O verde da introspecção

Wellinton de Almeida
8 min readJun 27, 2017

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Todos os dias, pessoas de variadas etnias, crenças e costumes procuram o chá de ayahuasca para um encontro consigo e com o divino

Anoitece na cidade, anoitece no campo. Algumas caldeiras fervem e, após cessar o fogo, o chá está pronto. Na restinga, zona sul de Porto Alegre, Wilton Souza, de 60 anos, prepara as vestimentas: camisa e calça sociais brancas com detalhes verde oliva. Em Ivoti, município rural da região do vale do rio dos sinos, Luis Pereira, de 51 anos, espera pela chegada das pessoas que vêm a sua associação, chamada de Universo Místico, para dar início ao ritual. Setenta quilômetros separam Wilton e Luis, mas o chá os une.

A ayahuasca, conhecida como hoasca, daime ou iagê, é um chá produzido pela combinação do cipó-mariri e da chacrona, plantas nativas da região amazônica. É uma bebida milenar presente na cultura dos povos indígenas latino americanos e que produz efeitos psicoativos associados à ampliação da percepção e da autoanálise. O princípio ativo mais importante produzido pela bebida é a dimetiltriptamina (DMT). Tal substância intervém no nível de serotonina do cérebro. A serotonina é um neurotransmissor capaz de passar sensação de bem-estar e regular o humor. Classificado, de maneira geral, como um alucinógeno, quem bebe defende que é um enteógeno, ou seja, é uma substância alteradora da consciência e que induz ao estado de êxtase para fins religiosos ou espirituais.

Os estados de consciência sempre foram uma exploração constante das religiões. A autoanálise e a busca do Eu superior também. Neste contexto, a hoasca se encontra com algumas destas, acelerando o processo da autorreflexão. No Brasil, três religiões tornaram-a mais popular, o Santo Daime, a União do Vegetal e A Barquinha.

A primeira, e mais popular, é uma doutrina fundada na região amazônica pelo seringueiro Raimundo Irineu Serra, a qual sincretiza elementos cristãos e ameríndios. As outras duas são ramificações do espiritismo com pequenas particularidades. A Barquinha, por exemplo, é a única destas três na qual não há aspectos sobrenaturais conferidos ao mestre fundador. É também o única na qual a hoasca não é bebida em todos os rituais, e que conta com frequentadores assíduos que não comungam o chá e nem são membros do grupo.

Wilton George Souza é administrador de um espaço transdisciplinar que oferece serviços de psicologia, terapia floral e homeopatia em Porto Alegre. É cardiopata, oito remédios por dia o mantêm vivo. Tem esposa e quatro filhos. 60 anos de vida e 30 de Daime. Orgulha-se em dizer que foi uma das primeiras pessoas a tomar o iagê no Rio Grande do Sul. Com o mesmo orgulho, cita suas graduações no assunto. Participou de rituais no Peru, México e na floresta amazônica. Conhece também a maioria das plantas de poder, como o peiote, e o wachuma.

Wilton dirige há 22 anos a Chave de São Pedro. A igreja faz uma média de 88 trabalhos por ano, ou seja, são cerca de sete rituais por mês. Os fiéis costumam relatar a Wilton que buscam o chá por conta do autoconhecimento. Todo ano, algo em torno de 7 mil pessoas buscam por este autoconhecimento na Chave, e costumam voltar. A bebida, segundo Souza, é uma busca do Deus que há dentro de cada um, é também um rumo para a vida, a cura para alguma doença, vício ou compulsão. “Os que não têm uma boa experiência com o chá são os quais procuram um ‘barato’ ou ‘onda’. Não é uma droga tóxica, não leva para uma viagem externa, mas para uma autognose, uma experiência muito mais séria”, afirma.

Luis é produtor rural. Mora em Ivoti e bebe a hoasca há mais de 30 anos. Há 15, administra o grupo Universo Místico. O grupo é descaracterizado, ou seja, não é ligado a uma religião específica, mas sim ao indivíduo que está interessado em passar por uma experiência espiritual aprofundada. “Nós bebemos o chá da ayahuasca para fazer uma introspecção mental e um estudo particular, no grupo temos evangélicos, católicos, budistas”.

