricardo Paschoeto dos and JOIA, Luiz Antonio. Inclusão financeira de populações ribeirinhas: avaliação de impacto da Agência Barco. Rev. Adm. Pública [online]. 2018, vol.52, n.4 [cited 2020–08–26], pp.650–675. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122018000400650&lng=en&nrm=iso>. ISSN 1982–3134. https://doi.org/10.1590/0034-7612171861.

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Bruno Oliveira
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Auditor, escritor, leitor e flanador. Mestrando em TI, tropecei na bolsa de valores. Acredito nas estrelas, não nos astros. Resenho pessoas e o tempo presente.