Quando perguntado, hesitou em responder quem preparava o iagê. Em 2014, Henry Miller, estudante de 19 anos de Bristol, Inglaterra, morreu na Colômbia depois de participar de uma cerimônia xamânica. Os jornais informaram que ele morreu depois de tomar o iagê, em um ritual buscando pelas supostas propriedades de cura da substância. Após a ocorrência, a feitura do chá se torna cada vez mais discreta. E tem de ser, visto que as aberturas da mídia já fomentaram uma série de estereótipos sobre o hoasqueiro (indivíduo que ingere a bebida).

Luis percebe desde Ivoti como tais estereótipos acabam afastando as pessoas da hoasca. “A tendência é sempre tratar o hoasqueiro como alguém fora da casinha ou alheio à realidade.” Segundo ele, o que falta é uma dissociação entre o que é proposto e quem está envolvido. “O rapaz que morreu afogado no Rio de Janeiro tinha tomado a ayahuasca na noite anterior. Dormiu e no outro dia aconteceu a fatalidade. Se tivesse ido em uma missa, acho difícil que fizessem alguma associação”. O caso ao qual Luis se refere é o de Rian Brito, neto de Chico Anysio que foi encontrado morto em março de 2016 em Quissamã, no norte do Fluminense. “São pessoas normais, o chá não tira a consciência, ninguém desmaia e não se perde a direção ou a condução. A mídia só explora quando dá problema”, enfatiza.

Para Luis, ainda, o iagê é o responsável por um efeito que ele chama de “supermeditação”.

No budismo, por exemplo, medita-se com objetivo de promover um contato com seu próprio ser, seu próprio sagrado. A hoasca, segundo ele, acelera esse processo, “muitas vezes se leva um ano de meditação para chegar num estado de relaxamento capaz de se atingir a paz interior, com o chá, esse processo se dá em 20 minutos.”

Quando perguntado sobre os relatos de fiéis e suas percepções do ritual, Pereira disse que poderiam ser sintetizados no relato da Monja Coen, fundadora da Comunidade Zen Budista criada em 2001 e missionária oficial da tradição Soto Shu com sede no Japão.

“Um membro da minha comunidade fazia parte um grupo religioso que tomava chá de ayahuasca e me convidou para uma reunião festiva de Natal. Havia muitas crianças, adolescentes, famílias. Entramos numa sala e nos deram copinhos com um chá, todos juntos comungamos deste chá. Havia uma fotografia de um senhor da Amazônia, alguma coisa assim, que seria o fundador desta ordem, um senhor de bigodinho. Algumas pessoas vomitavam e eu já tinha ouvido falar sobre isso, eu tinha ficado um pouco preocupada. Uma hora eu me senti mal, tive um momento que eu falei 'nossa' e levantei. Eu cheguei dizendo 'não eu não vou vomitar, imagina'. Mas não adianta: tá todo mundo vomitando do seu lado, é muito difícil, né? Eu vomitei um pouco, não foi muito não. E aí eu fiquei do lado de fora... e isto foi agradável.

Me perguntaram se eu não tive visões. Na verdade não, não que eu me lembre. Senti uma sensação de vastidão e conexão com a natureza, de bem estar com ela e com todos os seus elementos. Pra mim foi uma coisa muito pé-no-chão. Até comentei com o meu superior, que se interessou e ficou de ir. Estava no meu universo, naquilo que eu conheço. Eu estava ligada, não desligada. Não sei se isto é assim pra todo mundo, mas me deu uma sensação de estar muito em mim mesma, e muito capaz de fazer coisas.”

Monja Coen, texto reduzido.

Droga ou sacramento?

No Brasil, o chá da hoasca não integra mais a lista de drogas alucinógenas há 18 anos. Em 2010, o Governo dispôs a regulamentação de seu uso para fins religiosos, não permitindo a comercialização do chá e nem das espécies vegetais utilizadas para o preparo. Ou seja, estas devem ser cultivadas pela própria entidade religiosa.

No país também não é permitido o uso dos efeitos da ayahuasca como forma de atração turística ou de propaganda de suas propriedades, sendo assim, a entidade responsável pela administração do chá deve também ficar responsável pelo controle de novos adeptos à prática e evitar o ingresso de pessoas com histórico de transtornos mentais. Questionados no processo de apuração, tanto a Chave de São Pedro como o Universo Místico não oferecem a bebida a fiéis com históricos de psicose ou esquizofrenia, bem como a infusão só é oferecida para menores de idade quando na presença dos responsáveis legais.

A seguridade e o processo

Tanto Wilton quanto Luis afirmam repetidas vezes que não há nada tóxico ou que ofereça riscos a quem ingere a bebida. De fato, boa parte das ocorrências de saúde que ocorrem durante os rituais estão relacionadas com a quantidade de chá que é oferecida ao fiel. A outra parte são surtos psicóticos.

Pedro Eugênio Ferreira, psiquiatra especialista em dependência química do Hospital São Lucas, explica que a ayahuasca não causa nenhum tipo de dependência, mas pode induzir a psicose. Pessoas com propensão a transtornos bipolares e esquizofrênicos, com a bebida, podem desenvolver o surto psicótico, que geralmente é difícil de tratar, além de colocar o indivíduo em uma situação de exposição social ou comportamento inadequado.

Outro risco apontado pelo Dr. Ferreira, seria a ingestão do chá enquanto no processo de formação de personalidade da criança ou adolescente. Wilton Souza, da Chave de São Pedro, afirma que a primeira coisa que seu filho tomou quando veio ao mundo foi o Santo Daime. Ferreira explica que há uma necessidade do indivíduo de estar em contato com a realidade objetiva dos fatos enquanto constrói uma persona. “No final da puberdade, começa a haver uma cota neuronal, se a pessoa começa a ativar muitos neurônios para aceitar fenômenos alucinatórios e perder o contato com a realidade dos fatos, isso pode causar uma distorção nos neurônios que serão preservados, e, pode acontecer que estes neurônios permitam que o indivíduo comece a aceitar com normalidade certos delírios”.

Esse fenômeno é prejudicial para o desenvolvimento da pessoa em ambiente social. Quando se começa a distanciar-se da realidade objetiva, onde tem de se tolerar a frustração e exige-se um certo comportamento dito adequado. Segundo o médico, é uma prática arriscada condicionar uma mente que está se formando a aceitar o irreal em detrimento da sua adaptação ao mundo em que está inserido. “Este é um desdobramento da ayahuasca que precisa ser aprofundado, necessitamos de mais pesquisas de saúde pública que abordem o assunto.

O rito

Sabe-se que os rituais do Santo Daime, da União do Vegetal e da Barquinha apresentam muitas similaridades. Tanto o templo da Chave de São Pedro, quanto a Universo Místico ficam na zona rural. Embora Luis Pereira tenha agido com discrição sobre o seu ritual, e é provável que este tenha muitas particularidades por não ser diretamente ligado com nenhuma religião, é sabido que os templos daimistas (como é o caso da Chave) possuem formato hexagonal, considerado importante para o “fluxo de energia”. Por ser uma religião cosmocentrista, Deus está em todas as coisas, mas os símbolos ainda são presentes no templo. O sol, a águia, a lua e a cruz de São Miguel são alguns dos signos do Daime.

Às 21h, o chá já está pronto, o sino anuncia o início do ritual. Às 21h20, após as orações, é hora de formar fila para tomar o daime, a bebida sacramental. Depois que todos bebem, voltam a sentar, e então começam os cânticos. Cada igreja tem seu próprio hinário. O padrinho faz preces e comanda a cerimônia. Enquanto o ajudante serve o daime, e o fiscal dá indicações e também auxilia os que passam mal com o chá.

Os fiéis vestem suas roupas, brancas e com detalhes que remetem à bandeira do Brasil. Com canto e orientação, estes ajudam a conduzir a cerimônia . Às 23h é o momento de aproveitar o efeito do chá. A música é interrompida e a mente vai em busca de cura, clareza, visões e iluminação divina. 1h30, iniciam as danças. Individuais e simples, são realizadas dentro de marcações no chão.

Dança-se até por volta das 4h, quando o efeito da ayahuasca começa a passar e, de acordo com o seu Luis, o fiel volta para a casa dirigindo. Depois de sete horas em contato direto com o verde da natureza, reencontra a máquina e é guiado de volta na certeza de ter conhecido um pouco mais de si mesmo, e chegando, segundo os seus adeptos, um pouco mais próximo de Deus.

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